Raymundo Faoro (1925–2003) está entre os pensadores do século XX conhecidos por suas influentes interpretações sobre os problemas e impasses da sociedade brasileira. Em Os donos do poder (1958), reeditado recentemente pela Companhia das Letras, Faoro elaborou representações sobre o passado brasileiro, destacando o caráter patrimonial e autoritário do Estado desde o período colonial. O autor é também conhecido por suas abordagens sociológicas da literatura. No ensaio Machado de Assis: A pirâmide e o trapézio (1974), como disse Alfredo Bosi, Faoro faz um “corpo a corpo” com as personagens e as situações no Império em relação à máquina do poder centralizador.[nota 1] Entre 1977 e 1979, foi presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, projetando-se entre as principais vozes da redemocratização no final do período de ditadura civil-militar. Eleito para a Academia Brasileira de Letras em 2000, tomou posse já próximo de sua morte.
Em 1943, Raymundo Faoro possui dezoito anos de idade e mora em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, para onde mudara-se quase dois antes com o intuito de ingressar na Faculdade de Direito, o que fará em 1944. Nos últimos anos do Estado Novo, a cidade está se tornando um dos principais polos industriais do país. No centro, os transeuntes testemunham ruínas, demolições e sobrados patriarcais convivendo com novas e mais verticais construções, tal como observou Gilberto Freyre em visita feita no ano de 1941.[nota 2] As ruas são alargadas para a passagem de mais veículos. Os ideais burgueses de “ordem” e “limpeza” vão se impondo e expulsando as classes populares para arrabaldes onde terrenos alagadiços se convertem em bairros fabris, enfatizando as desigualdades de raça e classe na cidade.
No mês de julho, Faoro mora em um dos quartos do Hotel Palácio, no centro da cidade. Os anúncios nos jornais contam que o hotel oferece quartos mobiliados e café da manhã para os seus mensalistas. Em sua escrivaninha, ele escreve as primeiras páginas do que diz serem os seus “diários pessoais”. Os cadernos usados, de capa dura e de bom acabamento, foram comprados na Livraria do Globo e na Casa Lyceu, a cerca de dez minutos de caminhada desde o hotel. A escrita, em caligrafia caprichada, é minuciosa e o escritor parece demorar-se na escolha por palavras e no encadeamento das ideias. As rasuras não são frequentes. Faoro – importante lembrar – é minoria num país onde mais da metade da população com idade acima dos quinze anos de idade é classificada oficialmente como analfabeta.
Ele escreve sobre as obras literárias na medida em que as lê. Entre os primeiros autores, estão Eça de Queiroz, Machado de Assis, Aluísio Azevedo e Jorge Amado. As observações escritas são produto de um alinhamento planejado entre o que lê nesses livros e as situações que vive na cidade. Na Filosofia e na Sociologia, os autores alemães são mais presentes por meio das versões em circulação a partir do mercado argentino de traduções: Friedrich Nietzsche, Ferdinand Tönnies, Max Weber, Max Scheler, Oswald Spengler e os diários de viagem de Hermann von Keyserling.
Enquanto escreve, Faoro deve ouvir os ruídos das ruas, e isso faz de seu texto, direta e indiretamente, um produto da cidade tal qual ela é experimentada por ele. Ele está na Rua Vigário José Inácio, por onde transitam os membros do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Construção Civil de Porto Alegre e, ao anoitecer, o público do Teatro Carlos Gomes em busca das comédias populares. Em setembro estreará nos cinemas locais o filme Casablanca. O cinema norte-americano é bastante comentado pela cidade, estampa matérias da Revista do Globo e atraí o público nos cinemas Central, Vera Cruz, Imperial e Roxy.
Desde o início dos anos 1920, entre o Largo do Medeiros, a Rua da Praia e o Parque da Redenção, nos cafés e bares, grupos de jovens poetas, cronistas e alguns aspirantes à política procuram representar a cidade como espaço da novidade e da modernidade, em oposição à imagem provinciana. Em 1940, Mário Quintana (1906–1994) publica o seu primeiro livro, A rua dos cataventos, dando início a uma série de poemas sobre a vida nas ruas de Porto Alegre. “Olho o mapa da cidade/ Como quem examinasse/ A anatomia de um corpo...”. Naquele ano de 1943, Érico Veríssimo (1905–1975) publica o romance O resto é silêncio. As abordagens sobre a violência urbana e os dramas anônimos da cidade causam protestos na alta burguesia local, demonstrando que os modos de representar a cidade encontram-se em disputa.
No Brasil das décadas de 1930 e 1940, o mercado de livros encontra-se em expansão e Porto Alegre é peça chave desse “surto editorial”.[nota 3] Em 1943, a Seção Editora, braço editorial da Livraria do Globo, completa treze anos de existência e, sob a coordenação de Veríssimo, traduz e publica, entre outros, James Joyce, Virginia Woolf, Thomas Mann, Aldous Huxley, André Gide e Balzac. Na literatura nacional, a editora já havia publicado, entre outros, Machado de Assis, Álvares de Azevedo, Câmara Cascudo, Cecília Meireles, Graciliano Ramos, Murilo Mendes, Oswald de Andrade e Mário de Andrade.[nota 4]
Muitos desses autores chegam aos cadernos de Faoro, que declara dedicar a maior parte do seu tempo à leitura, em resposta à decepção que sente diante de uma Porto Alegre muito provinciana, que nada tem a ver com as representações da metrópole moderna presentes na Comédia humana de Balzac. A escrita organiza e arquiva fatos cotidianos e reflexões de ordem intelectual, mas também é representada pelo escritor como refúgio de um jovem recluso e solitário.[nota 5]
As leituras que faz misturam-se às suas experiências ao assistir os círculos locais de sociabilidade. Na escrita, sempre seletiva, se precipitam vozes que ressoam pela cidade. Ouvimos grupos de intelectuais e políticos, e os descendentes de alemães que se encontram, segundo ele, para fazer música enquanto consomem chopps nos bares Zitter Franz e Antonello. Lá estão as famílias burguesas cujos modos ecoam pelos salões do Clube do Comércio e do Country Club, e a curiosidade popular pelo que chama de “crimes horrendos” e pelas “lutas de boxe” estampadas em reportagens sensacionalistas publicadas em jornais e revistas locais. Por enquanto, esses movimentos, na escrita, parecem prevalecer sobre as vozes vindas dos arrabaldes, mesmo tendo registrado, em janeiro de 1944, a leitura de O cortiço, no qual Aluísio Azevedo — segundo ele, um “perfeito anotador de situações sociológicas” — descreve as mazelas sociais e raciais do Rio de Janeiro em modernização.
O foco de Raymundo Faoro está em descrever a família burguesa local. Não sabemos, no entanto, distinguir onde terminam os tipos que circulam pelo centro da cidade e onde começam as personagens de Machado de Assis. O que ele chama de “desaparecimento das emoções” na Porto Alegre daqueles anos parece o mesmo na Europa pós-guerra de Huxley, como neste trecho de maio de 1946 (aqui na grafia da época):
“As discussões entre pais e filhos referem-se, na idade infantil, sôbre o bem trajar e a procura de companhias do mesmo escalão social e econômico. Consêlho este inculcado com mais paixão às moças. Adultos, os homens, gozam de absoluta liberdade, voltando para casa pela madrugada, sob o sorriso complacente dos ‘velhos’. [...] Enfim, praticam a vida social sem procurar-lhe inovações, aceitando-a como é. E, no afã de manter e aumentar o patrimônio não cogitam da moralidade das ações que praticam. É como si dissessem: ‘em questão de dinheiro tudo é permitido’”.
Em 1935, a “cidade moderna” é objeto de estima e estilo entre os mais distintos escritores locais. Veríssimo já satirizava a burguesia metropolitana. Dyonelio Machado (1895–1985) destacava o dinheiro como máquina que devora o homem simples na cidade.[nota 6] Na memória de alguns poetas, como Theodomiro Tostes (1903–1986), a escrita era forma de evadir e escapar da rotina provinciana de Porto Alegre. Isso nos leva a crer que, nos diários que estamos lendo, não há como discriminar os seus sentimentos individuais de suas experiências e aspirações diante dos padrões e estilos literários em vigência na época.
Como diz Lilia Schwarcz,[nota 7] levar a sério um indivíduo é comprometer-se com a investigação do seu papel em meio a um conjunto de referências no seu contexto. Ao escrever, Faoro produz sentidos sobre o seu isolamento na capital, mas também procura construir uma imagem de si estabelecendo relações com o contexto social e cultural da época. Leitor dos diários do escritor André Gide, ele sabe, ademais, que naquele atelier poderão nascer obras futuras. Mais ainda, ele provavelmente sabe que a escrita de diários, desde o final do século XIX, como disse Sergio Miceli, é uma prática comum entre intelectuais, políticos e artistas, podendo servir como documento capaz de provar, para o público, no futuro, a mais precoce vocação do escritor.
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Entre 1943 e 1952, em Porto Alegre, Raymundo Faoro escreveu 20 volumes de diários, totalizando, aproximadamente, 6,8 mil páginas manuscritas cujo conteúdo é totalmente inédito. O arquivo é objeto de um projeto de pesquisa pós-doutorado baseado no Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), sob a supervisão da professora Lilia Schwarcz e com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
NOTAS
[nota 1]. Ver: Alfredo Bosi, Raymundo Faoro leitor de Machado de Assis (em Estudos Brasileiros, v.18, no 51, p.355–376, 2004).
[nota 2]. Em 1946, Freyre publicou o artigo Sugestões para o estudo histórico-social do sobrado no Rio Grande do Sul, no número 7 da revista Província de São Pedro, editada pela Livraria do Globo.
[nota 3]. Para maior compreensão sobre o período editorial, ver Intelectuais à brasileira, de Sergio Miceli (São Paulo: Companhia das Letras, 2001), e o artigo Retratos do Brasil: Um estudo dos editores, das editoras e das “Coleções Brasilianas” nas décadas de 1930, 40 e 50, de Heloisa Pontes, publicado na BIB (Rio de Janeiro, n°26, p. 56–89, 1988).
[nota 4]. Sobre a Livraria do Globo sob a coordenação de Veríssimo, ver A Globo da Rua da Praia, de José Otávio Bertraso (São Paulo: Globo, 1993), e Um grande inventor, texto de Plínio Martins Filho e Jadyr Pavão publicado em Cadernos de Literatura Brasileira: Érico Veríssimo (Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, no16, novembro de 2003).
[nota 5]. Para o ensaísta Philippe Lejeune, em On diary, o refúgio solitário é um traço comum presente nas principais definições de um diário.
[nota 6]. Para maiores aprofundamentos, ver Literatura e cidade moderna: Porto Alegre 1935, de Claudio Cruz (Porto Alegre: Edipucrs, 1994).
[nota 7]. Ver Biografia como gênero e problema, de Lilia Moritz Schwarcz (em História Social, n.24, p. 51–73, 2013).