Trecho do ensaio A tarefa de tradutor (de poesia), do argentino Ezequiel Zaidenwerg, publicado gratuitamente pela Zazie Edições neste mês (em zazie.com.br). Zaidenwerg traduziu nomes como Denise Levertov, Joseph Brodsky, Anne Carson e Ben Lerner. As traduções para o castelhano e os versos em inglês foram mantidos porque é a partir deles que o autor tece suas reflexões.
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Em termos gerais, há dois tipos de tradutores de poesia: os que acreditam que a tradução deve ser uma ponte perfeita entre línguas e cosmovisões, capaz de reparar, ao menos por um instante, as consequências do desastre de Babel; e os que consideram que a tradução deve deixar que as marcas dessa separação sejam notadas, quando não diretamente expostas, dando ênfase à estranheza e à violência da passagem de uma língua à outra.
Todos os tradutores de poesia, em alguma medida, são religiosos: os iniciados desse grupo, que em geral não tiveram a oportunidade de descer ao nível da tradução assalariada, adoram uma divindade negativa, e suas especulações agorafóbicas tendem a encontrar em certas repartições acadêmicas sua melhor estufa. Dentro desse grupo e iniciados – que ambiciona desmantelar a torre pedra por pedra –, encontram-se os filólogos: são puristas, acreditam que o sentido” ou a “verdade” poéticos estão encriptados no original. O caso extremo desse subgrupo são os tradutores de textos sagrados, para os quais uma tradução ideal deveria transmitir o significado de cada palavra. A última facção desse grupo são os próprios poetas, que acreditam numa espécie de céu platônico da poesia, onde os poemas existem como formas puras, independentemente de sua encarnação linguística particular. A tarefa do poeta tradutor é apreender essa forma ideal que transcende o “original”, despojá-la de todos os elementos que a prendem indissoluvelmente ao seu contexto de produção, e injetá-la na tradição poética da língua de destino – claro que, além de ajustar sintaxe e léxico, trata-se fundamentalmente de encontrar um novo ritmo. O resultado deve ser um poema autônomo por si só, um processo, aliás, não muito diferente da escrita poética “tradicional”, que supõe uma destilação da experiência.
Mentes agnósticas que desconfiam – talvez com razão – da existência desse céu platônico da poesia, quiçá tenham menos inconvenientes com uma ideia secular que, no entanto, é consequência lógica da anterior: se um poema em particular não é “obra” de um autor, sendo versão de uma forma preexistente que, por sua vez, não pertence a ninguém, então a poesia não é um conjunto de poetas, mas de poemas, e o que chamamos “tradução” apenas duplica a instância antológica.
Estava dizendo que o ritmo e a musicalidade são fundamentais em nossa experiência do poético, apesar de que, com a – necessária – demolição das
instituições do bem dizer e a queda em desgraça do repertório métrico tradicional, ao liberar o verso de suas ataduras formais, o ritmo se converteu em uma
prática estritamente pessoal, como se se tratasse de uma impressão digital da própria subjetividade, desligada dos repertórios tradicionais. Voltando à tradução de poesia, creio que os tradutores que não são completamente bilíngues ou falantes da língua de origem levam, paradoxalmente, vantagem sobre os que têm um domínio instintivo dela, porque isso os faz mais propensos a relevar descuidos e desarmonias linguísticas e rítmicas do “original” e, por consequência, facilita a imaginação – a percepção – dessa forma platônica do poema. Assim, a tradução de poesia se torna uma espécie de prótese musical. O que fica particularmente claro quando consideramos as letras de algumas de nossas canções preferidas, independentemente da música: quase sempre, essa corrente de energia que nos atravessa, ao escutar a canção, se apaga sem pestanejar – como é possível que essas palavras torpes e frágeis tenham estado sempre ali?
A propósito das letras de canções, permitam-me uma digressão para tentar refutar um lugar-comum muito frequente, talvez produto da natureza da tal autonomia da figura do escritor e sua inserção no mercado, que resultou particularmente traumática para os poetas. Contrariamente ao tão disseminado medo do desaparecimento da poesia diante do mercado, o séc. XX e, até esse momento, o séc. XXI têm testemunhado um espetacular reflorescimento, que devolveu à poesia o lugar de preeminência, entre os gêneros literários, que o romance lhe havia arrebatado de maneira efêmera. Em troca, no entanto, a poesia precisou pagar um preço que, para algumas pessoas, parece intolerável. Me refiro ao astronômico crescimento da música popular, cujo consumo – e os lucros que ele traz – supera amplamente aquele de qualquer outra produção verbal.
Letras de canções também são poesia e, de fato, por estarem vinculadas a um compasso, devem seguir uma métrica bem menos “livre” que a dos poemas não musicalizados. Além disso, a prática da rima, que caiu em desgraça – com exceções – na poesia contemporânea, continua sendo bastante frequente na poesia musicada, e, de fato, alcança níveis paroxísticos em gêneros mais populares – como o rap, o hip-hop, o reggaeton etc. O objetivo dessa digressão, no entanto, não era apenas tentar resolver essa polêmica, mas antes mostrar que a poesia, longe de ser um produto marginal na cultura, é um dos mais difundidos e, enquanto tal, continua sendo um objeto não só relevante, mas particularmente frutífero para a crítica. Nesse sentido, a tradução de poesia pode ser uma ferramenta para o exercício da crítica cultural. [...]
Traduzir um poema se parece com o interpretar, em suas duas acepções – performática e hermenêutica -, uma peça musical. A partitura está ali, diante de nós para que a sigamos de perto, mas também para que tomemos distância – uma distância crítica. Traduzir é uma arte do subterfugio, é reinterpretar sem mudar uma linha do pentagrama.
Em sua conferência Juego y teoría del duende, cujo título coloca justamente o interpretativo e o lúdico à frente do especulativo, Federico García Lorca explica-o da melhor maneira possível nesta passagem:
às vezes, quando o músico ou o poeta não são tais, o duende do intérprete, e isso é interessante, cria uma nova maravilha que tem na aparência, nada mais, a forma primitiva.
Não importa, aqui, o que o torna músico ou poeta – dissemos que a poesia era questão de poemas, não de poetas. O importante, pelo contrário, é a natureza dessa nova maravilha: subsidiária, sim, porém só na aparência da qual supostamente era apenas uma versão. Abundam na tradição poética exemplos que colocam num mesmo nível “original” e “tradução”, ou que simplesmente fazem desta a versão autorizada. Por exemplo, Safo escreveu um poema célebre cujo original se perdeu, e que chegou até nós em uma versão fragmentária que, traduzido para o espanhol, poderia soar assim:
Semejante a los dioses me parece
ese hombre que, sentado frente a ti,
desde muy cerca escucha cómo le hablas
con dulzura
y te ve sonreírle, seductora:
eso me hace parar el corazón,
pues si te miro apenas un instante,
pierdo el habla;
la lengua, silenciosa, se me quiebra;
y un fuego delicado me recorre
la piel; no ven mis ojos y me zumban
los oídos;
me cae un sudor frío, y un temblor
se apodera de mí; me pongo pálida
como la hierba, y próxima la muerte
me parece.
Pero yo todo lo soporto, porque...
Séculos mais tarde, Catulo interpretou em latim o mesmo (?) poema. Talvez, se tivesse sido escrito em castelhano por alguém na Argentina do início do século XXI se pareceria com isso:
Me parece que a un dios es comparable,
y aun supera a los dioses, si eso es lícito,
el que sentado frente a vos te mira
sin cesar y te escucha
sonreír dulcemente. Y yo, por eso,
¡ay de mí!, pierdo el juicio: porque sólo
con verte, Lesbia, apenas puedo hablar
con un hilo de voz,
se me traba la lengua, un fuego suave
me recorre los miembros, los oídos
por su cuenta retumban y la noche,
doble, tapa la luz.
Es malo para vos, Catulo, el ocio:
cifrás todas tus ansias en el ocio:
a reyes del pasado perdió el ocio,
felices, y a ciudades.
A história da tradução de poesia é a história dessas versões que, não importando sua primogenitura, metem-se a conversar mano a mano. Também é a história das subversões que fazem do “original” – justiça poética – um mero subalterno. Janus Vitalis, um esquecido poeta renascentista italiano que escreveu em latim, deixou alguns dísticos elegíacos que, apesar de terem chegado até nós, só vivem realmente nas traduções de outros. Digo vivem, e não sobrevivem, porque souberam imaginar algo da força do poema ideal, que Vitalis só captou pela metade. Joachim Du Bellay, poeta francês da Plêiade, apropriou-se dele para transformá-lo em soneto. Como era de costume, Du Bellay – que morreu antes de completar trinta e oito anos - tropeçou antes de alcançar sua meta e, após introduzir uma rima interna (détruit/fuit) e de exaltar magistralmente a aliteração do f (ferme, fuit, fait) para sugerir o sopro espectral do compasso do tempo, em vez de dar o golpe de misericórdia limitou-se a fazer caber na estrutura rimada o dístico final,
Disce hinc, quid possit fortuna; immota labascunt,
Et quae perpetuo sunt agitata manent
que significa algo como:
Aprende, pues, de qué es capaz la suerte:
cede lo inamovible y quedan sólo
las cosas que se agitan sin cesar.
Então, Du Bellay faz assim:
Ce qui est ferme, est par le temps détruit,
Et ce qui fuit, au temps fait résistance.
Ou seja, perdendo as aliterações, mas não a rima interna nem o metro:
A lo que es firme, el tiempo lo destruye;
lo que huye, le hace resistencia al tiempo
Francisco de Quevedo y Villegas, por sua vez, entendeu que o poema, para se aproximar um pouco mais de sua forma ideal – mais uma assíntota que um ponto de chegada – exigia este arremate em castelhano:
huyó lo que era firme y solamente
lo fugitivo permanece y dura.
Por sorte, essa história não se limita aos clássicos, nem a um cânone suspeito de vetusto e solene – muito menos a algumas ruínas empoeiradas transformadas em atração turística ou parque temático. A história continua. Por exemplo, na boca de Bono – o vocalista do U2, que mescla um ativismo político aspiracional e turístico com técnicas New Age de autocuidado –, filmado por Anton Corbijn ao lado uma mulher misteriosa e envolto por uma aureola de fumaça tão teatral que não convence estar saindo do cigarro que aparece nas imagens, One parece falar anedoticamente de uma relação amorosa, quando diz:
We’re one but we’re not the same
We get to carry each other, carry each other.
Somos uno, aunque no somos el mismo.
Nos toca sostenernos los unos a los otros.
Por outro lado, quando Johnny Cash, no final da sua vida, grava esses mesmos versos com sua voz cansada, o caso de amor um pouco melancólico de Bono, colocado na boca de um velho, já no fim da festa, transforma-se em uma reflexão angustiante sobre a tarefa, tão impossível quanto inevitável, de viver e morrer com os demais:
Somos uno, aunque no somos el mismo
Nos toca sostenernos los unos a los otros.
E falando de dor, há outra canção, Hurt, que o próprio Cash incluiu no mesmo disco de versões em que está gravado o cover de U2, e que pode ser encontrada em quase todo karaokê. O “original”, no entanto, é de Nine Inch Nails, um grupo que teve seus quinze minutos de fama, mas hoje praticamente saiu de circulação. Trent Reznor, o líder do grupo e compositor da canção, reagiu desta maneira ao escutar – e ver – Cash interpretá-la:
I pop the video in, and wow... Tears welling, silence, goose-bumps... Wow. [I felt like] I just lost my girlfriend, because that song isn’t mine anymore.
(Coloco o vídeo e... uau! Jorram lágrimas, silêncio, me arrepio. Uau. Senti como se tivesse perdido minha namorada, porque a música não me pertencia mais)
Me ocorreu que é isso que dizia Garcia Lorca quando falava do duende.
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A tradução de poesia é uma ferramenta crítica e interpretativa – tanto no sentido hermenêutico como no outro: aquele que envolve o corpo e, assim, a toda a subjetividade, que inclui práticas que não são estritamente verbais e, no entanto, plenas de sentido.
Como o intérprete diante da partitura, a tradução de poesia faz conviver sem naufragar duas temporalidades antagônicas: a lentidão do pensamento, a súbita contração muscular.
A tradução de poesia é uma forma exponencial de leitura.