De certa maneira, a escritora Harper Lee conseguiu se tornar ainda mais misteriosa do que seu compatriota e colega J. D. Salinger, o recluso mais notório das letras norte-americanas. Falecido no começo deste ano, em Salinger parecia persistir numa neurastenia ao mesmo tempo vaga e pesada e suas “esquisitices” deixaram-no, afinal, mais vulnerável do que verdadeiramente afastado dos holofotes da mídia. Em contraposição, a “deserção” da Harper soa mais simples, sincera e saudável ao menos para a autora do célebre romance To Kill a Mockingbird (que no Brasil recebeu o título O sol é para todos – inclusive as cotovias), publicado em 1960.

O complicado JD tornou-se presa dos seus personagens – uma impressão que eu tenho – em vários livros tensos das histórias da mesma família à beira de mais que ataques de nervos escalados para cada um dos membros da “trupe”. Então, de repente o tempo simplesmente passou, desde quando a primeira juventude de Holden Caulfield (o herói com espinhas de O apanhador no campo de centeio) repercutira em duas ou três gerações que leram o romance com quase unção, até o final rematado pela frase ingênua e melancólica: “A gente nunca devia contar nada a ninguém. Mal acaba de contar, começamos a sentir saudade de todo mundo”.

Todo mundo também começou a sentir saudade do sumido criador de Holden, sim, porém o recuo de tantos anos faria uma coisa curiosa com o recluso: tornou datado o centro nervoso da sua literatura, especiosa demais, talvez, nas excentricidades da “turma de Seymour”.

Harper Lee, no seu romance solitário, criou o sólido backgound de um Sul evocado à maneira do primeiro Truman Capote (o de Outras vozes, outras gentes), seu amigo de infância. Chegaram a insinuar que o autor de A sangue frio teria colaborado com a escrita do Mockingbird, mas eram simples maledicências literárias. Não por isso – logo seja dito –, a escritora tomou o rumo do sumiço absoluto, enquanto Salinger, malgré lui-même, prosseguia escrevendo, segundo dizem, ainda sobre alguns dos neurastênicos mais incuráveis da moderna literatura.

O mundo de Harper Lee é real como um carvalho ou uma sequoia americana. O de J. D. Salinger em parte se dissipa, agora, entre climas nervosamente exasperados, títulos sem pé nem cabeça e crispações da marca JDS.

O mundo virou um mundo de marcas – como o garoto Caulfield temia, entre outras coisas –, porém o Mercado ficou rápido demais, provavelmente, para relatos nos quais Salinger pareça entregue aos maneirismos “salingerianos”, enquanto permaneceu recolhido à suburbana Cornish curtindo desajustes da Segunda Guerra que, bem ou mal, as décadas seguintes deveriam ter reduzido a um silêncio total ou, pelo menos, à alguma transformação do maduro Holden de cabelos grisalhos.

Deu pra entender? Não?

Então vamos por este atalho: por que razão alguns autores silenciam, e outros ficam ouvindo a própria voz repetindo ecos da infância (ou de mais adiante), entre o crepúsculo da inocência e a manhã mal anunciada da juventude – que “não é tudo”?

Fala sério: você não acha que seria meio excessivo voltar a ler sobre os “peixes-bananas” de J. D., como se nada tivesse acontecido?

Enfim, os editores do Pernambuco solicitaram um texto sobre os 50 anos da publicação do romance de HARPER LEE, e não sobre Salinger, esquisitão menos rimbaudiano do que ela – no abandono da literatura. Lee, descendente do general derrotado na Guerra Civil americana, assinou sua rendição sem acordos, decidida a calar uma voz saudada como das melhores já surgidas na trincheira do Sul (a de qualidade mais resistente, sem dúvida, nas letras americanas).

O que poderia ter levado a bem-sucedida autora – de um único romance – a se recolher ao anonimato perdido na bruma das manhãs sulistas, entre galinhas e carros passando na poeira das estradas do Alabama?

Se vocês pensam que eu pergunto por que estou sabendo a resposta, estão enganados. O silêncio (verdadeiro) é uma coisa que aprendi a admirar – sem tentar decifrá-lo – nos últimos anos. Ingmar Bergman na ilha de Faro, vivendo lá como um granjeiro qualquer, assistindo a velhos filmes numa cabine improvisada em antigo celeiro, falando mal de Michelangelo Antonioni e deixando de tratar dos dentes etc – isso, sinceramente, ninguém faz somente por “charme” (pois seria loucura). É verdade que ele ainda dirigiu uma peça teatral e rodou, ainda, um último filme, porém nenhuma das duas “recaídas” lograram quebrar o tonitruante silêncio da retirada de cena do gênio sueco, num fim de vida meio intratável e, pelo que se sabe, ainda assim feliz – como só é possível em meio dos silêncios de verdade...

Pois bem: o silêncio de Harper Lee parece ser também do tipo autêntico, autoimposto por Nelle logo depois do sucesso estrondoso do seu romance de estreia, primeiro sem segundo. O livro é narrado do ponto de vista da filha de um advogado chamado Atticus Finch, homem de bem e, durante a ação, empenhadíssimo na defesa de um negro injustamente acusado de violentar uma branca.

To Kill a Mockingbird tornou-se um best-seller imbatível e um dos “dez melhores filmes americanos de todos os tempos”. Tal avaliação da obra cinematográfica (dirigida pelo talentoso Robert Mulligan) foi subscrita, integralmente, pelo American Film Institute, que também fez uma pesquisa com um bando de críticos, diretores e formadores de opinião, para saber quem era “o maior herói do cinema de Hollywood”, e o ganhador não foi Super-Homem, Schwarzenegger ou o débil mental Silvester Stallone, mas sim o intelectual e determinado Atticus, na sua lição de vida deixada para a posteridade (o romance de Harper é semiautobiográfico, pois seu pai era realmente advogado em Monroeville, no interior de um dos mais problemáticos estados do “South” preconceituoso).

E foi pra lá que Nelle Harper Lee retornou, abandonando as delícias do êxito como escritora. Há muito ela vivia no meio das altas rodas de Nova York, quando optou pelo sumiço, logo após a publicação do seu livro (premiado com o Pulitzer). Voltou para a Monroeville dos pequenos Babbits e das tortas de maçã sobre mesinhas de paninhos “aos quadrados”, encerrando-se num silêncio mais cerrado do que o de qualquer coruja que assista matarem uma cotovia cantando “do outro lado do rio, entre as árvores”.

Não há explicação alguma, até hoje ninguém conseguiu entrevistá-la – apesar das tentativas –, e, importantíssimo, a famosa reclusa não está doente nem enlouqueceu, aos poucos, no Sul de todas as taras (vide Faulkner e Carson McCullers).

Aparentemente, a “querida Scout” – como Harper Lee é chamada, de novo, na cidadezinha que a protege – vive, ali, uma vida igual à das mulheres da sua vizinhança, dando comida aos patos e outros bichos que cria, além de seguir recebendo direitos autorais suficientes, entretanto, para ser benfeitorade obras de caridade não só locais. Tudo que se sabe é que seu silêncio é de ouro, e que nem isso a animou a escrever mais nada.

Melhor para Nelle? Também não se sabe. A literatura ficou realmente para trás, no seu caso, junto com a “Big Apple” e outras recordações dos tempos em que, sempre ao lado de Capote, costumava circular longe do verdadeiro mundo que ela ama, na América profunda. Ninguém consegue fugir de si mesmo, conforme talvez sentenciasse o Holden Caulfied de – inimagináveis – 50 anos.


Fernando Monteiro é autor de, entre outros livros, Armada América e A cabeça no fundo do entulho.

 

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