Este é um trecho de A vida política da paisagem, texto do historiador Guilherme Bianchi que a Zazie Edições publica neste mês em sua coleção “Pequena biblioteca de ensaios”, para leitura gratuita em seu site.
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Os Ashaninka da Amazônia peruana contam, em um de seus mitos, sobre uma águia que teria construído sua casa no alto de uma torre de pedra, nas margens do Rio Ene. De cima do desfiladeiro, a águia (pakitza), atacava e devorava qualquer indígena que se aventurasse a atravessar por barco as águas turbulentas que corriam ali abaixo. Certo dia, cansado dos ataques, um ashaninka planejou uma vingança contra águia. Ele amarrou sua canoa em uma das margens do rio e caminhou para baixo da casa (pango) da águia, para recolher um pouco de terra amontada nos cupinzeiros pelas formigas catsicori. Desta terra, o ashaninka esculpiu a imagem de um homem, que usou como isca para atrair a águia. Crendo ser um indígena, ao atacar o homem de barro, as garras da águia ficaram presas à escultura, facilitando sua captura pelo indígena. Após prendê-la, ele então abateu a águia com uma paulada na cabeça, e desceu ao rio para queimá-la. Enquanto queimavam, as penas do animal se desagarraram de seu corpo e, caindo na água, foram levadas pela correnteza. Os Ashaninka contam que essas penas queimadas, quando alcançaram outras partes do rio, se transformaram em humanos, “que se chamavam Piros”. A toponímia local que identifica esse desfiladeiro é Pakitzapango, “a casa da águia”.
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Em 2010, depois que os governos do Brasil e do Peru assinaram um acordo energético estabelecendo a construção de cinco usinas hidrelétricas na Amazônia peruana, os Ashaninka da região vieram a saber que um dos projetos, a ser executado pela empreiteira brasileira Odebrecht, previa que uma dessas usinas fosse construída no cânion mítico de Pakitzapango. E Pakitzapango, aliás, era o nome oficial escolhido pela construtora para esse empreendimento. [...]
Uma das personagens centrais da disputa entre os Ashaninka, a Odebrecht, e os governos do Brasil e do Peru, foi Ruth Buendía, então presidente da Central Asháninka del Río Ene, uma das principais organizações políticas que representam as comunidades da região. Passados sete anos da assinatura do acordo governamental para a construção da hidrelétrica, encontrei Ruth no escritório da organização, na cidade de Satipo, na Amazônia peruana, por conta de uma investigação de doutorado que eu apenas começava a desenvolver. Nesse dia, em 2017, Ruth me contou que, quando ouviram pela primeira vez sobre a destruição de Pakitzapango (ou, sobre sua transformação em uma “nova Pakitzapango” de aço e concreto), uma mistura de confusão, medo e revolta se abateu nas comunidades. Enquanto a imagem primordial de um mito sobre a origem da alteridade, a Pakitzapango ancestral apresenta a transmutação corporal das penas de uma águia ao corpo “dos outros” — em outros termos, como os outros grupos indígenas que habitam a região vieram a ser quem são. [...]
Os técnicos da Odebrecht explicavam com bastante convencimento as razões pelas quais a nova Pakitzapango beneficiaria as comunidades locais: água tratada, dinheiro e emprego. Os discursos adotados pelos governos peruano e brasileiros eram correlatos. No caso brasileiro, através de uma conhecida (e malfadada) política de financiamento estatal através de empréstimos para as empresas consideradas “campeãs nacionais”, prometia-se, corporação e governo, que a nova Pakitzapango não apenas cobriria a demanda futura de energia para o Peru, mas que, ainda, atrairia mais investimentos e propiciaria mais “crescimento” para as populações locais, e mais dinheiro para a construção de escolas e clínicas. Em uma região em que sete em cada dez crianças sofrem de desnutrição crônica e mal terminam a escola primária, não é difícil de entender a razão pela qual as promessas ganharam rapidamente o entusiasmo de alguns ashaninkas.
Entretanto, a organização local, sob a liderança de Ruth, ao estudar o real impacto previsto pela construção, descobriu que a execução da obra inundaria dez das dezessete comunidades dispersas ao longo do Rio Ene, e que cerca de dez mil pessoas seriam atingidas diretamente e precisariam ser transferidas para outras regiões. A inundação significaria, ainda, uma alteração irreversível dos ecossistemas do rio e da floresta, e assim também da vida diária de seus habitantes — não só porque a terra oferece a base de seu sustento econômico, como porque sua existência, como insistem em apontar, não pode ser entendida como algo separado do território.
A partir de um plano nacional e internacional de denúncias públicas, e de uma série de ações judiciais impetrada em cortes peruanas e internacionais, a organização pressionou as autoridades peruanas pela interrupção da concessão, objetivo alcançado ainda em dezembro de 2010. No ano seguinte, o projeto viria a ser abandonado pela empresa brasileira. A vitória da organização garantiu reconhecimento e projeção política internacional para a luta dos Ashaninka do Rio Ene e de sua líder Ruth Buendía, premiada em 2014 com o tradicional Goldman Environmental Prize por seus esforços contrários à construção das hidrelétricas no Rio Ene e no Rio Tambo, a principal delas sendo a de Pakitzapango. Mas a história estritamente política dessa disputa, além da própria história de Ruth na liderança do processo [...], iluminam um outro conjunto de questões referente, sobretudo, ao modo pelo qual a sobrevivência da cosmologia, sob a forma dos mitos e ritos, constituiu parte integral da luta política nativa contra a perda de seu território ancestral e de suas condições de autodeterminação. Pois aquilo que a mobilização política da paisagem de Pakitzapango (o endereçamento do significado mítico no interior da política institucional) manifesta de forma tão significativa é, entre outros fatores, a especificidade das formas de vida de povos que concebem a paisagem não como recurso, fronteira exterior dos corpos humanos, mas como continuidade relacional desses mesmos corpos.
[...] Para os Ashaninka, afirmar o mito era, desde o princípio, afirmar a legitimidade política das imagens que dele emanavam, contra o secularismo implícito e economicamente suspeito da política governamental. É o caso da paisagem mítica de Pakitzapango, como uma espécie de dispositivo de contraste entre os valores afirmados pelo mito (a origem da alteridade e a marca do parentesco interétnico) e os efeitos previstos do mito estatal do desenvolvimento (a aniquilação da diferença e a quebra dos laços de parentesco entre ashaninkas e aquilo que chamaríamos de “mundo exterior” ou “natureza”). As políticas modernizantes de desenvolvimento, baseadas na extração de matérias-primas e energia, não são, afinal, muito mais que expressões materiais de uma específica mitologia moderna, compartilhada entre as mais diversas posições ideológicas, que vê, na obtenção acelerada de recursos naturais para a satisfação das demandas econômicas globais, o caminho ideal para a garantia do que consideram ser “crescimento econômico” — ou, como no caso em questão, a crença hegemônica dos “países em desenvolvimento”, no início do século XXI, de que o crédito financeiro advindo do ciclo de commodities deveria ser transferido para o financiamento de grandes obras de infraestrutura (as “mega obras”).
Apesar de suas novas características [...], a metabolização dessa ideologia da modernização produtiva pelos Estados nacionais no século XXI pode ser vista como reafirmação contemporânea da antiga ambição moderna em reduzir a paisagem, entendida aqui como o conjunto de características visíveis de uma determinada área, a uma utilidade disposta aos interesses humanos, como meio e não como fim, como diria Karl Lowith. Prática instrumental que, ao menos no continente americano, remete àquelas ascendentes no século XVI com a busca europeia pelo ouro, que desde então adquiriu um potencial destrutivo sem precedentes. Nada mais ilustrativo sobre o potencial dessas tecnologias antropocêntricas do que a remoção diária de toneladas de minério das montanhas ou o desvio de corpos de água inteiros em curtíssimos prazos para a construção de hidroelétricas. A eficiente manipulação da paisagem, então, como a forma, por excelência, de reprodução da economia extrativa, através da progressiva apropriação e incorporação de lugares que ofereçam o combustível que mantém em funcionamento as engrenagens de sua máquina.
O fato de que tantas manifestações públicas dos Ashaninka contra a construção da usina enunciassem a história mítica de Pakitzapango também pode ser lido assim, como evidência do potencial político-cosmológico dessas mesmas histórias, em sua capacidade de expressar, no interior da política institucionalizada, valores e concepções que excedem aquilo que foi tradicionalmente estabelecido como objeto da política ou como sentido da economia. Pois o mito, visto pelo Estado como resíduo animista, pode ser considerado, por ele, como matéria do transcendente, talvez do espiritual ou do religioso, mas nunca da política como instituição da sociedade. E a própria concepção de paisagem não como recurso material, mas como fundamento existencial, inverte as perspectivas hegemônicas que organizam os sentidos da economia política moderna. Para as comunidades indígenas, a inserção de um tal “excedente” na disputa política (a presença política da paisagem mítica) termina por efetivar um aparente deslocamento das práticas cosmológicas e das histórias míticas, de preocupações exclusivas com práticas rituais ou “religiosas” para dilemas históricos e políticos de convivência entre indígenas e não indígenas. Digo “aparente” porque [...] essa abertura política do mito não é um deslocamento pontual ou um efeito contextual, mas parte de sua própria estrutura enquanto modo de produção de sentido e orientação.
Embora seja verdade que, reconfigurados, esses “termos excedentes” possam sempre dar lugar a uma reabsorção da diferença em novas identidades políticas hegemônicas, é interessante perceber que, como quer que seja, algo definitivamente acontece quando o universalismo moderno é tensionado pela existência de mundos que escapam a sua definição. Ao extrapolar o domínio tradicional da política, o resultado da atividade que insere o mito em coordenadas pragmáticas não é nunca apenas um “texto” gravado em relatórios e petições, mas também um gesto que, no momento de sua efetivação, opera desde já um realinhamento sensível do próprio campo político. Se a diferença instaura na política, como disse Jacques Rancière (em Nas margens do político), um desentendimento (não a confrontação entre interesses ou opiniões distintas, mas manifestações de uma distância, “um desfasamento do sensível a si mesmo [...] a construção de um mundo paradoxal que junta dois mundos separados”), então podemos dizer que a paisagem mítica, como imagem dessa diferença, efetivamente cria um espaço para afirmação desse excesso: do que excede a configuração tradicional da política moderna ao inserir, nas dobras da institucionalidade estatal, ou do pluralismo jurídico, a exigência para uma consideração de sua legitimidade. A política, nesse caso, é melhor definida não como relação vertical de poder, mas como uma possível horizontalidade entre mundos.