Em sentido horário: Michael Löwy, Walter Benjamin, André Breton, Mina Loy
“A existência está em outro lugar”, afirma André Breton (1896-1966) no conhecido Manifesto surrealista (1924), registro teórico-cultural-literário que se faz presente em muitas das discussões propostas sobre o movimento porque abarca, a princípio, as premissas de um grupo que tentou organizar os modos de existência a partir de olhos invertidos, o invisível que se conjura e se desloca. Pensar o outro lugar apontado por Breton, e observado ao longo das produções artísticas, é uma oportunidade de conhecimento de que o surrealismo esteve em constante desencaixe ao longo de suas construções e ações, pois faz parte de sua vivência um contexto errante e difuso.
As características de inquietação e desmande que atravessaram a vanguarda no início do século XX, em meio aos debates sobre o inconsciente e a loucura – através de uma abordagem marxista –, me parecem suficientes para realocá-lo ao contemporâneo, neste momento no qual estamos vivendo sob padrões autoritários de extrema direita. Nesse contexto, o que significa, então, apresentar aos leitores brasileiros uma espécie de “biblioteca surrealista”? Com que tipo de pensamento estamos em contato quando encontramos traduções dessas obras disponíveis?
A 100/cabeças, editora lançada em 2020, surgiu com o desejo de publicação de autores que estejam ligados ao surrealismo e ao pensamento crítico, construindo, dessa forma, um catálogo que se pretende inédito em termos de leitura surrealista no Brasil. Na lista de publicações, livros como: Carta à vidente, de Antonin Artaud (1896-1948), um compilado de escritos de René Crevel (1900-1935), Escritura estilhaçada: Manifesto feminista, notas sobre a existência e outros escritos, de Mina Loy (1892-1966), O cometa incandescente: Romantismo, surrealismo, subversão, do pensador marxista Michael Löwy e Lá embaixo, de Leonora Carrington (1917-2011).[nota 1] Os livros acompanham textos destinados à fortuna crítica dos autores, o que ajuda a localizar a obra dentro da historiografia e da configuração estética do surrealismo. Com um início diverso em termos temáticos, abrangendo também a literatura de mulheres surrealistas – que, por muito tempo, estiveram em segundo plano nas análises do movimento –, a editora aparece como um ponto de curva importante nessa ideia do que podemos interpretar como “biblioteca surrealista”.
Este texto não se propõe como um revisionismo teórico e metodológico do surrealismo, mas, sim, como uma chance de mapearmos, mesmo que brevemente, caminhos para a recepção das obras e das ideias do movimento no nosso recorte do presente. Ao longo dos anos, Breton e outros teóricos e artistas surrealistas passaram por diversos questionamentos, atravessando períodos de renovações acerca de quais as diretrizes e os conceitos que formavam as práticas do movimento. O processo de maleabilidade, tanto discursiva quanto nas ações performáticas e artísticas, fez com que as definições do surrealismo estivessem em constante indagação mesmo para os seus fundadores.
Essa questão pode ser vista, por exemplo, na edição número 4 de La Révolution surréaliste. No texto de abertura, intitulado Por que assumo a direção de La Révolution surréaliste, Breton observa que, quando a contradição se mostra dentro do grupo, não precisa ser encarada como um problema: “O surrealismo é uma força de oposição absoluta, ou um conjunto de proposições puramente teóricas, ou um sistema alicerçado na confusão de todos os planos ou a primeira pedra de um novo edifício social? Conforme a resposta que lhe pareça exigir semelhante questão, cada um se esforçará por atribuir ao surrealismo tudo o que for possível: a contradição não nos deve assustar…”.[nota 2]
Para os surrealistas, existe um tipo de estar no mundo que não se dá pelo que é conhecido, padronizado, homogeneizado; o movimento sempre remeteu a algum tipo de revolução, ao estar em permanente experiência subversiva em relação à lógica burguesa que se instaurou na modernidade, o desejo de jogar negativas em direção ao futuro do que era tido como atraentemente moderno. Ser futurista, no surrealismo, é sonhar com o outro lugar, um espaço de delírio. Dessa maneira, a ligação entre o pensamento surrealista e o levante político está em pauta como contraponto à sociedade burguesa e, por meio dessa leitura, podemos analisar como as proposições do surrealismo aproximam-se do marxismo. Walter Benjamin, em um dos textos mais celebrados sobre o movimento,[nota 3] afirma que os surrealistas possuíam um conceito “radical de liberdade” e que mobilizavam “para a revolução as energias da embriaguez”. Um movimento-cometa que possuía em sua materialidade um tipo de iluminação etérea, marcada pela sua órbita irregular e livre.
UM CORPO GELADO SE APROXIMA DO SOL
Em O cometa incandescente: Romantismo, surrealismo, subversão, o pensador marxista Michael Löwy desenvolve a sua tese de que o surrealismo está em confluência com a teoria marxista a partir (também) de suas possíveis aproximações com o romantismo. Na abertura do livro, Löwy faz referência ao Segundo manifesto do surrealismo, publicado em 1930, no qual Breton fala que os surrealistas estavam de acordo com a afirmação, do ponto de vista histórico, de que eles eram como “a cauda do cometa romântico”. Dessa forma, observa-se que existe uma espécie de continuação entre os dois movimentos, mas, o autor destaca que essa sequência foi feita de forma seletiva pelos surrealistas, de maneira a insistir no que de revolucionário manteve-se de um para outro.
Escreve Löwy: “Mas o que o Romantismo significa para os surrealistas? Breton abordara a questão em sua conferência no Haiti sobre O conceito de liberdade dos românticos (1945): ‘A imagem do Romantismo que nos foi imposta pelos estudiosos é uma imagem falsificada. O uso de categorias nacionais e estereótipos absurdos que somente separa gêneros literários serve para impedir a consideração do movimento romântico como um todo’ (Breton). O surrealismo situa-se claramente dentro dessa continuidade temporal do Romantismo como ‘estado de espírito’. No entanto, a leitura surrealista romântica é altamente seletiva. É uma tentativa audaciosa de atualizar os momentos revolucionários latentes dos escritores românticos, lendo-os, por vezes, ‘a contrapelo’”. Os surrealistas sentiam-se conectados ao Romantismo por meio de uma leitura antagônica à burguesia, ao positivismo e à vertente utilitarista da modernidade como, por exemplo, quando os românticos abordavam a natureza por meio de alusões e sensações mágicas, poéticas. Diante da ode às máquinas, os surrealistas também estavam nesse lugar de fascínio com o natural que se torna místico e onírico.
Dessa maneira, quando temos o ímpeto de construir uma leitura contemporânea do surrealismo, a partir de uma visão marxista revolucionária, é necessário que se questione não só os rumos político-sociais de extrema direita que os países – em especial, o Brasil e outros do continente latino-americano – estão vivenciando, mas também as formas como os sujeitos sustentam a presença de seus processos inconscientes e dos seus próprios recursos revolucionários que, ainda neste momento pandêmico, tornam-se cada vez menos corpóreos e mais digitais. Como é possível delirar e manter uma relação de desobediência ante o urbano – entre outras possíveis – quando ainda continuamos em oscilação de confinamentos, angústias e medo?
Uma das figuras em destaque no livro de Löwy é o escritor, jornalista e ativista peruano José Carlos Mariátegui (1894-1930), um importante nome para o marxismo latino-americano e que, ao longo de suas análises, também expõe os vínculos entre surrealismo e romantismo. Para ele, os surrealistas demonstraram uma visão muito exata da “missão do espírito” e, em seus escritos, Mariátegui defende que nenhuma outra vanguarda europeia teve a “significação e o conteúdo histórico” do surrealismo. Nesse sentido, podemos, então, olhar para o surrealismo como uma fresta que se abre diante do que de mais íntimo e desconhecido temos – nosso espírito, nosso inconsciente – e da força de um coletivo não institucionalizado, livre em sua ação de tornar a imagem encantamento contra um regime dominante capitalista, excludente em sua essência. Assim, temos uma brecha surrealista, mesmo neste exato momento de perigo, luto e incertezas, de nos tornamos atentos o suficiente para seguir com a nossa existência em outro lugar.
No poema Bomba-relógio, a escritora e artista londrina Mina Loy[nota 4] parece ter capturado o que é estar aqui, exposto ao tempo imparável, preso ao que parece nunca mais voltar ou partir: “O momento presente/ é uma explosão/ uma cisão/ de passado e futuro/ deixando/ estes valorosos desprezíveis/ as ruínas (…)”. De explosões são feitos cometas, revoluções e os nossos sonhos, espaços que sempre vão incorporar, ao mesmo tempo, ruínas, contradições e a chance de nos reerguemos com toda a loucura e o absurdo que nos constituem como sujeitos surrealistas.
NOTAS
[nota 1]. Escrevi sobre este livro e a importância da obra literária de Leonora Carrington também para o Pernambuco, na edição de julho de 2021, disponível clicando aqui.
[nota 2]. A tradução que utilizo está disponível no livro História do surrealismo, de Maurice Nadeau (São Paulo: Perspectiva, 1ª edição de 2008; tradução de Geraldo G. de Souza), obra que ajuda na compreensão da cronologia e dos desdobramentos da vanguarda em questão.
[nota 3].Trata-se do texto O surrealismo: O último instantâneo da inteligência europeia, publicado em 1929, no qual Benjamin adota um ponto de vista que perpassa as características revolucionárias do movimento e ressalta o argumento de que a cultura é um campo central no desenrolar do marxismo como projeto político.
[nota 4]. O poema faz parte do Escritura estilhaçada: Manifesto feminista, notas sobre a existência e outros escritos, com tradução de Maíra Mendes Galvão.