Edouard Glissant abril.22 arte sobrewikimediacommons

 

Um enorme conjunto de cordas náuticas atravessa o pavilhão Ciccillo Matarazzo de um lado a outro, amarra-se em alguns de seus pavimentos e desemboca numa gigantesca âncora de mais de uma tonelada. Trata-se de Complexo Atlântico: Cordas, do carioca Arjan Martins, uma das instalações mais impactantes da 34ª Bienal de São Paulo, exposta de setembro a dezembro de 2021. Remetendo à triangulação comercial entre Europa, África e América mantida durante séculos pelas práticas da escravização e do tráfico negreiro, a obra também traz à mente uma das vozes evidenciadas no projeto curatorial dessa edição do evento – a do martinicano Édouard Glissant (1928-2011), pensador de língua francesa que dedicou grande parte de seus escritos à crítica do colonialismo e à invenção de um outro modo de compreender e enunciar o mundo decorrente desse sistema. 

Com efeito, no índice onomástico do catálogo da mostra, há inúmeras ocorrências do nome de Glissant, bem como de palavras que fazem parte de seu universo nocional, a exemplo de “Relação” e “opacidade”. O intelectual afro-caribenho comparece, assim, ora como inspirador teórico de enunciados centrais para a Bienal, ora como presença mais matérica, por meio dos manuscritos compilados em Corte/Relação: Antonin Artaud e Édouard Glissant, seção organizada por Ana Kiffer (PUC-Rio), e de sua entrevista com o cineasta malinês Manthia Diawara, exibida na videoinstalação Sembène: A criação do cinema africano. No texto que escreve para o catálogo, o curador adjunto Paulo Miyada explica: “Quase sempre tendo os escritos de Édouard Glissant como bússola, tentamos promover encontros entre distintos artistas, poéticas e obras tendo como premissa que o conceito glissantiano de Relação é mais importante do que a equivalência, e que a opacidade é uma defesa imprescindível contra a brutalidade da transparência imposta pelo olhar colonial”.

É notável que, no Brasil de hoje, os escritos e a figura de Édouard Glissant passem a organizar – tal como os nós que direcionam as cordas na instalação de Martins, ou a bússola evocada por Miyada – algumas das linhas de força de um acontecimento artístico tão potente, em termos estéticos e políticos, quanto a Bienal. Não que essa atuação não fosse de alguma maneira prevista e mesmo desejada por sua obra; ao contrário, esta defende o tempo todo a consciência das relações entre povos e imaginários, entre a visão das paisagens e a precipitação de suas poéticas. É o que sugere, de forma lapidar, a expressão “poética da Relação”, um dos principais enunciados da Bienal e título de um livro de ensaios glissantiano publicado aqui, pela primeira vez na íntegra, em 2021, com tradução de Marcela Vieira e Eduardo Jorge Oliveira, numa edição da Bazar do Tempo também coordenada por Ana Kiffer. Vale mencionar que, vindo a público originalmente em francês no ano de 1990, o volume já havia sido objeto de uma tradução portuguesa, de 2011, no quadro de um programa de valorização das culturas africanas e de suas diásporas. Longe, portanto, de constituir algo não visado por Glissant, o estágio atual de sua presença no Brasil – coroado pelo lançamento de Poética da Relação em plena Bienal de São Paulo, num debate que contou com Jacopo Crivelli Visconti, curador geral do evento, e com a professora Lígia Fonseca Ferreira (Unifesp) – parece consolidar um momento mais amplo de sua recepção e circulação no Brasil e, no limite, talvez aponte para a realização de alguns dos propósitos mais radicais de seu pensamento. 

De fato, a multifacetada obra glissantiana, que se espraia por ensaios, romances, peças de teatro e coletâneas de poemas, começa a ser introduzida nos círculos literários e acadêmicos brasileiros 30 anos após suas publicações iniciais, situadas na França dos anos 1950. Em 1986, chega às estantes O quarto século (Editora Guanabara, tradução de Cleone Rodrigues), primeiro e único dos romances de Glissant traduzidos por aqui. Na década seguinte, sua recepção teórico-crítica se afirma mediante os trabalhos pioneiros de Eurídice Figueiredo (UFF) e Diva Damato (USP), com destaque para o livro resultante da tese de doutorado da última, Édouard Glissant: Poética e política (1995), que segue sendo referência incontornável no tema. Mas é somente com a virada do século que vêm a público, em edições integrais, dois volumes de ensaios traduzidos por Enilce Albergaria Rocha (UFJF) para a editora da  Universidade Federal de Juiz de Fora: Introdução a uma poética da diversidade (2005) e O pensamento do tremor/ La Cohée du Lamentin (2014), este último em parceria com Lucy Magalhães. 

É preciso salientar que foi o trabalho dessas gerações envolvidas na produção de pesquisas acadêmicas (artigos, dissertações, teses) e de traduções o que pavimentou as bases para o atual momento de recepção crítica e editorial da obra glissantiana. Tanto isso é verdade, que o fenômeno se estende para numerosos outros autores e autoras provenientes do Caribe, em toda a sua diversidade étnico-racial, cultural e linguística. Assistimos, nos últimos anos, a um crescimento inédito do número de livros caribenhos disponíveis em português brasileiro, com retraduções de textos já canônicos dos martinicanos Aimé Césaire e Frantz Fanon e da guadalupense Maryse Condé, além da introdução de escritos, em prosa ou verso, oriundos de países como Haiti, Cuba, Santa Lúcia e Antígua e Barbuda. 

Em diversos períodos e círculos intelectuais, a tradução foi caracterizada como uma atividade que, a partir de elementos estrangeiros, é capaz de fecundar a língua e a cultura receptoras, transformando e mesmo enriquecendo suas poéticas. Em paralelo a tal visão teórica consagrada, pode-se interpretar essa presença tradutória crescente de obras caribenhas no Brasil como um fenômeno inserido na lógica da crioulização, noção de Glissant que designa um “movimento perpétuo de interpenetrabilidade cultural e linguística”1 típico da configuração planetária contemporânea, em que os choques relacionais ocorrem durante todo o tempo e em inúmeras direções. Assim, a tradução, caracterizada pelo autor como uma arte voltada para o futuro – justamente a dimensão temporal em que se multiplicam os encontros e desencontros das línguas e culturas – é também, para o martinicano, um campo em que se dá uma possibilidade de práxis dos conceitos de Relação e crioulização.

Devemos, pois, celebrar efusivamente o anúncio da chegada de uma coleção de fôlego dedicada à tradução de Édouard Glissant. De maneira sintomática, Poética da Relação, o primeiro dos volumes publicados pela editora Bazar do Tempo, marca, na trajetória do autor, o aprofundamento da busca por um tipo de pensamento sutil e tateante, ensaístico, no qual o propósito manifesto de resistir às categorias universalizantes da razão ocidental se alia a um modo de expressão propriamente poético. É no bojo desse esforço que a Relação, já anunciada em textos anteriores (sobretudo em Le discours antillais, de 1981), ganha terreno como noção matricial de uma estratégia de compreender e enunciar a dinâmica caótica do mundo contemporâneo – algo que poderíamos nomear como um saber relacional. No prefácio ao volume, os professores e escritores Ana Kiffer e Edimilson de Almeida Pereira (UFJF) enfatizam a centralidade do sujeito afrodiaspórico em sua constituição, já que “Glissant indica que tal saber se perfaz no encontro entre povos, culturas, línguas que até ali não necessariamente faziam trocas nem se comunicavam entre si” e que “(…) é no processo de contaminação de todas essas diferenças, ali reunidas sob as correntes da escravidão e do colonialismo, que se libera o saber da Relação”.

As cordas de um canto a outro do pavilhão da Bienal podem simbolizar, também, a apropriação desse saber que se vale da circulação planetária operada pelo colonialismo, para se insurgir contra ele e seus efeitos nefastos, alguns dos quais presentes até hoje. Daí a importância conferida por Glissant ao sujeito afrodiaspórico, descendente do que intitula o “migrante nu”, o escravizado que chega ao novo território desprovido de seus objetos, das imagens de sua terra, de suas tradições culturais e religiosas, das pessoas que conhece e mesmo de sua língua. Porém, não se trata da busca por uma essência ou identidade fixa – algo visado nas formulações iniciais do movimento da Negritude, idealizado por jovens estudantes negros na Paris dos anos 1930 e 1940 – e, sim, da valorização de um modo de ser (que Glissant chamaria de “ente”) mais pautado nas errâncias rizomáticas do que na filiação e no enraizamento únicos. Não à toa, o ensaio inaugural de Poética da Relação, intitulado A barca aberta, retorna à imagem do navio negreiro, cujo ventre se abre para o abismo oceânico: eis uma cena de origem possível para as sociedades crioulizadas das Américas e, talvez, para toda a experiência de um mundo em Relação. Como diz a canção Yayá Massemba, de Roberto Mendes e José Carlos Capinan, interpretada por Maria Bethânia, “Quem me pariu foi o ventre de um navio/ quem me ouviu foi o vento no vazio”.

Para além de alinhavar poéticas e fazeres artísticos tão ricos quanto variados, a presença renovada dos escritos de Édouard Glissant no Brasil de hoje talvez possa trazer outras contribuições. Num momento de crise civilizacional profunda, em que o país é assolado por projetos fascistas e autoritários de dimensões assustadoras, o alargamento da tradução de sua obra representa mais do que uma novidade editorial bem-vinda – é uma ferramenta intelectual e política crucial para enxergarmos nossa realidade, cuja dimensão crioulizada foi tantas vezes encoberta pelas ideologias oficiais, e para repropormos nossa relação com tal espaço. Na breve nota Imaginário, ao início de Poética da Relação, lê-se: “Pensar o pensamento geralmente significa retirar-se para um lugar sem dimensão, onde apenas a ideia do pensamento se obstina. Mas o pensamento realmente se espaça pelo mundo”. Eis um dos desafios propostos por Glissant: repensar e reimaginar o mundo, sem deixar de ocupar seus espaços.

 

NOTA

[nota 1] Declaração dada em entrevista a Lise Gauvin, publicada na revista Études françaises (v. 28, número 2-3, outono-inverno de 1992, p. 21).