Aqui você lê o ensaio Pompas fúnebres, de Flora Süssekind. O texto integra o livro Coros, contrários, massa, de Süssekind, lançado pelo Selo Pernambuco/Cepe Editora em setembro. Clique aqui e garanta o seu exemplar com preço de pré-venda.
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POMPAS FÚNEBRES
A Nova República começa oficialmente, como se sabe, de modo duplamente lutuoso. Com a derrota da emenda parlamentar que, duas décadas após o golpe militar de 1964, propunha eleições diretas para a presidência e, em seguida, com a morte de Tancredo Neves, escolhido indiretamente pelo colégio eleitoral, sem chegar a assumir o governo. A agonia, a morte e as várias fases (São Paulo, Brasília, Belo Horizonte e São João Del Rey) do seu cortejo fúnebre substituiriam, assim, a celebração do primeiro governo civil depois de 21 anos de autoritarismo por um longo réquiem acompanhado por multidões e exibido incessantemente nas televisões do país entre 14 de março e 21 de abril de 1985.
“Na televisão entrava médico, filho, político, o próprio homem sorrindo, o próprio homem de antes da doença, o homem na doença sentado num sofá ao lado da mulher e do médico, posando para uma foto com jeito de foto de família”: o conto Cortejo em abril, de Zulmira Ribeiro Tavares, registraria minuciosamente o impacto das transmissões desse martírio midiatizado, no esforço de santificação da figura de Tancredo Neves. E na construção, ao mesmo tempo, de massiva resignação popular diante de um processo de transição política bem diverso daquele projetado pelas greves dos metalúrgicos, pela ação dos movimentos sindicais e estudantis desde fins dos anos 1970 e pela ampla mobilização da sociedade civil no sentido de eleições diretas para a presidência.
Depois da referência à foto de 25 de março no hospital, e ao desconforto que provocou na época, Tancredo passaria imediatamente a receber, no conto de Zulmira, o tratamento de o “santo homem”. Pois, como explica o faz-tudo em torno de quem se constrói a narrativa, se ele apresentava ali “um sorriso meio vago e idiota”, como “pareceu quando a foto começou a repinicar na televisão e nos jornais”, depois se compreenderia que aquele era, na verdade, o sinal de uma “santidade pura”. Mais do que da agonia e da morte do presidente civil eleito, o conto ocupa-se dessa cristalização de sua imagem pública, e, especialmente, da recondução, via espetáculo lutuoso, da população (mobilizada pela recuperação da cidadania e pelo desejo de mudança política) a um lugar mais controlado de observação e aceitação.
Se durante os anos de redemocratização e reorganização política, a reconfiguração desse lugar de atuação, via Constituição de 1988, não excederia, como sintetiza Leonardo Avritzer, os limites de “um pacto centrista com elementos de conservação da ordem compatibilizados com elementos progressistas especialmente no campo dos direitos sociais”, a função de espectador fúnebre (de mortes, confiscos e privatizações) durante o período inicial dos novos governos civis certamente reforçaria esse aspecto restritivo. Lembrando que, nesse período, além de Tancredo Neves, outras mortes de figuras públicas bastante diversas se transformariam, igualmente, em verdadeiros espetáculos de massa no país. Como aconteceria com a morte de Ayrton Senna (1994), e com os imensos cortejos fúnebres do político Luís Eduardo Magalhães e do cantor de música sertaneja Leandro, ambos em 1998, para ficar em alguns exemplos.
No mesmo ano da morte de Tancredo, um outro inventário (mais silencioso) de desaparecimentos e mortes viria, no entanto, a público graças ao projeto Brasil: Nunca mais, coordenado pela Arquidiocese de São Paulo, tendo à frente o bispo Dom Paulo Evaristo Arns, o rabino Henry Sobel, e o pastor presbiteriano Jaime Wright. Com base em mais de 700 processos que transitaram pela Justiça Militar entre abril de 1964 e março de 1979, o livro expôs, como sabemos, denúncias de tortura e nomes de torturadores, listou “desaparecidos” e execuções por motivação política no Brasil da ditadura de 1964. A esse inventário se acrescentaria a descoberta, ainda em 1981, de ossadas escondidas na vala comum do cemitério Dom Bosco, em Perus, na zona oeste de São Paulo, etiquetadas, algumas delas, com um “T” (de “terrorista”), que, no entanto, só começariam a ser de fato examinadas em setembro de 1990.
Ao mesmo tempo, entre 1983 e o começo da década seguinte, o país assistiria à expansão epidêmica das infecções e mortes por aids, o que só começaria a se reduzir gradualmente com a compra e a distribuição do primeiro lote de antirretrovirais em 1991 pelo Ministério da Previdência. Além de simultânea aquisição sistemática de didanosina e de outros medicamentos indicados para o tratamento das infecções oportunistas que se multiplicavam diante do quadro de imunodeficiência dos pacientes. Nesse sentido, foi crucial a autoexposição de outra agonia e morte – a de Cazuza em 1990 – que acentuaria a consciência do grau de disseminação do vírus no país e exporia o preconceito nem sempre silencioso contra a doença e suas formas de contágio, contribuindo decisivamente, desse modo, para a reivindicação de políticas públicas de prevenção e de combate ao HIV. Registro fundamental, nesse sentido, da condição inominável da doença, de como ela foi vivida entre os anos 1980 e 1990, é o conto Linda, uma história horrível de Caio Fernando Abreu, sobre a volta silenciosa à casa materna de um filho cuja doença não é revelada explicitamente, mas se mostra perceptível em seu corpo magro, quase careca, e com a pele marcada por pequenas manchas avermelhadas.
Não é de estranhar, portanto, que o motivo funéreo se intensificasse na cultura literária brasileira de fins do século XX. Aos mortos notórios recentes, sim, se podia chorá-los individualmente, aos demais, aos contaminados pelo HIV, silenciados socialmente, e aos desaparecidos e executados da ditadura, que ressurgiam sobretudo em arquivos e listagens coletivas, como presença surda (mas intensa) no processo de redemocratização, a estes caberia assombrar lutuosamente a escrita e as figurações autorais nesse período de transição.
Nesse sentido, se bem diversas as mortes registradas por Zulmira Ribeiro Tavares, Sebastião Nunes e Valêncio Xavier, por exemplo, e o tratamento ficcional empregado por eles respectivamente em Cortejo em abril (1998), Decálogo da classe média (1998) e Meu 7º dia (1999), a dimensão funerária, nos três casos, se acha ligada, inequivocamente, a um mal-estar social e a uma experiência histórica comuns. Assim como a um movimento contrário ao da narrativização exaustiva – sobretudo via televisão – dos cortejos e velórios espetacularizados. São outros os movimentos agônicos que se insinuam nesses livros.
A começar do fato de, no caso de Sebastião Nunes, sequer se tratar simplesmente de um livro, semelhante, em dimensão, tratamento gráfico, colagens e paródias, às suas duas Antologias mamalucas (de 1988 e 1989), a Somos todos assassinos (1995) e História do Brasil (1992). Pois o Decálogo da classe média é apenas parte de uma representação funerária. O livro é, na verdade, ele mesmo, um “cadáver”. Acompanhado de dois outros segmentos-defuntos – o panfleto O enterro da classe média e um pequeno livro com 31 imagens de um crânio (que é progressivamente invadido por ratos). Estes são os “conteúdos” de um pequeno caixão de madeira, com cerca de dois palmos de extensão e um palmo de largura, envolvido, por sua vez, por uma caixa de papelão com a etiqueta “enterro simbólico da classe média”.
Parecendo dialogar com o Enzensberger de A irresistibilidade da pequena burguesia. Um capricho sociológico (1976), Sebastião Nunes trata, então, no primeiro de quatro volumes anunciados, das três primeiras leis do seu decálogo. A primeira: “A classe média tem medo da própria sombra. E às avessas, ou seja: a própria sombra tem medo da classe média”. A segunda: “A classe média acende uma vela a Deus e outra ao Diabo”. A terceira: “A classe média tem telhado de vidro, mas joga pedra no telhado do vizinho”.
Tudo isso em linguagem pseudológica, cheia de demonstrações, corolários, escólios, exemplos, por vezes glosando discursos jurídicos, médicos, acadêmicos, por vezes trocando letras (“Sombras são metávoras e fice-fersa”), misturando citações literárias (Augusto dos Anjos, Baudelaire, Heródoto, Lewis Carroll, Henriqueta Lisboa) a inscrições e desenhos de banheiro, virando ao avesso figuras (Borges vira um físico argentino) e enredos conhecidos (A metamorfose convertida na história de Gregório Inklame, doutor em microbiologia, com quatro pares de patas e duas asas cinzentas), e apropriando-se dos “seres imaginários” de Borges exatamente para tornar concreta a personagem coletiva abstrata de que se ocupa o decálogo – a classe média (“clame”), renomeada de modo plural de “inclames, buclames, penclames, etc.”.
Dá a ela, desse modo, ora forma humana ainda ativa (vide “Inclames em reunião de trabalho” ou “fazendo ginástica antes do trabalho”), ora figuração pós-morte como caveiras, ora assumem aspecto de insetos, camaleões, gafanhotos, cães, ora de figuras tricéfalas ou tetracéfalas. Ora escolhe apresentar essa classe média por meio de suas formas possíveis de extinção. Isto é: via “estupideza”, “consumassimismo” ou “tautologia”. Ou via suicídio e assassinato, como anuncia a obra, com a mediação de Augusto dos Anjos: “havia na ânsia de conforto/ de cada ser (…)/ uma necessidade de suicídio/ e um desejo incoercível de ser morto!”.
Essas figurações se, de um lado, miram explicitamente a vida literária institucionalizada e a hegemonia cultural pequeno-burguesa, de outro, ao se encerrar o próprio livro num caixão de madeira, parecem voltar-se, também, para a própria prática literária, para a imagem autoral autossatírica que o percorre. O que não é de estranhar, tendo em vista a trajetória de Sebastião Nunes. Basta pensarmos, nesse sentido, na seção A velhice do poeta marginal, do segundo volume da Antologia mamaluca, com cesta de lixo (para material poético), seringa (para injetar talento), fórceps (para extrair ideias profundas). E com sua brevíssima mistura de poética e epitáfio: “Oh, que estúpido fui!”.
Do ponto de vista dessa oblíqua figuração autoral, o enterro simbólico tematizado por Nunes se aproxima, sem dúvida, da cerimônia fúnebre de Meu 7º dia, de Valêncio Xavier. Neste caso, porém, trata-se do luto pelo próprio autor morto, que é nomeado explicitamente ou de cabeça para baixo, ou num convite para a sua missa, reproduzido duas vezes no livro. Pela justaposição de trechos em primeira pessoa a canções conhecidas, pedaços anedóticos de histórias, pela montagem gráfico-verbal (de estampas de catecismo a interrogações sobre a morte e o fim do amor) e pela figuração recorrente da morte, Meu 7º dia se assemelha, não é difícil perceber, às demais novelas de Valêncio.
É significativo, porém, que essa autoextinção ficcional se apresente no momento mesmo em que o escritor, pela primeira vez, teve uma edição comercial, com boa divulgação, de alguns de seus livros em volume único publicado pela Companhia das Letras. Como se o seu deslocamento da margem para uma posição de maior visibilidade, como se a hipótese mesma de algum reconhecimento literário, e de alguma possível oficialização, merecessem negação e resposta autocrítica imediata da sua parte: “ninguém compareceu ao meu funeral/ ninguém para lamber minhas lágrimas/ e eu tive de ir sozinho ao fundo da terra?”.
Não é à toa que sugere, então, para esse livro, etiqueta genérica que parece reforçar a consciência desse deslocamento, a de uma novella-rébus. Lembrando que a expressão rébus, se indicativa de uma forma de adivinhação gráfica, aponta, também, para o estágio em que um ideograma não indica mais o objeto que representa, mas o fonograma do seu nome. Um movimento que, no caso de Valêncio Xavier, sinaliza para a transfiguração do seu nome em imagem autoral pública, para a transformação do “ninguém me viu nem me verá”, de O mez da grippe, da fuga para a rua, em O minoutauro, do “ninguém me vê”, de Maciste no inferno, na autoexposição que a publicidade e a distribuição comercial inevitavelmente acarretam.
Zulmira Ribeiro Tavares, como Sebastião Nunes e Valêncio Xavier, não deixa de associar, também, a seu modo, a prática literária a um processo de mortificação. O que fica evidente em Abandono, texto que encerra Cortejo em abril, e trata da perda, aos poucos, das palavras, que “uma a uma, vão se indo” e “não voltam”. Por outro lado, Zulmira se volta, de modo direto, sobretudo no conto que dá título ao volume, para o encaixe entre experiência individual e dimensionamento público do luto. Entre, de um lado, a corrosão no âmbito do tempo vivido, a visualização de crescentes perdas pessoais, vividas no próprio corpo (a respiração, o ar, mais coisas, que passam, diante dos olhos, “uma atrás da outra, vagaroso como passa um cortejo”) e, de outro lado, o enterro de Tancredo Neves, e a história coletiva, reduzida a duas dimensões temporais apenas, a da duração do espetáculo fúnebre e a da sua repetição, dos seus muitos replays (“reprise à noite e depois”). Entre o feriado nacional e o “enredo meio de futrica” que move o conto. Entre o espalhafato, a avenida, dos “Grandes momentos da história”, como assinala Zulmira num outro conto, de O mandril, e o sujeito ao largo, à deriva, lambendo “o silêncio como um gato o seu pires”.
É verdade que esse motivo fúnebre não é exclusivo, no livro, do conto Cortejo em abril. Pelo contrário, manifesta-se nele e se espraia, em seguida, pelos demais textos. Incluindo o “olhar de peixe morto” de Gripe espanhola, o Dia de Finados de Uma senhora, os sinais de mudança e envelhecimento do rosto paterno em O guardador do sol, os “ossos guardados do outro lado da cidade” em Arranjos no tempo, o corpo no caixão em O nada, e os “pensamentos sepultados” no interior dos peixes. Um conjunto de textos que, por sua vez, ecoa, também, outros mais antigos. Como Passamento, de O japonês dos olhos redondos, Uma quase pomba, de O mandril, Aprazimento, de Termos de comparação.
Singulariza-se, no entanto, um texto como Cortejo em abril não só pelo contraste entre o individual e o coletivo, mas pela obliquidade da perspectiva ‒ tanto do narrador com relação ao protagonista, o Consertador de tudo, e deste com relação ao cliente, quanto, também, dos homens de terno preto, do carro oficial, com relação à multidão de populares que acompanha o cortejo fúnebre. E, dado essencial na construção da narrativa e de seus jogos focais (“olhos fixos na Olivetti, guardando minuto de silêncio”), há, ainda, uma operação analógica por meio da qual se aproxima, via condição cadavérica, a dissecação de uma máquina de escrever quebrada à figura mesma de Tancredo Neves (reduzida a uma letra “S”) e ao cortejo fúnebre oficial.
A anatomia da máquina Olivetti (na qual ecoa o cadáver presidencial) permite aproximar, ainda, Cortejo em abril, do “livro-cadáver” de Sebastião Nunes e do autor defunto de Valêncio Xavier. E é impossível não perceber, nessas figurações, outros ecos – dos muitos “autoepitáfios” presentes na poesia de Sebastião Uchoa Leite e José Paulo Paes. Apresentam-se, portanto, como cortejos irônico-fúnebres bem diversos dos espetáculos funéreos públicos, e bem diversos entre si também. Seus focos particulares, como foram assinalados aqui, são a inscrição de classe (no caso de Sebastião Nunes), a exposição ao mercado (no de Valêncio) e a tensão entre experiência pública e individual da morte (no de Zulmira).
Sinalizam ao mesmo tempo, porém, para uma perceptívelsintonia histórica ao problematizarem, cada um a seu modo, a redução da compreensão do mundo ao abatimento diante das leis inexoráveis do destino humano, do mercado ou dos discursos prontos patrióticos, literários ou de classe. Ao se contraporem às recorrentes pompas fúnebres de homens célebres, parecem abrir espaço indiretamente para outros lutos não exaltados, para as muitas mortes silenciadas, sejam elas as da resistência contra a ditadura ou as de grupos minoritários. E apontam, em especial, para o desconfortável lugar social do escritor em meio a um rebaixamento da consciência histórica e da ação política, substituídas, nesse período inicial da Nova República, por uma espécie de afirmação reiterada da ordem do destino e por uma paralisia mascarada de emotividade no interior da sociedade brasileira.