Ensaio Anne Carson Einar Falur Ingolfsson Divulgacao

 

 

Uma sala, com um sofá verde-escuro e paredes verdes pálidas, que parece ter enlouquecido.
Um texto em formato de uma grande casa feita de vidro.
Um animal prata, cheio de curvas, que precisa ser expulso da casa.
Preposições.

Todas essas são coisas com que a escritora Anne Carson (Toronto, 1950) sonha e deixa vazar na sua escrita. Os sonhos estão por toda parte, sendo contados em primeira pessoa. Os sonhos são tão aquosos e perturbadores quanto seu trabalho. “A perturbação é um estado útil para provocar nas pessoas, para acabar com as presunções”, diz Carson, quando perguntada em entrevista sobre a escrita de Simone Weil (1909–1943). E adiciona: “a função da pessoa santa é ser perturbadora”.

Todo mundo que fala sobre Anne Carson começa dizendo da perturbação que ela provoca nos gêneros literários. É divertido ler as classificações que ela dá aos livros, por exemplo Float (2016) é uma pasta transparente com 22 panfletos para serem lidos em ordem aleatória; The Beauty of the Husband (2001), um ensaio ficcional composto por 29 tangos; Autobiography of Red (1998), um romance em versos. Esses formatos nos fazem rever nossas expectativas do que pode ou não ser um livro. O professor de estudos religiosos, Louis Ruprecht, escreveu na resenha de Decreation: Poetry, Essays, Opera (2005) que Carson faz há 20 anos (agora 35) coisas impossíveis: impossivelmente evocativas, criativas e bonitas, também difíceis de definir. Carson toma pra si o poder da denominação: um texto pode parecer pra nós, à primeira vista, um longo poema, mas ser apresentado como uma peça; um texto pode parecer, à primeira vista, uma adaptação e ser apresentado como tradução — Carson perturba essas categorias. Como poeta, tradutora, ensaísta, performer, classicista, essa professora que completa 71 anos neste ano não para de nos perturbar. Ela cria um pequeno redemoinho na nossa cabeça que segue girando e girando.

Essa atitude experimental e provocativa marca o trabalho da escritora desde sua estreia, com a publicação do livro Canicula di Anna (1984), vencedor do prêmio da revista estadunidense Quarterly Review of Literature, que apoiava poetas em início de carreira. A sinopse dizia que o longo poema, situado na cidade italiana de Perúgia, atormenta o pintor renascentista Pietro Perugino (1446–1523), seu tempo e sua arte, além de Anna, a misteriosa personagem principal, durante uma conferência de desconstrucionistas. O poema é diferente de tudo o que tinha sido publicado pela revista até então e foi caracterizado como uma mistura de aprendizado, leveza, percepção e um mistério irônico, malicioso. No livro já aparecem sonhos sobre estar escrevendo. O crítico canadense Hugh Kenner diz que o que encontramos em Canicula di Anna encontramos em toda parte na escrita de Carson: estruturas que se repetem em escalas sempre variáveis.

Carson não trabalha sozinha, faz parte do seu projeto artístico a colaboração. Ela e o marido, o artista visual Robert Currie (apelidado de “randomizador”), quando querem se juntar com uma terceira pessoa pensam na forma mais adequada para determinado projeto. A ideia pode partir de um texto escrito e migrar para performance ou vice-versa, como Nox (2010), que de livro virou performance ou o ensaio Cassandra que originalmente era uma performance. Das colaborações que conheço, a minha preferida foi a montagem da ópera The Mirror of Simple Souls realizada em parceria com estudantes da Universidade de Michigan (Estados Unidos), e assistida por mais de 400 pessoas da comunidade. Em entrevista, Carson comenta que a turma gostou da experiência porque sentiu que ela, como professora, confiou em todo mundo durante o processo, a turma pôde fazer o que foi possível com o script. Nunca lhe tinha ocorrido não confiar em alguém com uma ideia, disse Carson, mas entende que esse não é um procedimento comum no sistema de ensino.

Apesar de Carson ser uma acadêmica há décadas, chama atenção como sua escrita circula fora da universidade, um feito que não é fácil de alcançar. Aqui no Brasil, a editora Jabuticaba foi responsável pela primeira publicação em português brasileiro com O método Albertine (2017), tradução de Vilma Arêas e Fernando Guimarães, numa edição bonita e com preço acessível. No site escamandro (escamandro.com) a gente encontra três versões para o prefácio da peça Antigonick (2012, tradução da Carson para Antígona de Sófocles), assinadas pelos tradutores Rodrigo Gonçalves, Sergio Maciel, e tradutora Adelaide Ivánova. Em dezembro, Camila Assad apresentou trechos de The Glass Essay para a seção “Arcas de Babel” da revista Cult. O ensaio O gênero do som (do livro Glass, Irony & God, 1995) apareceu na revista Serrote no ano passado, traduzido por Marília Garcia.

Do mesmo livro, traduzi três poemas da série A verdade sobre Deus, publicados na revista acadêmica Belas Infiéis (UnB), trabalho que depois gerou a oficina de escrita, aberta pra comunidade, “Deus mora hoje na boca dos ministérios e o que a poesia tem a ver com isso?” pela UFPR. Também tenho notícias que a Editora 34 vai publicar em breve a tradução de Ismar Tirelli Neto para Autobiography of Red e está preparando uma coletânea ensaística com a tradutora Sofia Nestrovski. Dentro da universidade, já encontrei trabalhos dos professores Otávio Tavares (UFPA) e Gustavo Silveira (UFMG), além da professora Helena Franco Martins (PUC-Rio). Essas são algumas das pessoas que estão lendo e traduzindo Carson pelo Brasil. Tenho certeza de que existem outras tantas e é ótimo que mais gente esteja empenhada em possibilitar acesso a um trabalho tão perturbador.

Talvez você, assim como eu, tenha uma pilha de livros esperando em algum lugar para serem lidos. Autobiography of Red (Autobiografia do vermelho) é o próximo título de Carson a ser lançado no Brasil. Na pilha, qual diferença ele faz?

Imagine o sonho vermelho de um monstro vermelho no início de outro dia vermelho: esse é o convite que Autobiography te faz, conhecer o monstro Gerião, que “gosta de planejar a autobiografia, naquele estado borrado entre estar acordado e estar dormindo”. Antes do romance em versos começar, Carson escreve um pouco sobre Estesícoro — ela parece se interessar por biografias escassas como a de Safo e a de Marguerite Porete. O poeta grego, nascido por volta de 650 a.C., foi quem escreveu a história de Gerião, um monstro vermelho alado que morava na ilha de Erytheia (que Carson diz ser um adjetivo que quer simplesmente dizer “lugar vermelho”), pastorando um gado também vermelho. Até que um dia Héracles (que tem como paralelo Hércules para o povo romano) matou Gerião e roubou o gado. Carson apresenta a sua versão da história, colidindo o contexto original de Gerião com a América do Norte do século XX, incorporando anacronismos.

O que chama atenção, para além do fato de Estesícoro ter escolhido contar a história a partir da perspectiva do monstro derrotado e não do herói vitorioso, é que, o que foi dito sobre o poeta grego antes, pode ser dito sobre Carson agora. Suídas (lexicógrafo grego, século X d.C.) sobre Estesícoro: “Transforma em novas aquelas velhas histórias”; Dionísio de Halicarnasso sobre Estesícoro: “É guiado por uma ânsia pela mudança”. Só dois dos dezesseis fragmentos que Carson apresenta mantém relação reconhecível com os fragmentos de Estesícoro; além disso, o livro tem quase nenhuma semelhança com traduções prévias, é parte paródia, parte invenção.

Em Teses sobre monstros, China Mievelle escreve que os monstros não são patologias, mas sintomas, diagnósticos. Então, Autobiography of Red é sintomático do que pode Carson ao manipular o mito. Seu trabalho é múltiplo, contraditório, híbrido, incapturável. Autobiography of Red se destaca numa pilha de livros por ser uma amostra do quão perturbadora da tradição pode ser sua escrita.

CONTÁGIO E PERTURBAÇÃO

Quando foi organizar o livro de ensaios Anne Carson: Ectastic Lyre (2015), o poeta estadunidense Joshua Marie Wilkinson convidou 33 pessoas diferentes para escreverem sobre a escritora no formato que escolhessem. O que acho mais bonito nessa publicação é o envolvimento emocional das pessoas convidadas. Encontro aí pistas do porquê tem tanta gente com desejo de ler os textos da Carson e passá-los pra frente (“vou traduzir isso aqui porque quero que minha amiga leia” é o primeiro desejo da tradutora). Dentre tantos ensaios bons, os meus preferidos são os que combinam esse envolvimento emocional fascinado e fascinante com o uso de procedimentos que podem ser encontrados no trabalho da escritora. São ensaios que misturam crítica, leitura apaixonada, considerações sobre arte visual, filosofia e tradução, anunciando que no trabalho de Carson existe pouca preocupação em reforçar categorizações.

O poeta Timothy Liu, por exemplo, quando escreve sobre Short Talks (1992) usa o mesmo formato do livro — composto por poemas curtos em prosa, todos com títulos que começam com On (“Sobre”). Forma assim uma duplicação: Sobre “Sobre as regras de perspectiva” ou Sobre “Sobre pedras de sono” ou Sobre “Sobre Sylvia Plath”. Carson chama os poemas de Short Talks de amontoadinhos, pelotas de palestra. Ou seja, foram escritos para serem falados, de fato talks (“conversas”). Por mais que escolha replicar o formato, Liu não tem medo de dizer o que não gosta ou simplesmente não entende do livro. Mistura suas impressões de leitura com experiências pessoais — de quando, por exemplo, ocupou na Universidade de Michigan a mesma sala que tinha sido de Carson. Exatamente como ela faz, mostra pouca consideração a uma ideia de respeito à autoridade textual. Quem está lendo se depara com uma releitura-manipulação erótica de Short Talks. Para Liu a linguagem é erótica, sua poesia é marcada por imagens sexuais e violentas que vazam da sua experiência queer. No ensaio faz perguntas provocativas para Carson: “Todo dia acordo pensando em você, Anne. É verdade que seu amante em The Anthropology of Water de Plainwater era de fato asiático, e não digo no livro, mas na vida real?”

Ao se apropriar do formato do livro sobre o qual decide escrever, Liu devolve para a escritora algumas das perguntas que ela mesma faz. Dá pra perceber que existe algo de contagioso na atitude perturbadora de Carson. Depois da leitura, podemos não ter em mãos nenhuma conclusão parafraseável, mas, independentemente do gênero ou do suporte em que o trabalho é apresentado, somos contagiadas por uma sensação de que é possível ler/traduzir/escrever/viver ensaisticamente.

Anne Carson é como água: escorre entre os dedos. É comum, nas entrevistas que dá, devolver as perguntas que são feitas ou ainda desmontá-las — em ambos os casos ela não parece interessada em oferecer respostas. Quando é perguntada, por exemplo, se o trabalho de colaboração ajuda a formar uma ponte, devolve: “Uma ponte de onde pra onde?” É também avessa a definições fáceis de digerir. Pediram a ela uma definição de poesia, sua resposta: “se prosa é uma casa, poesia é um homem pegando fogo atravessando bem rápido a casa”. Pra ela é importante perguntar a si mesma: o que posso fazer para deixar o texto mais fascinante? Carson é fã de enigmas e charadas: perguntas que não cessam de perguntar, redemoinhos que não param de girar. Cuidado! Superfícies molhadas são escorregadias.

Uma das perguntas mais fascinantes, pra mim, é a que Carson faz no final do ensaio O gênero do som: “Pode existir outra ideia de ordenação humana que não seja a repressão, outra virtude humana que não seja o autocontrole, outro tipo de self do que esse que tem como base a dissociação entre dentro e fora ou, de fato, outra essência humana que não o self?” O argumento construído por ela durante o ensaio é de que a fala das mulheres foi/é vista como uma ameaça à ordenação pública por jorrar pra fora o que, supostamente, deveria ficar dentro. Carson propõe como substituto do self o desejo. O erótico age na amante de forma similar que o conhecimento age na leitora.

Para provar que o ar ocupa espaço, experimentos usam água. Não é possível que dois (ou mais) corpos ocupem o mesmo lugar no espaço — essa talvez seja a maior angústia de quem ama: viver uma união momentânea, que nunca pode ser total. Para Barthes, em Fragmentos de um discurso amoroso (1977), o gesto do abraço amoroso parece cumprir, por um tempo, o sonho da amante de união total com a criatura amada. Existe sempre uma lacuna que alimenta e é alimentada pelo desejo. Em Grief Lessons: Four Plays by Euripides (2008), Carson pinta o desejo como um líquido vasto e absoluto escorrendo pelo universo. É comum ela associar a carga erótica, passando entre as pessoas, com água sendo derramada de um vaso a outro.

Julie Carr é poeta e gosta de dançar. Ela diz que memória é dor, seja a lembrança feliz ou triste. Sua mãe teve Alzheimer e chegou a um ponto em que não conseguia contar as moedas do troco que recebia na loja. Em diferentes textos, Carson escreve sobre a perda de memória do pai, de como ele se esforçava para ser gentil ao telefone, mesmo não lembrando da filha. Julie Carr, outra autora do livro organizado por Joshua Marie Wilkinson, decide escrever sobre esse ponto onde a vida dela toca a de Carson. No poema A lista de líquidos de Deus, de Glass, Irony and God, Carson escreve uma lista de líquidos, e a memória está nesta lista junto das lágrimas, do tempo, do sangue, da canção. Nossa carne humana descrita como uma peneira. A vontade de escrever sobre a própria vida, as tensões familiares em torno do luto, vaza da mente de Carson para a nossa, não como uma possibilidade de recriar uma narrativa coesa, mas investida em vislumbres, insights, sonhos, lembranças distantes, citações equivocadas, passagens que, como água, turvam a visão da totalidade. A figura de pessoas nadando são recorrentes nos textos de Carson, e quando escreve sobre a morte da mãe em Men in the Off Hours (2000), o tempo vira um corpo d’água, um lago que escorre. Nossas identidades tão seguras quanto poemas escritos na água.

Do pouco que lembro das aulas de Física da escola, ficou marcada na minha mente o fascínio com o desvio angular da luz quando atravessa a água, fenômeno causado pela refração: quando se olha o peixe dentro da água, a posição aparente é diferente da posição real — digite no Google “refração da luz” e você vai lembrar do que estou falando. O mesmo sentimento aparece quando quero recontar um sonho. Existe uma distância entre a posição aparente das coisas, dos rostos, das emoções e a posição real. É difícil capturar esses vislumbres que sobram molhados na nossa mão quando acordamos. Carson nos convida a entrar na vida e na escrita pelo lado do sono, nossos olhos marejados.

Tanto o sono quanto a água, na escrita dela, têm relação com admitir a limitação da observação empírica e reconhecer a riqueza criativa que pode emergir disso. Carson se sente em casa debaixo d’água. Tentar capturar sentidos fechados na sua escrita é como jogar na água uma rede feita de água. Por isso, ao escrever este ensaio, penso que mais interessante do que escrever sobre, é escrever com Carson, como fazem Liu e Carr. Não só escrever; sonhar com ela (espero por você esta noite, Anne).

Curiosidade: um poema de Short Talks apareceu na antologia Best American Essays (Melhores Ensaios Americanos), editada por Sontag em 1992. Susan diz que Anne é uma das únicas pessoas que ela tem vontade de ler absolutamente tudo o que escreve. Uma coisa que aprendi com Sontag (que quando recebe o diagnóstico de câncer, não pode deixar de escrever A doença como metáfora, de 1978): o ensaio começa quando começamos a prestar atenção ao que está acontecendo conosco agora. Quando leio Carson atenta ao que acontece consigo mesma, tenho vontade de prestar atenção em mim. E mais: ser feita de matéria tão escapante a ponto de escapar até de mim mesma.

No final das contas, talvez uma das maiores potências de Carson seja ela não levar o self tão a sério. Quando perguntada por que pinta vulcões, responde: porque são fáceis de pintar. A forma que usamos para escrever ensaios parecem pinceladas, rastros de eventos maiores que não vão ser capturados na sua totalidade (talvez nem se tenha vontade de fazer isso: “contar uma grande história”). Frágil é a matéria do ensaio, como diz o verso de Carson: “como uma pintura vamos desaparecer, ninguém permanece”.

Então, não levar tão a sério o self tem tudo a ver com essa atitude ensaística, seja escrevendo poema, performance, ópera, romance em verso, o que for. “Eu, que não tenho outro objetivo além de viver e divertir-me”, dizia Montaigne, considerado um dos precursores do gênero ensaio e defensor do prazer contra a sabedoria sisuda. Apesar das imagens sérias que a gente acha do rosto de Michel de Montaigne pela internet, ler os ensaios dele, para mim, é como conversar com um vizinho contador de causo, que mistura a fofoca que ele tinha escutado sobre o casal monarca da Polônia com intimidades da própria filha. A escrita de Montaigne é a materialização da auto-permissão; todo pensamento é publicável. Um fofoqueiro que consegue citar uma lista extensa de pensadores antigos pra falar de sexo, morte, religião, política, viagem, o que vier à cabeça. Carson chama uma citação de “fatia de laranja”. Você rouba a fatia da laranja de outra pessoa, chupa e joga a casca fora. Resta a excitação pelo perigo do roubo e, com o tempo, podemos começar a achar que são nossas aquelas palavras que roubamos: “Quem foi mesmo que disse isso?” é a pergunta que surge a cada citação.

Outro dia, estava ouvindo uma entrevista com a poeta Nikki Giovanni. “Não tenho nada contra a Mona Lisa”, ela disse rindo, quando perguntada sobre o cânone. Giovanni me pareceu mais interessada nas variações do cânone, onde existe tradição existe variação. E é nas variações que Carson opera, não existe nada de intocável na tradição. No seu trabalho é comum que temas de interesse venham à superfície, reconfigurados, de novo e de novo, atravessando os variados gêneros em que escreve. É a mesma postura que adota como tradutora. Eu não teria me fascinado tanto pela figura da Antígona se não tivesse lido Antigonick; se a tradução de Carson não sublinhasse a violência no discurso do rei Creonte (“quando você deita debaixo de uma mulher você traz pra casa uma ferida aberta”); se seu trabalho não fosse um atentado contra uma série de binarismos: patriota/traidora; público/privado; homem/mulher; juventude/velhice.

Carson propõe novas entradas, cava como uma toupeira cega o passado, revivendo-o de mistério e curiosidade. Como disse lindamente Judith Butler, a tradução de Carson para Antígona reabre, em outro idioma (do grego para o inglês), a questão da raiva, da dor e da perda. É mantendo a radicalidade, própria desses textos do grego antigo, que Carson consegue contaminar as pessoas com sua paixão por essa tradição. Penso que é uma atitude de generosidade com quem, como eu, não conhece as referências dos estudos clássicos.

Tenho um apelido para Carson: leitora superbonder. Adoro ser surpreendida pela colagem de pessoas que ela decide juntar no mesmo espaço. Gente distante entre si no tempo. Em Decreation, por exemplo, convoca Safo (VI a.C.), Marguerite Porete (séculos XIII-XIV) e Simone Weil (século XX) para pensar como essas mulheres falam sobre Deus. Parecido com o que faz a leitora superbonder, a poeta Lily Hoang, no seu ensaio sobre a reescrita do mito que Carson faz em Red Doc> (2013), traz como referência uma autora que não estaria no nosso horizonte de expectativa: a grande María Lugones, teórica do feminismo decolonial. Em um dos seus ensaios mais famosos, Colonialidade e gênero (2008), Lugones tem como objetivo ampliar e complicar o modelo dicotômico de Aníbal Quijano, que, segundo ela, não percebeu sua conformidade com o sistema hegemônico de gênero. O gesto de Hoang tem potência por oferecer uma nova entrada no texto de Carson, que anuncia os atentados da escritora contra vários tipos de binarismo. Essas junções inesperadas, também chamadas por ela de “cópulas drásticas”, são uma corrente de força na sua escrita.

Imagine você um lagarto montado imóvel nas costas de outre. Apenas pelo piscar de uma pálpebra dourada ou pelo movimento de um quadril esverdeado que esses corpos se mostram carne viva e não feitos de bronze. Imagine agora casar essa imagem com peixes nadando num tanque de aquário. Por que juntar lagartos e peixes? O que isso e isso estão fazendo aqui juntos? É o que se perguntam leitores de Virgínia Woolf. Carson usa essa “cópula drástica” do ensaio de Woolf The sun and the fish (1928) para mostrar que ideias incongruentes se mantêm vivas quando juntas. Carson treina nosso olhar aquoso para enxergar a simultânea distância e proximidade entre coisas heterogêneas. E isso talvez seja uma das coisas mais bonitas de perceber e sentir no seu trabalho: “nesses sinais diversos você pode ver/ quanto trabalho ainda há pra se fazer./ Põe de lado sua tristeza, é um manto de trabalho”.