Ensaio Zazie Luisa Vasconcelos outubro.20

 

Abaixo, você lê um trecho do ensaio Subnarradas: mulheres que editam, de Ana Elisa Ribeiro, publicado em breve pela Zazie Edições dentro de sua Coleção Perspectiva Feminista, para leitura gratuita.

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Editora: esta palavra sempre me incomodando, sempre causando ambiguidades que preciso resolver com redundâncias. Outras pesquisadoras da edição feminina — e feminista —, em outras línguas, não têm esse problema. Em português, editora é palavra que remete, antes, à casa editorial; somente em segundo plano, depois de uma explicitação ou conforme contexto específico, editora tem como referente uma mulher que edita. Talvez a precedência de um sentido sobre outro seja mesmo uma questão linguística, semântica, mas que se transforma em problema de discurso. Tenho operado, em razão dessa ambiguidade incômoda, porque distanciadora, com a expressão mulher editora, o que nem sempre soa bem. Uma mulher que edita, aliás, quase nunca soou bem, e não por razões gramaticais. Editor, por outro lado, não causa nem causou espanto. E não é ambíguo, mesmo que seja múltiplo em tarefas e possibilidades.

Eles são muitos. Os exemplos de obras que narram, analisam e elogiam a atuação dos homens no mercado editorial são incontáveis. São tantos que me eximo de dizê-los aqui, uma vez que já andei apontando o fato em outros textos, quando reuni parte dos livros biográficos que tratam deles como grandes homens de letras. Certamente serão encontrados com facilidade em qualquer busca rápida, embora este seja um campo de interesse específico, o da edição ou da história editorial e/ou literária. E por que mais eu os citaria, nominalmente, se não para enfrentar, mais uma vez, as assimetrias dessa história [...]?

Talvez não nos escape o vício ou a mania de procurar similitudes entre as atividades e atuações de homens e mulheres, no campo da edição (também nele). Esta, que é parecida com aquele; uma que atuou tanto quanto o outro; aquela, que herdou os negócios do marido etc. Uma distorção desnecessária, mas potente, invocadora e estrutural. Eu poderia procurar essas semelhanças entre atividades, números, relevâncias, importâncias… nos projetos, empreendimentos, catálogos, mas incorreria numa espécie de justificativa, um contrassenso quanto ao que realmente quero fazer.

A justificativa contrassensual está no fato de que elas só teriam importância quando emparelhadas a eles, ou quase. Visibilizam-se suas fragilidades, claro, suas dificuldades e suas vitórias, mas sempre em relação a um parâmetro “normal”, que não é neutro, mas que é um “normal-neutro-base” parametrizado no masculino, digo, em suas práticas e métricas […]. Quanto às mulheres e suas atuações, as importâncias são relativas; e as desimportâncias costumam ser absolutas. Quem comparará seus sucessos aos fracassos, em perspectiva de gênero? Quem elas devem imitar, se quiserem ter êxito? Com quem aprenderam, afinal? Não há mal, é claro, em aprender com o outro; o mal é desfazer-se de si no aprendizado com ele, aos olhos dos outros e das outras. E as perguntas emergem e se acumulam: de onde partiram essas mulheres? Que obstáculos visíveis e invisíveis superaram? Desde quando e como? E que respostas dão, performativamente, à intervenção, às vezes inconsciente, às vezes cínica, de uma sociedade estruturalmente machista? O que percebem de si, se convivem e atuam no machismo estrutural? […]

Retrospectivamente, pode-se dizer que as mulheres que fundaram editoras e compuseram catálogos exerciam uma práxis feminista […]. Sem serem, às vezes, feministas conscientes, consistentes ou autodeclaradas, quase só podiam ocupar o espaço que ocupavam porque agiam contra determinadas assimetrias e hegemonias, com menor ou maior percepção do que lhes ocorria. No entanto, a história inenarrada ou subnarrada das mulheres editoras (no Brasil, mas desconfio que em qualquer parte) mostra que elas existiram e existem, muito conscientes de seu feminismo assumido, ao menos nos casos de algumas pioneiras. Alguns dos projetos editoriais femininos inaugurais no Brasil se nutrem de leituras e ações plenamente feministas, de cores estas ou aquelas, mas conscientemente feministas, como é o caso da editora Mulheres, em Santa Catarina, ou da Rosa dos Tempos, de Rose Marie Muraro, no Rio de Janeiro, ou o de Tânia Diniz, em Belo Horizonte, com o mural e a editora Mulheres Emergentes, todas dos anos 1980-1990 em diante. Essas trajetórias mostram uma relação tão intrínseca entre criadora e criatura que essas iniciativas só terminam ou se esgotam com a morte de suas idealizadoras/fundadoras. Às vezes, morrem com elas, a despeito da tentativa de outras pessoas de darem continuidade aos projetos.

As editoras podem narrar histórias de (1) heranças de família, claro. E esse é um modo de existir entre as casas editoriais mais tradicionais. Não raro, as marcas eram os próprios nomes das famílias ou de seus cabeças, [...] herdadas por viúvas que, por sua vez, passavam a dar nome aos negócios que conduziam, ainda que compulsoriamente. No século XX, herdeiras de editores também fizeram parte da cena editorial brasileira, como é o caso, apenas para citar duas, de Danda Prado, herdeira da editora Brasiliense, e Ivana Jinkings, herdeira da história de livreiro e editor de seu pai, o primeiro dono da Boitempo Editorial, ainda no Pará. Embora sejam histórias editoriais muito diferentes, em tempos ligeiramente desencontrados e com linhas e importâncias distintas, há em comum o fato de que essas mulheres herdaram saberes de seus pais, tal como em outras profissões costuma acontecer. Trata-se, portanto, de uma história genealógica, que, com o tempo, é claro, pode ganhar contornos que diferenciam as experiências de cada geração.

Outra possibilidade é a de que existam editoras (2) nos bastidores dos processos editoriais desde sempre, importando que (a) definamos o que é ser editora e (b) observemos a invisibilidade do trabalho dessas pessoas, ainda que atuem em empresas de prestígio. O trabalho de coxia sempre contou com a mão de obra feminina (e não necessariamente feminista), neste campo da produção editorial. Tradutoras, revisoras e outras trabalhadoras do setor, geralmente sem tratamento profissional, frequentemente atuaram para dar à luz livros cuja existência se consagraria sob a marca de um editor ou de uma empresa consolidada, mas que nem sempre — e quase nunca — exibia ou creditava suas equipes. É uma forma de compreender esse trabalho, sim. É um modo de ver segundo o qual os ajustes da revisão no texto do/a autor/a ou a tradução de uma obra que mereceu versão em outra língua devem ser escamoteados, dando evidência aos autores (e eventualmente autoras) e aos próprios textos, cuja perfeição não teria outra causa que não a genialidade de seus/suas criadores/as. É, sim, um modo de entender o processo da edição.

Há, no entanto, outros, que buscam respeitar justamente a produção editorial, dando a vê-la e aos seus operadores, isto é, mostrando quais e quantas pessoas há por trás de um “original”, que, depois de atuar sobre ele, tornam um livro o que ele é nas mãos do/a leitor/a e dos/as críticos/as. Um modo de dar visibilidade ao trabalho de edição e aos/às trabalhadores/as é creditar, nomear ou explicitar, que é o que vem ocorrendo, a passos miúdos, com tradutores/as (antes creditados, comumente, apenas quando já eram famosos/as ou escritores/as também), revisores/as (que em algumas casas editoriais ainda passam despercebidos, geralmente despercebidas) e ilustradores/as. Há alguns anos, esta categoria, em especial na edição de livros para o público jovem ou muito jovem, vem reivindicando crédito e autoria, o que tem implicações, por exemplo, no recebimento de direitos autorais, entre muitas outras não diretamente relacionadas ao dinheiro.

As editoras de textos que porventura trabalhem em empresas de renome, essas mulheres que fazem curadorias importantes, que fundam linhas editoriais, séries e coleções, que cuidam pessoalmente dos livros e mesmo da vida dos/as autores/as… tais profissionais nem sempre são conhecidas, visibilizadas e responsabilizadas pelo eventual sucesso que façam suas obras ou as casas editoriais das quais fazem parte. As “duas caras de Jano” […] estão nítidas aqui, quando se trata de gerenciar o dinheiro e a reputação ou o prestígio. E quando miramos as mulheres, mesmo as editoras, do que estamos falando? Isto — dinheiro e prestígio — sequer está em debate; ou melhor, está, em outros termos, desde outro patamar. É, antes, preciso narrar a existência e os feitos dessas personagens, ainda que alguns/algumas nos façam parecer que esta seja uma tarefa também menor.

Uma terceira possibilidade, mais recorrente de algumas décadas para cá, é a de que uma (3) pessoa “comum”, sem herança editorial e mesmo sem lastro que a ajude a se suster num universo cultural ligado aos livros, possa simplesmente, por qualquer razão concreta, tornar-se editora, lançando-se ao gesto inaugural de publicar um primeiro livro, que provavelmente fará nascer um catálogo. Dessas pessoas existem várias, das quais podemos contar a história, e veremos que algumas começaram “de baixo”, conforme dizem, isto é, de algum modo aprenderam os ofícios da produção editorial; outras simplesmente se viram em condição de editar uma obra em um computador e, neste sentido, é a tecnologia que as empodera a este ponto ou lhes propicia um fazer já menos especializado, ao menos do ponto de vista infraestrutural e dos meios.

O caso de Maria Mazarello, editora da Mazza Edições, em Belo Horizonte, é emblemático. No Brasil dos anos 1970, negra e pobre, ela parte para um mestrado na França, de onde retorna decidida a abrir uma editora para publicar autores/as negros/as, e o faz. Mazza, como é chamada, aprendeu os ofícios do livro depois de trabalhar como faxineira em gráficas mineiras. Com o aprendizado ali construído, passou a atuar em outras frentes, até chegar à sua própria casa, que conta quase quatro décadas de existência, em 2020. Mais do que essa ousadia, a Mazza Edições leva o nome de sua proprietária e editora, tal como ocorre a grandes casas do passado.

Histórias desse tipo aconteceram a outras personagens do mundo editorial, e não apenas às mulheres, mas é claro que com elas esses percursos são investidos de uma coragem enunciativa que aprenderam com a vida e a profissão. A perspectiva de gênero não é objetivo das edições da Mazza, que opta pela perspectiva racial, o que nós podemos ler, se desejarmos, como uma nuança, na verdade, da interseccionalidade: mulher, negra. Ela avança sobre a história do livro no país com uma linha editorial claramente enviesada (autorias negras), sobrevive à falta de visibilidade e de políticas públicas para a questão, até os anos 2000, em uma capital fora do “eixo” (onde muitas dessas iniciativas estão, aliás, já que não nascem nem do discurso nem do lugar hegemônicos, isto é, elas são, geralmente, iniciativas nas bordas, nas franjas, poderíamos dizer periféricas ou marginais, excêntricas — ou ex-cêntricas, já que não estão no espaço nem discursivo, nem geográfico, nem econômico, etc. de hegemonia, mas o percebem e reagem a ele) e criando uma trilha de possibilidades que explode quando o país acorda para as questões raciais e de gênero, na educação e na cultura. Mazza já estava lá, assim como Arlete Soares e sua editora Corrupio, em Salvador, e a linha editorial da Pallas, no Rio de Janeiro, sob a direção de editoras, em sua segunda fase (dirigida por mulheres brancas, mas orientada à publicação de autorias negras).