Ensaio Elise Arte sobre foto de reprodução junho.22

 

 

Na nota de curador de Antigos & soltos: Poemas e prosa da pasta rosa (IMS, 2008), de Ana Cristina Cesar (1952-1983), Armando Freitas Filho comenta que publicar os poemas “impublicados” de uma poeta que já morreu é sempre uma forma de traição. Mas, como uma pesquisadora feminista de tradução, não acredito em traição. Desde meados de 2015, pesquiso e traduzo a estadunidense Elise Cowen, uma poeta “singular e anônima” na chamada Geração Beat. Quanto mais leio os versos que ela deixou, acabo enxergando mais nitidamente o gesto da cumplicidade na ternura, em detrimento da lógica de traição.

Não é toa que uso expressões como “singular e anônima” e “cumplicidade na ternura”, de Silviano Santiago – no livro Nas malhas da letra (1988), dentro do ensaio Singular e anônimo – porque foi com ele, com Flora Süssekind, Maria Lúcia de Barros Camargo, Tatianne Dantas e outras pessoas que pesquisam e escrevem, que comecei a perceber que Ana Cristina Cesar seria a tradutora-xamã que atravessaria comigo a ponte da crítica e tradução para chegar em – e trazê-la, em projeto – Elise Cowen.

Elise Nada Cowen (1933-1962), uma jovem de família judia de classe média, que cresceu no Bairro do Washington Heights, em Nova York, tinha tudo para passar despercebida pela história da poesia estadunidense, assim como sua passagem às margens do grupo Beat. Jack Kerouac (1922-1969), Allen Ginsberg (1926-1997) e William Burroughs (1913-1997) compõem a santíssima trindade desse embrião de contracultura que ficou conhecido pela escrita que rejeitava o modo de vida americano e o conformismo trazidos pelas políticas da Guerra Fria, a Guerra da Coreia e o ápice do período macarthista com perseguições e ondas de conservadorismo. Apesar de basicamente ser formada por homens, a Beat, em sua contemporaneidade, contou com algumas membras honorárias como Diane di Prima (1934-2020) e Joanne Kyger (1934-2017), algumas das mulheres que insistiam em serem publicadas e circularem pelas discussões masculinas, apesar de muitas vezes estarem relegadas às funções de esposas, amantes, editoras, datilógrafas e fomentadoras da escrita dos homens.

Portanto, foi na morte que Elise Cowen passou a ser reconhecida como poeta e como parte das mentes a que se refere o primeiro verso de Uivo (1956), famoso poema de Allen Ginsberg, que diz, na tradução de Claudio Willer: “Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura,/ morrendo de fome, histéricos, nus”. Foi justamente no acervo de Ginsberg, espalhado por algumas universidades estadunidenses, que fotos de Elise começaram a emergir, principalmente nesta última década, mostrando a importância do reconhecimento da iconografia de escritoras e artistas pelos estudos feministas. Pelo que sabemos até hoje, Elise não foi publicada em vida. Desde meados de 1964, sabe-se que a família Cowen, após a morte da filha, mandou queimar e doar seus escritos e objetos pessoais por conterem material subversivo como referências ao uso de drogas, bissexualidade, aborto e considerações tratadas como “suicidas”. Desde essa data também, Leo Skir (1932-2014) – um conhecido militante judeu gay e jornalista estadunidense – amigo desde a adolescência de Elise em acampamentos sionistas, foi o responsável por publicar poemas de um suposto caderno que sobreviveu à ira da família. Entre 1964 e 1966, quase uma dezena desses poemas e fragmentos circularam por revistas como a City Lights Journal – ligada à famosa livraria e editora homônima de São Francisco, de Lawrence Ferlinghetti (1919-2021), responsável por publicar livros do grupo – e o primeiro periódico lésbico de alcance nacional, The Ladder.

No dia 27 de fevereiro de 1962, um jornal de bairro publicou que uma mulher de 28 anos foi encontrada morta na calçada de um prédio e que ela poderia ter caído ou pulado. Esse é o único dado disponível (a matéria do jornal é encontrada na internet), mas, desde então, o suicídio é um tema facilmente associado à poética de Elise Cowen, sendo que boa parte dos poemas escolhidos pelo amigo – inclusive alguns com palavras suprimidas, mudança na ordem de versos etc. – apresentam uma dicção deprimida, muitas vezes violenta e obscena, principalmente em relação ao judaísmo. Apesar da morte de Elise Cowen ter causado uma comoção no meio Beat – seu nome passou a figurar em depoimentos e autobiografias –, também serviu de motivação para que uma aura romantizada e condescendente se tornasse preliminar na recepção dos poemas publicados com a curadoria de Skir. Relatos e textos como a autobiografia Minor characters (1983), da escritora e amiga íntima Joyce Johnson – um dos livros mais interessantes para entender como foi ser “coadjuvante” do grupo Beat – reforçam uma personalidade difícil, com crises e internamentos psiquiátricos, porém altamente obsessiva por leitura e escrita.

Como diz Silviano Santiago, no texto citado antes, sobre Ana C. e a relação com quem a lê: “Você endossa uma leitura quando dela se apropria, atestando a sua qualidade e fidelidade ao original, assumindo a propriedade dela.” Durante décadas, os poucos poemas conhecidos de Cowen foram lidos por duas chaves de leitura: a primeira, pela rapidez e uma espécie de descompromisso poético da geração de homens. A segunda, pela melancolia, histeria e histórico de doenças mentais de poetas de sua geração de mulheres como Sylvia Plath (1932-1963) e Anne Sexton (1928-1974). Depois de quase 50 anos, graças aos estudos feministas e a ampliação de antologias na tentativa de recuperação de escritoras, no fim da primeira década do século XXI, o pesquisador Tony Trigilio chegou ao caderno original – na verdade um fichário que mesclava folhas datilografadas e outras escritas à mão – por meio de uma prima de Elise, Ellen Doris Nash, que morreu em 2016.

Depois disso, Trigilio editou em 2014 o Elise Cowen: Poems and fragments (pela extinta Ahsahta Press) com os 91 poemas sobreviventes, fragmentos de notações, algumas imagens fac-símiles e extensas notas comentando a marginália do fichário. Questões como a datação de 1959 e 1960 colaboram, por exemplo, para perceber elementos que se repetem na poética de outras poetas da mesma geração. Por ter morrido no começo da década de 1960, Elise não leu os primeiros livros considerados feministas como A mística feminina (1963), de Betty Friedan e se, por acaso, leu O segundo sexo (1949), de Simone de Beauvoir, foi na tradução biologizante de 1954, da editora Knopf (feita por um biólogo), em que várias partes do texto foram suprimidas e/ou modificadas, como apontam pesquisas atuais no campo dos estudos da tradução. Apesar de muitas críticas feministas considerarem a década de 1950 um lugar onde as mulheres tiveram as vozes suprimidas, hoje é possível ler a poesia de Adrienne Rich (1929-2012) – premiada no começo daquela década, muito antes de ser considerada uma poeta feminista –, Sylvia Plath, Anne Sexton e outras de gerações anteriores como Muriel Rukeyser (1913-1980) e Hilda Doolitlle (1886-1961), percebendo linhas temáticas e amarrações estéticas que são dialógicas e permitem traçar, inclusive, teorias que mostram o diálogo entre as poetas produzindo de lugares diferentes.

Mesmo que haja um fetichismo com a morte de poetas mulheres, Elise Cowen e Ana C. dialogam estritamente pela prática poética. Não apenas na economia do verso, mas também em uma insistência pelo coloquial embebido em percepções ligeiras; ainda, também, pela busca estética a partir do fragmento, da descrição imagética e outras características que parecem traçar um parentesco – talvez, uma palavra mais interessante que genealogia – de poetas que, antes de tudo, são leitoras.

Elise tem alguns poemas-minuto, como os de Ana C.: “sob a cebola desolada/ sonhos cegos numa sala verde” (tradução minha). Eles trazem o que Silviano Santiago chamou de arte de ser “singular e anônima”, por apresentar algo tão simples e corriqueiro quanto observar uma cebola e, ao mesmo tempo, ser bastante específica para quem lê. Inclusive, a cebola dá espaço para pensar em outra que aparece em Cut, de Sylvia Plath. Como quem olha o cigarro sendo fumado distraidamente, as poetas se encontram na sala verde.

No caso de Ana C., há também a busca pela via da tradução, que se metamorfoseia na prática poética, as versões-em-eco, nomeadas por Flora Süssekind. Aliás, um texto de Flora sobre a poeta carioca – Até segunda ordem não me risque nada (7Letras, 1995), no qual a autora parte de Ana C. como tradutora – traz uma profusão de similaridades que vem ao encontro de Elise Cowen: a crítica literária observa, na composição do poema, um exercício de extensão da tradutora. Separadas em menos de 20 anos, Ana C. e Elise C. estão lendo as mesmas poetas, como Marianne Moore (1887-1972) ou Emily Dickinson (1830-1886), e, como no exercício da tradução da brasileira, a estadunidense emula os versos de suas poetas favoritas.

Por exemplo, dos mais de 90 poemas de Elise Cowen, pelo menos 10 fazem referências explícitas ou formais à Emily Dickinson, muito provavelmente uma de suas leituras mais recorrentes na época. Vale lembrar que foi em 1955 que saiu a publicação completa dos poemas da chamada “bruxa branca de Amherst”, por Thomas Johnson, causando um verdadeiro alvoroço nas escritoras da época. Versos e estrofes mais curtas, métrica alinhada e construções com uma semântica mais obtusa e com metáforas complexas faziam as vezes na prática poética.

Há vários exercícios dickinsonianos ao longo da escrita de Elise, mas o destaque mesmo vai para o poema intitulado Emily, que, além de carregar o primeiro nome em forma de vocativo (trazendo o endereçamento), faz uma série de referências afetivas à escritora seja na poesia ou em elementos que incluem “broches de abelha”, por exemplo. A voz poética inicia assim o poema “Emily,/ vem o verão/ você irá tirar seu/ broche de abelhas/ que me cutuca/ eu irei tirar meu jeans/ fedido” (tradução provisória feita por mim) e segue construindo uma cena, das duas “nuas”, correndo pelo sol. Para quem assistiu a série Dickinson, que brinca e faz releituras da poeta do século XIX, é fácil visualizar Emily e Sue, só que em um poema escrito mais de 50 anos antes.

É em Cenas de abril (1979) que percebo Ana C. sorrindo de forma marota para esses poemas de Elise C., que poderiam nunca ter sido lidos, mas que, na minha prática de leitura, são colocados na mesa com Outras. O poema mais longo do caderno da estadunidense é composto de 13 estrofes de quatro versos, todas seguindo a métrica da quadra. Como Dickinson, a poeta subverte a lógica do ritmo que prevê uma sonoridade infantil, construindo um corpo poético grotesco que se faz nos dois primeiros versos e se desfaz nos dois últimos. Na primeira estrofe, temos “Peguei as peles dos cadáveres/ E as tingi de azul dos sonhos/ Ah, posso usá-las em qualquer lugar/ Sentei-me em casa com esse jeans” e segue tentando montar um corpo-criatura para dar conta do poema. A violência metrificada diante da impossibilidade do poema conversa de perto com primeira lição, segundo poema de Cenas de abril, no qual Ana C. fala o que é, didaticamente, o poema; e ainda com o terceiro poema do mesmo livro, que faz referência à violência da feitura: “olho muito tempo o corpo de um poema/ até perder de vista o que não seja corpo/ e sentir separado dentre os dentes/ um filete de sangue/ nas gengivas”.

Apesar de tantos anos, vão se abrindo os caminhos pelos versos de Elise Cowen, fazendo que a tradução também seja mutável. Como em Ana C., talvez sejam necessárias muitas notas e variações de versão para que não se percam nem os ritmos, nem os esboços de vozes que se constroem nesses versos que, vivendo em épocas específicas e quase como uma fotografia, captam situações muito corriqueiras que podem dizer muito sobre a vida naquele momento. Como dizem os versos de Adrienne Rich, na tradução de Marcelo Lotufo: “nós passamos mas nossas palavras ficam/ tornam-se responsáveis/ por mais do que pretendíamos// e isso é privilégio verbal”. As leitoras-tradutoras seguem no compromisso de habitar nas possibilidades.