Este é um trecho de Sob olhos ocidentais, livro que a Zazie Edições lança em breve dentro de sua Coleção Perspectiva Feminista, e que reúne dois ensaios de Chandra Talpade Mohanty (foto), professora e pesquisadora que é referência sobre feminismo e decolonialidade. Os ensaios pensam como produções acadêmicas feministas e ocidentais tratam de forma monolítica e colonial as mulheres das periferias do mundo. As questões lançadas no primeiro texto, de 1986, são revistas no segundo, de 2003, em um gesto de autorrevisão que é característico do debate teórico-crítico feminista. É a esta revisão que pertence o trecho abaixo.
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Atualmente [nota 1], existe uma produção acadêmica feminista crescente e útil, crítica das práticas e dos efeitos da globalização. Em vez de tentar fazer uma revisão compreensiva dessa produção, quero chamar atenção para alguns dos tipos de questões mais úteis que ela levanta. Permitam-me, então, fazer uma leitura feminista de movimentos antiglobalização e argumentar a favor de uma aliança mais próxima, mais íntima entre movimentos de mulheres, pedagogia feminista, teorização feminista transcultural e esses movimentos anticapitalistas em andamento.
[…] Quais são os efeitos concretos da reestruturação global nos corpos “reais” racializados, categorizados por classe, nacionais e sexuais das mulheres na academia, em locais de trabalho, ruas, lares, espaço cibernético, bairros, prisões e em movimentos sociais? E como reconhecemos esses efeitos de gênero em movimentos contra a globalização? Algumas das análises mais complexas da centralidade do gênero na compreensão da globalização econômica buscam vincular questões de subjetividade, agência e identidade com as da economia política e do Estado. Esses estudos argumentam persuasivamente sobre a necessidade de repensar patriarcados e masculinidades hegemônicas em relação à globalização e aos nacionalismos atuais, e também tentam reteorizar os aspectos de gênero das relações reconfiguradas do Estado, do mercado e da sociedade civil, concentran-do-se em locais inesperados e imprevisíveis de resistência aos efeitos muitas vezes devastadores da reestruturação global sobre as mulheres. E recorrem a vários paradigmas disciplinares e perspectivas políticas para defender a centralidade do gênero nos processos de reestruturação global, argumentando que a reorganização do gênero faz parte da estratégia global do capitalismo.
Trabalhadoras com perfil específico, seja econômico, de casta/classe e de raça, são necessárias para a operação da economia global capitalista. As mulheres não são apenas as candidatas preferidas para empregos específicos, mas determinados tipos de mulheres — pobres, do terceiro mundo e do mundo dos dois terços [nota 2], de classe trabalhadora e mulheres migrantes/imigrantes — são as trabalhadoras preferidas nesses mercados de trabalho globais “flexíveis” e temporários. O aumento documentado da migração de mulheres pobres, do mundo do um terço/dois terços em busca de trabalho através das fronteiras nacionais, levou ao aumento do “comércio de empregadas” internacional e do tráfico e turismo sexual internacional. Muitas cidades globais atualmente requerem e dependem completamente do serviço e do trabalho doméstico de mulheres migrantes/imigrantes. A proliferação de políticas de ajuste estrutural em todo o mundo reprivatizou o trabalho das mulheres, transferindo a responsabilidade pelo bem-estar social do Estado para a família e para as mulheres ali situadas. O aumento dos fundamentalismos religiosos em conjunção com nacionalismos conservadores, que também são, em parte, reações ao capital global e suas demandas culturais, levou ao policiamento dos corpos das mulheres nas ruas e nos locais de trabalho.
O capital global também reafirma a linha de cor em sua estrutura de classe recém-articulada, evidente nas prisões no mundo do um terço. Os efeitos da globalização e da desindustrialização da indústria prisional no mundo do um terço levam a um policiamento relacionado dos corpos de mulheres pobres, do mundo do um terço/dois terços, imigrantes e migrantes por trás dos espaços de concreto e barras de prisões privatizadas. Angela Davis e Gina Dent argumentam que a economia política das prisões dos EUA e a indústria de punição no ocidente/Norte coloca em foco nítido a interseção de gênero, raça, colonialismo e capitalismo. Assim como as fábricas e locais de trabalho das corporações globais buscam e disciplinam o trabalho de mulheres pobres, de terceiro mundo/Sul, imigrantes/migrantes, as prisões da Europa e dos Estados Unidos encarceram um número desproporcionalmente grande de mulheres de cor, imigrantes e não-cidadãs, de descendência da África, Ásia e América Latina.
Tornar o gênero e o poder visíveis nos processos de reestruturação global demanda olhar, nomear e ver as comunidades de mulheres de raça e classe determinada de países pobres, à medida que são constituídas como trabalhadoras em indústrias sexuais, domésticas e de serviço; como prisioneiras; e como gerentes e cuidadoras domésticas.
[…] Apesar da exceção ocasional, penso que boa parte da produção acadêmica atual tende a reproduzir representações específicas “globalizadas” de mulheres. Assim como há uma masculinidade anglo-americana produzida nos e pelos discursos de globalização[nota 3], é importante perguntar quais são as feminilidades correspondentes que estão sendo produzidas. Claramente existe a onipresente operária adolescente global, a trabalhadora doméstica e a trabalhadora sexual. Há ainda a trabalhadora migrante/imigrante, a refugiada, a vítima de crimes de guerra, a prisioneira de cor que é mãe e usuária de drogas, a dona de casa consumidora, e assim por diante. Há também a mãe-da-nação/portadora religiosa da cultura e moralidade tradicionais.
Embora essas representações de mulheres correspondam a pessoas reais, elas muitas vezes também substituem as contradições e complexidades da vida e do papel das mulheres. Certas imagens, tais como a operária de fábrica ou a trabalhadora do sexo, são frequentemente situadas geograficamente no terceiro mundo/Sul, mas muitas das representações acima identificadas estão dispersas por todo o globo. A maioria se refere a mulheres do mundo dos dois terços, e algumas a mulheres do mundo do um terço. E uma mulher do mundo dos dois terços pode viver no mundo do um terço. O que estou afirmando aqui é que as mulheres são trabalhadoras, mães ou consumidoras na economia global, mas também somos todas essas coisas simultaneamente. As categorizações monolíticas e singulares de mulheres em discursos de globalização circunscrevem ideias sobre experiência, agência e luta. Embora existam outras imagens novas, relativamente recen-tes de mulheres que também emergem desse discurso […] há também uma divisão entre imagens falsas e exageradas de feminilidade vitimizada ou empoderada, e elas se negam. Precisamos explorar ainda mais como essa divisão se manifesta em termos da caracterização de uma maioria/minoria social, do mundo do um terço/dois terços. A preocupação aqui é: a agência de quem está sendo colonizada e quem está sendo privilegiada nessas pedagogias e produção acadêmica? Essas então são minhas novas questões para o século XXI.
Porque os movimentos sociais são locais cruciais para a construção de conhecimento, comunidades e identidades, é muito importante que as feministas se voltem para eles. Os movimentos antiglobalização dos últimos cinco anos provaram que não é preciso ser uma corporação multinacional, controladora de capital financeiro ou uma instituição de governo transnacional para cruzar as fronteiras nacionais. Esses movimentos constituem um lugar importante para examinar a construção da cidadania democrática transfronteiriça. Mas primeiro é necessária uma breve caracterização dos movimentos antiglobalização.
Diferentemente das âncoras territoriais dos movimentos anticoloniais do início do século XX, os movimentos antiglobalização têm numerosas origens espaciais e sociais. Essas incluem movimentos ambientais anticorporativos, como o Narmada Bachao Andola, no centro da Índia, e movimentos contra o racismo ambiental no sudoeste dos EUA, bem como os movimentos de pequenos agricultores contra o agronegócio em todo o mundo. Os movimentos de consumidores em 1960, os movimentos dos povos contra o FMI e o Banco Mundial pelo cancelamento da dívida e contra programas de ajuste estrutural e os movimentos estudantis contra as sweatshops no Japão, Europa e Estados Unidos também fazem parte das origens dos movimentos antiglobalização. Além disso, os movimentos sociais baseados em identidade do final do século XX (feminista, direitos civis, direitos indígenas, etc.) e o movimento trabalhista transformado dos EUA da década de 1990 também desempenharam um papel significativo em termos da história dos movimentos antiglobalização.
Embora as mulheres estejam presentes como líderes e participantes na maioria desses movimentos antiglobalização, uma agenda feminista só surge no movimento “de direitos das mulheres como direitos humanos” pós-Pequim [sede da IV Conferência Mundial sobre a Mulher das Nações Unidas, em 1995] e em alguns movimentos de paz e justiça ambiental. Em outras palavras, enquanto as meninas e mulheres são centrais para o trabalho do capital global, o trabalho antiglobalização não parece recorrer à análises ou estratégias feministas. Assim, embora eu tenha argumentado que as feministas precisam ser anticapitalistas, eu argumentaria agora que ativistas e teóricos antiglobalização também precisam ser feministas. O gênero é ignorado como uma categoria de análise e uma base para organização na maioria dos movimentos antiglobalização, e a antiglobalização (e a crítica anticapitalista) não parece ser central para os projetos de organização feministas, especialmente no primeiro mundo/Norte. […]
Se olharmos cuidadosamente para o foco dos movimentos antiglobalização, são os corpos e o trabalho de mulheres e meninas que constituem o cerne dessas lutas. Por exemplo, nos movimentos ambientais e ecológicos como Chipko, na Índia, e movimentos indígenas contra a mineração de urânio e a contaminação do leite materno nos Estados Unidos, as mulheres não estão apenas entre as lideranças: seus corpos marcados por gênero e raça são a chave para desmistificar e combater os processos de recolonização implementados pelo controle corporativo do meio ambiente. […]
As mulheres têm desempenhado papeis de liderança em algumas das alianças transnacionais contra a injustiça corporativa. Portanto, tornar visível o gênero, o corpo e o trabalho das mulheres e teorizar essa visibilidade como um processo de articular uma política mais inclusiva são aspectos cruciais de uma crítica anticapitalista feminista. Começar pela localização social das mulheres pobres de cor no mundo dos dois terços é um lugar importante, fundamental mesmo, para a análise feminista; é precisamente o potencial privilégio epistêmico dessas comunidades de mulheres que abre espaço para a desmistificação do capitalismo e a perspectiva de justiça social e econômica transfronteiriça.
[…]
Uma prática feminista transnacional depende da construção de solidariedades feministas além das divisões de lugar, identidade, classe, trabalho, crença, e daí por diante. Nesses tempos tão fragmentados é ao mesmo tempo muito difícil construir essas alianças e também nunca foi mais importante fazê-lo. O capitalismo global destrói as possibilidades e também oferece novas.
Professoras ativistas feministas devem lutar entre si e com as outras para abrir o mundo em toda sua complexidade para seus estudantes. Dados os novos corpos estudantis multiétnicos raciais, as professoras também devem aprender com seus estudantes. As diferenças e fronteiras de cada uma de nossas identidades nos conectam, mais do que nos separam. Portanto, a tarefa aqui é forjar solidariedades autorreflexivas e informadas entre nós.
NOTAS
Salvo quando sinalizado, as notas abaixo são do Pernambuco
[nota 1] Este texto foi publicado em 2003 dentro de Feminism without borders (Duke University Press).
[nota 2] No ensaio de 1986, Mohanty usa esses dois termos para caracterizar territórios subalternizados dentro das dinâmicas globais. Ela usa “terceiro mundo” em uma visada crítica, reconhecendo os problemas da expressão, e em conjunto com “mundo do um terço” (privilegiados, minoria social) / “mundo dos dois terços” (subalternizados, maioria social), que enfocam as diferenças a partir da qualidade de vida e ajudam a distanciar o texto de “binarismos geográficos e ideológicos enganosos”, como ela coloca. A escolha permanece no texto de 2003 por permitir a ela elaborar melhor uma resposta a críticas que o texto anterior recebeu.
[nota 3] Nota da autora: “Discursos de globalização incluem as narrativas pró-globalização de neoliberalismo e privatização, mas também incluem os discursos antiglobalização produzidos por progressistas, feministas e ativistas do movimento antiglobalização.”