Ensaio Piglia Reprodução Editora Todavia

A atração que sentia Ricardo Piglia (1941-2017) pela literatura policial, por suas lógicas, por seus métodos, pode ser encontrada desde muito cedo – e ser catalogada como um interesse persistente e perene. A investigação que se orienta e se desvia pela biblioteca, a cidade e a delegacia está contida em todos os seus romances, desde a busca por um desaparecido ou por um homem que, em algum momento, deseja desaparecer (Respiración artificial), a trama de conspirações em quartos de hotel, em endiabradas conjurações que tocam tanto o misterioso como o político (La ciudad ausente), a perseguição policial como eixo central e direto da narrativa, em seus caminhos duros de caçada, delírio e enfermidade (Plata quemada) e, ainda, no espaço em que as discussões contemporâneas se tensionam com o terrorismo e a subversão, quando os elementos policiais se infiltram no ambiente erudito e universitário (El camino de Ida). 

Vários desses laços não se restringem aos romances e alcançam não só o ensaio (lembremos de El último lector), mas também a narrativa curta, e se mostram visíveis desde os primeiros contos. Estão presentes na investigação sumamente literária de Nombre falso e nas peças mais recentes do autor no gênero, como são Los casos del comisario Croce (2018), volume póstumo e ainda inédito no Brasil, preparado nos últimos anos de vida e escrita de Ricardo Piglia. A montagem da edição demonstra o impulso do autor em efetuar um duplo retorno: ao conto, depois de vários anos dedicados à organização dos Diarios de Emilio Renzi, e a um personagem que encarna uma visão bastante singular do que pode ser a literatura policial concebida na Argentina por um dos maiores leitores do gênero, objeto que, para Piglia, mereceu seleções para antologias, temas para ensaios e, como se viu, farto material para a composição literária. 

O comisario Croce (função que, em tradução livre, pode se aproximar da exercida por um delegado de polícia em uma localidade do interior) havia surgido na obra de Piglia em Blanco nocturno, romance de 2010 que funda não apenas o personagem que apareceria, em reiteração, nos textos futuros, mas estabelece espaços e circunstâncias retomados nos relatos por vir. Cabe ao delegado Croce, na ocasião, desvelar o confuso assassinato de um porto-riquenho num povoado da província de Buenos Aires que se encontra paralisado pelo crime e anseia pelos desenlaces e as repercussões. Estamos, no calendário da literatura de Piglia, no começo dos anos 1970, às vésperas de profundas mudanças políticas e econômicas no país e no centro de uma intriga provinciana que mescla os sobrenomes das famílias tradicionais do lugar, a obscura chegada de um estrangeiro que termina assassinado e a especulação financeira que toca as terras e a indústria. 

É também em Blanco noturno que terá lugar o primeiro encontro de Croce com Emilio Renzi, personagem onipresente no universo narrativo de Piglia e conhecido alter ego do autor. Enviado de Buenos Aires, onde atua como repórter do jornal El Mundo, Renzi colabora em surdina com Croce para investigar o crime, num percurso que, fatalmente, como intuem os dois à medida que avançam o tempo e os movimentos, terminará em derrota. É numa conversa telefônica entre o repórter Renzi e o editor do jornal portenho que o leitor encontrará a primeira descrição do que pode ser um delegado bonaerense de então: “estão com mais de 40 anos, já engordaram, já viram de tudo, têm várias mortes nas costas. Homens muito vividos, com muita autoridade, que circulam o tempo todo entre delinquentes e personalidades políticas, sempre à noite, em bailecos e bares”. E, ainda, nas palavras do editor de El Mundo: “transitam entre a lei e o crime, voam a meia altura. Meio a meio, se alterassem a dose, não conseguiriam sobreviver”.1 

No caso de Croce, e tal atributo estará presente em cada página dos contos que o levam ao protagonismo, voar a meia altura poderia ser modificado para voar por outro lugar: porque, se é verdade que o policial de Piglia não se enquadra no que tende a ser a figura oficial da lei em sua representação literária, tampouco Croce se aproxima do crime, ao menos nunca efetivamente. Nos casos que no volume póstumo levarão o seu nome, Croce desenvolve uma forma: inventa um fazer, encontra um lugar para a dedução e a intuição, rememora antigas histórias de rua e delegacia para, a partir do exame de um conjunto, traçar uma prática, um método, uma ética. Para esse novo capítulo da literatura policial argentina, que se embaralha em 12 contos independentes, Croce tornará a encontrar-se com Renzi, o interlocutor ideal para os argumentos de crime e paixão, de loucura e conspiração. 

Ricardo Piglia compõe em Los casos del comisario Croce um passeio pelo gênero em sua variante argentina. Há, no volume de contos, referências explícitas e menções mais sutis, num mosaico do intertexto tardio que na temporalidade da obra pode atuar como uma espécie de homenagem. Entre as menções transparentes a outros escritores que trilharam a senda da literatura policial, estão contos como La conferencia, em que um escritor cego viaja a uma cidade interiorana para palestrar justamente sobre algumas das constantes da trama de vítimas, algozes e detetives (na plateia, um sonolento delegado Croce pouco a pouco se desperta para as palavras do escritor viajante, que após a conferência se desloca à estação ferroviária do lugar para, no outro dia, recomeçar a dizer o mesmo em outra cidade); em El astrólogo, por outro lado, os personagens evocados e o argumento de prófugos e utopistas são os de Roberto Arlt, buscado por Piglia como quem volta a uma antiga obsessão, e outra vez com Jorge Luis Borges no meio do caminho entre os dois. 

Em La película, um dos mais poderosos relatos do conjunto, Croce se desespera por encontrar um suposto vídeo pornográfico com imagens de Eva Perón que poderia ser utilizado como uma sórdida chantagem ao governo vigente; as conversações em voz baixa num velho apartamento da Rua Sarmiento, no centro de Buenos Aires, em busca do rastro de nomes e objetos perdidos, podem fazer o leitor recordar o tom de um dos mais célebres contos de Rodolfo Walsh. Já em El Delta, tanto como em El impenetrable, os vínculos intertextuais se dão mais pela construção espacial dos relatos que pelas circunstâncias narradas ou os personagens presentes. Nos dois contos a narração se desliza pelos cursos d’água do Delta do Tigre, na zona norte de Buenos Aires, o espaço por excelência do escritor Haroldo Conti, nome que aparece com intimidade nos inícios de Piglia na literatura (onipresente no primeiro tomo dos Diarios, por exemplo) e que, talvez não por acaso, reaparece nos últimos cadernos do autor. 

Los casos del comisario Croce também funciona como um livro que opera novos retornos para a interioridade da obra, ao já dito ou anotado pelo escritor. Em El jugador, Croce está às voltas com o aparente suicídio de um jogador compulsivo que, contraditoriamente, ganhara muito dinheiro em um cassino da costa argentina. O argumento recupera quase que com exatidão a anotação de uma das páginas de Formas breves, o livro de miscelâneas publicado em 1999, quando se lê: “Em um de seus cadernos pessoais Tchekhov registra esta anedota: ‘Um homem, em Montecarlo, vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, se suicida’. A forma clássica do conto está condensada no núcleo deste relato futuro e não escrito”. No conto La excepción, por sua vez, o retorno argumentativo se dá na ordem dos temas, já que volta à ficção de Piglia o universo de Urquiza e das batalhas contra Rosas, instantes de definição para a história da Argentina como hoje a conhecemos. 

Voltar a Croce é, também, como sempre em Piglia, voltar a Emilio Renzi, o caminho possível para se andar pelos edifícios de toda uma obra. Nos Casos, Renzi por vezes surge como personagem, em outros contos atua como o narrador, e quando não é evocado ou conduz a palavra o sentimos como que à espreita, nas laterais invisíveis do relato. Podemos pensar que nesses contos policiais a escrita do autor se movia de forma paralela, já que naqueles anos estava em marcha o processo de finalização dos Diarios, o projeto maior do autor, dedicado a narrar a própria vida, revisitada e modificada pela releitura dos cadernos pessoais e o manejo dos artifícios da ficção. Diante da organização do terceiro e último tomo dos Diarios e da fabricação dos contos, aparece o agravamento da doença que aflige a vida privada e, em seus últimos anos, impõe novos artifícios para que Piglia pudesse seguir escrevendo.

“Em um dado momento, numa tarde qualquer, dizia Renzi ao seu médico pessoal que a sua aflição passageira era o resultado dos meses e meses que havia se dedicado a ler e a escrever seus diários, há muitas formas de ser afetado e adoecer, e estava certo de que a exposição prolongada à luz incandescente do seu estilo havia de início produzido dores leves, mas, como seguiu adiante, a persistência da exposição do seu corpo ao brilho inigualável da língua argentina tinha, disse ao médico, que produzir efeitos não desejados”, lemos numa das últimas entradas do terceiro tomo dos Diarios. E logo adiante: “de modo que, disse essa tarde Renzi ao seu médico de cabeceira, a dor que me aflige se relaciona diretamente com os anos que passei sob a luz zenital e mortífera da gramática nacional. É preciso tratar com muito cuidado as palavras e as frases, doutor, quando se escreve”.

Sem poder escrever à mão ou à máquina, Piglia afirma, na Nota do autor que encerra o volume dos Casos, que foi obrigado a buscar novas formas de dizer: “compus este livro usando o Tobbi, um hardware que permite que se escreva com o olhar. Parece, na realidade, uma máquina telepata. O leitor interessado poderá comprovar se meu estilo sofreu alterações”. Trata-se, se de fato há mudanças, da irrupção de um estilo tardio nos contos penúltimos, pois, ao se tratar de Piglia e das suas multiplicações, nos cabe sempre esperar um texto novo e futuro.


 

1. Tradução de Heloisa Jahn para Alvo noturno, de Ricardo Piglia (Companhia das Letras, 2011). Os demais trechos da obra do escritor argentino foram traduzidos pelo autor deste ensaio.