Quando comentei com uma amiga que a professora de ciências humanas da Universidade da Filadélfia, Camille Paglia, seria convidada da Fliporto 2010, ela não se conteve: “Meu Deus, agora vou ter de beijar uma mulher na boca”. É impossível ser indiferente diante da autora de Personas sexuais - catatau irônico e fácil de ler sobre a formação do olhar ocidental. Não é para menos. Camille fez da provocação seu corpus teórico, desde sua (coloquemos assim) “estreia”. Ganhou atenção da mídia, há 20 anos, com um artigo de página inteira no New York Times pregando o impensável para a época, que Madonna, sim, era uma das maiores artistas do século 20 e também a imagem perfeita para as mulheres não se perderem diante do discurso rígido e assexuado (em suas palavras) do feminismo. Seu argumento era tão afirmativo, prepotente e original que dava mesmo vontade de tascar um beijo em Camille.

Se você tem 20 e pouquíssimos anos talvez não vá entender, mas teve um tempo em que gostar de Madonna era brega. Até meados da década de 1990, as pistas de dança moderninhas faziam uma tremenda lei do silêncio em relação à cantora. Seu nome era lembrado para acompanhar o extremo mais vulgar que a palavra pop seria capaz de envergar. Madonna era sinônimo de lixo e sempre colocada em desvantagem diante de seus contemporâneos, Cyndi Lauper (essa, sim, uma cantora de verdade) e Michael Jackson (o dançarino, o artista com alma).

“Não falem mal das Spice Girls, um dia eu fui igual a elas”, suspirou a cantora em 1998, quando já era tratada como artista “séria”.

A principal rejeição ao seu nome vinha do partido das feministas. Para elas, Madonna denigria a imagem das mulheres ao transformar underwear em outwear, ao falar de sexo sem pudor e ao trocar a cor do cabelo a cada semana, como uma prisioneira das rígidas exigências estéticas. As feministas exigiam que as mulheres retirassem as máscaras, e Madonna (num golpe freudiano certeiro) nos lembrava de que somos apenas máscaras. Hoje é até lugar comum encontrar trabalhos acadêmicos sobre a cantora. Algumas universidades, inclusive, trazem disciplinas voltadas a analisar a sua larga influência na moda e na arte.

Mas antes de todo mundo, Camille percebeu que Madonna era o tosco no som estéreo da sala, a imagem pagã na televisão da classe média. “Ela reuniu as metades partidas da mulher: Maria, a virgem santa e mãe sagrada, e Maria Madalena, a prostituta (…). Madonna confronta o dilema romântico da mulher forte que não sabe se está interessada num tirano ou num escravo. A tigresa no cio está subordinada ao seu desejo mas pode matar o seu conquistador só com os dentes”, descreveu Camille no seu barulhento artigo Venus of the radio waves. E seguiu adiante: “Respondendo às tensões espirituais dentro do catolicismo italiano, Madonna descobriu o paganismo enterrado dentro da igreja : A tortura de Cristo e o martírio dos santos.” Imagine o impacto dessas palavras há 20 anos....

Apesar de tamanha devoção, a relação de Madonna e Camille sempre foi tensa. Inúmeras publicações tentaram uma aproximação entre as duas, mas a cantora sempre negou, dando de ombros para a adulação acadêmica. Sua postura distante e relutante, no entanto, era condizente com a imagem de divindade acima e à frente do seu tempo que a professora tanto fazia questão de defender.

A grande sacada de Camille, ao defender Madonna, foi compreender o espírito de sua época antes da concorrência. A cantora falava de liberação sexual quando o desejo era uma ameaça à vida. O hit Like a virgin chegou ao topo das paradas de sucesso no momento em que o mundo se assombrava pela primeira vez com o fantasma da Aids. Camille percebeu que o discurso de Madonna mimetizava tanto a avante-garde das ruas de Nova Iorque como o discurso sombrio do cinema europeu das primeiras décadas do século passado. E mais: os puritanos podiam reclamar, mas nossa imaginação é formada pela cultura pop despejada em nossos sentidos 24 horas por dia de forma indiscriminada e sem qualquer restrição.

“Eu me lembro de estar sentada num bar quando Lucky star (um dos primeiros clipes de Madonna) apareceu pela primeira vez na TV. Uma estranha ao meu lado, uma mulher corpulenta de meia-idade e da classe operária, observava Madonna se contorcendo e, com o copo de cerveja a caminho da boca, me perguntou, ‘você vai mesmo assistir a isso?’. Havia a sensação de que Madonna estava fazendo algo tão novo, tão estranho, que era difícil de dizer se aquilo era grotesco ou bonito”.

Para comemorar os 20 anos da publicação de Venus of the radio waves, Camille gravou um vídeo retomando seu apoio a Madonna e destacando o quanto sua previsão de que a cantora seria o futuro do feminismo acabou por se concretizar. É curioso assistir o tal apoio após anos de críticas da professora à seu antigo objeto de adoração, sobretudo após a conversão de Madonna à Cabala, que teria arrefecido a força da sua criação artística. É compreensível: o judaísmo, que nega a força das imagens, perde em horizonte estético para a assombração visual do catolicismo. Quando vemos Camille abraçando outra vez o madonnismo, a impressão é que ela, após 20 anos, retornou para casa.

 

Outros ensaios da edição:

Cuidado: coisas estranhas vão lhe acontecer, por André de Sena
De quando o abandono é a arte em si, por Fernando Monteiro