Falar da importância e da reverberação que a chamada literatura fantástica operou e ainda opera no âmbito da ficcionalidade ocidental é o mesmo que discorrer a respeito da literatura de um modo geral, no que tange ao que há de mais imaginativo – para utilizarmos um termo caro ao período oitocentista (em que surge o conceito de fantástico), quando o poeta inglês Coleridge separa a “imaginação” criadora da “fantasia” convencional (esta última, mais ligada ao classicismo) – no processo de criação e recepção da obra literária.

Aos que ainda não descobriram o rico filão (ficcional e teórico) da literatura fantástica, lembremos de uma de suas mais conhecidas definições, feita pelo crítico búlgaro Tzvetan Todorov, no livro Introdução à literatura fantástica: “O fantástico dura apenas o tempo de uma hesitação: hesitação comum ao leitor e à personagem, que devem decidir se o que percebem [acerca de um fato aparentemente sobrenatural] depende ou não da ‘realidade’, tal qual existe na opinião comum. No fim da história, se o leitor, quando não a personagem, toma contudo uma decisão, opta por uma ou outra solução, sai desse modo do fantástico. Se ele decide que as leis da realidade permanecem intactas e permitem explicar os fenômenos descritos, dizemos que a obra se liga a um outro gênero: o estranho. Se, ao contrário, decide que se devem admitir novas leis da natureza, pelas quais o fenômeno pode ser explicado, entramos no gênero do maravilhoso. O fantástico leva pois uma vida cheia de perigos, e pode se desvanecer a qualquer instante”.

A equação todoroviana, resumida no parágrafo acima, serviu como uma espécie de chave – embora recusada como insuficiente por alguns críticos – para compreender um fenômeno literário que data de fins do século 18 e chega a nossos dias (o livro do crítico búlgaro foi publicado em 1970). Partindo do método indutivo, ele esmiuçou um grande número de obras tidas ou não como fantásticas, em busca de um denominador comum que pudesse atestar a existência de um gênero efetivo, e compreender do ponto de vista crítico a atordoante quantidade de histórias estranhas que saíram e saem das penas dos mais diversos autores espalhados no tempo e no mundo.

“Atordoante” é um eufemismo. Muitos críticos do passado julgaram ver no fantástico uma impostura mimética, um desvario da ficcionalidade ou até mesmo escapismo, no momento em que as coisas mais absurdas começaram a ser narradas, implodindo de vez o conceito ideologizado de mímese exigido pelas poéticas normativas do neoclassicismo e, também, pelo chamado romantismo tradicional, ligado à expressão de uma subjetividade que nada tinha de assustadora ou excêntrica.

Exemplo disso é o prefácio escrito pelo romancista (romântico) inglês Walter Scott para a edição posterior de uma obra do contista alemão E.T.A. Hoffmann, este último, justamente considerado um dos avatares da literatura fantástica, senão seu maior nome. Em seu prefácio ao livro hoffmanniano O pequeno Zacarias, chamado Cinabre, diz Scott: “o gosto dos alemães pelo misterioso levou-os a inventar um gênero de composição que talvez só pudesse existir no seu país e na sua língua. É aquele a que se poderia chamar o gênero FANTÁSTICO (sic), em que a imaginação se abandona a toda a irregularidade dos seus caprichos e a todas as combinações das cenas mais estranhas e mais burlescas”. Scott, tido como um dos criadores do romance histórico, censura Hoffmann por não tê-lo seguido, e completa: “Às vezes podemos deter nosso olhar com prazer num arabesco executado por um artista dotado de rica imaginação; mas é penoso ver o gênio se exaurir em objetos que o gosto reprova. Não gostaríamos de lhe permitir uma excursão nessas regiões fantásticas a não ser sob a condição de que ele trouxesse de lá ideias doces e agradáveis”. Scott iconiza aqui a crítica romântica de verniz mimético. Mas, apesar desta evidente incompreensão relativa às obras de cunho fantástico, Hoffmann era avidamente lido em toda a Europa, gerando, com o passar dos anos, um culto que haveria de tornar seu nome imortal. Contos como O vaso de ouro (cujo tema principal, num resumo grosseiro, é a história de um estudante desastrado que se apaixona por uma serpente encantada, de fulgurantes olhos azuis); O pequeno Zacarias (no qual um anãozinho grotesco passa a controlar o talento artístico alheio após ter o seu cabelo penteado por uma fada); O Homem da areia (em que o mundo das convenções burguesas é posto de ponta cabeça após a chegada de um estranho vendedor de barômetros e lunetas); ou O violino de Cremona (onde um construtor de violinos descobre que a voz de sua filha está sendo incorporada por um de seus instrumentos), faziam a alegria dos leitores, em sucessivas edições que espalhavam a fama de Hoffmann como um dos mais inventivos autores da época, por ter conseguido elevar ao estado de arte um veio literário que gerava rebentos desde as épocas do velho romance gótico (século 18). No processo também está inclusa a dinâmica da recepção, as mutações e acendramentos estéticos do público leitor, conforme explicita um texto crítico do contista francês Guy de Maupassant, por sinal, outro nome de peso da literatura fantástica. Segundo o mesmo, “quando o homem acreditava sem hesitação (na época do romance gótico), os escritores fantásticos não tomavam nenhuma precaução para desenvolver suas supreendentes histórias. Entravam, de supetão, no terreno do impossível e lhes estava à disposição – variando ao infinito as combinações inverossímeis, as aparições – todos os truques mais estapafúrdios para produzir o terror. Mas, depois que a dúvida finalmente penetrou nos espíritos, a arte se tornou mais sutil. O escritor procurou as esfumaturas, vagando em torno do sobrenatural mais do que penetrando nele. Encontrou efeitos assustadores ficando na fronteira do possível, jogando as almas na hesitação, no ofuscamento da razão. O leitor, indeciso, não sabia mais, perdia o chão – como quem se aventura em um curso d’água e de repente não sente o fundo (...). O poder extraordinariamente terrificante de Hoffmann e de Edgar Poe deriva de tal astuta habilidade”. Todorov, por sua vez, elenca o romance gótico no gênero do estranho, enquanto tem na maior parte dos contos de Hoffmann um paradigma do fantástico. Como se vê, a história do conto fantástico se liga às mutações do próprio fazer e compreender o literário.

Apesar das reclamações de um ou outro crítico mais exigente de “realidade mimetizada”, todos leram e amaram Hoffmann. Do simples leitor anônimo a Balzac, Poe, Gautier, Bécquer, Maupassant, Nerval, Borges, Quiroga, passando pelo brasileiríssimo Álvares de Azevedo etc., etc., até chegar na contemporaneidade. Baudelaire, o profeta da modernidade, chamava O vaso de ouro de “maior tratado de estética já escrito” e Sigmund Freud atingiu certos píncaros de sua teorização sobre o inconsciente, não à toa, num estudo sobre Hoffmann intitulado Do estranho (onde diz que “E.T.A. Hoffmann é o mestre inalcançado do sinistro na literatura”).

Partindo da obrigatória referência às fontes presentificadas em Hoffmann, nos perguntamos agora: por que continuamos lendo o fantástico nos dias atuais (no caso, o fantástico como o concebeu Todorov, aquele do período da literatura romântica)? E por que há autores que ainda escrevem contos fantásticos semelhantes aos da etapa oitocentista? O interesse pelo tema existe e pode ser mensurado também nas variadas antologias de contos fantásticos que vêm sendo publicadas por grandes e pequenas editoras brasileiras desde a última década do século 20 e a primeira deste novo milênio (e lembremos aqui de Borges, que dizia que o fantástico foi o gênero preferido por escritores do mundo inteiro, em todos os tempos, sendo o realismo “uma excentricidade recente”).

O próprio Todorov nos dá a pista inicial, ao lembrar, novamente no âmbito da ficcionalidade, que o fantástico continuaria permitindo “franquear certos limites inacessíveis quando a ele não se recorre”. Neste caso, “a literatura fantástica coloca precisamente em questão a existência de uma oposição irredutível entre real e irreal. Mas para negar uma oposição, é preciso em primeiro lugar conhecer seus termos; para cumprir um sacrifício, é preciso saber o que sacrificar. Assim se explica a impressão ambígua que deixa a literatura fantástica: de um lado ela representa a quintessência do limite entre real e irreal, característico de toda literatura, é seu centro explícito. Por outro lado, entretanto, não é senão uma propedêutica à literatura: combatendo a metafísica da linguagem cotidiana, ela lhe dá vida; ela deve partir da linguagem, mesmo que seja para recusá-la”.

O mérito de Todorov foi ter se detido no fenômeno literário a partir do fantástico, considerado não como diferente do que fala a literatura em geral, mas como uma espécie de intensificação metalinguística que aponta diretamente para uma construção autoconsciente a ir além da mimese tradicional, de profunda repercussão na literatura do Ocidente. Em suma, o fantástico é metaliteratura: ele opera suas leis internas; é a poesia pura da prosa.

O contista Julio Cortázar, um dos maiores nomes do fantástico de nossa época, dizia que via o mundo de uma maneira distinta e que somente a literatura fantástica continuava lhe possibilitando a percepção e expressão de certos interstícios entre “coisas que parecem perfeitamente delimitadas e separadas”, os quais “não poderiam ser explicados através de leis ou pela inteligência racional”. Em outras palavras, o fantástico saciaria nosso desejo e necessidade de ir além da lógica do tempo e espaço cotidianos, ousando abrir a porta a coisas aparentemente inconscientes, aleatórias, ao estranhamento que pode e deve irromper dos momentos mais prosaicos. Cortázar cita ainda o surrealista Alfred Jarry, para explicar sua necessidade do fantástico: “Jarry, autor de tantos belos poemas e novelas, disse uma vez que o que lhe interessava verdadeiramente não eram as leis, mas as exceções a elas”.

Um autor e crítico brasileiro contemporâneo, Bráulio Tavares, também organizador de inúmeras coletâneas fantásticas, sintetiza toda a riqueza do gênero: “cada conto fantástico nos revela não apenas uma nova descoberta, mas uma nova maneira de descobrir”. Bráulio lembra que o fantástico oitocentista ainda respira na atualidade, fecundando não apenas o chamado “realismo mágico” (a feição contemporânea a que chegou, num novo e outro patamar ligado à verossimilhança), mas também o universo do cinema, dos quadrinhos e da animação computadorizada. Contudo, o crítico explica o paradoxo do gênero ainda presente no Brasil. Ao tempo que conta com um público fiel de leitores, a cada dia maior, e novos autores que se contam às centenas (sendo a grande maioria composta por talentos anônimos que trabalham na surdina), o fantástico ainda não é um gênero ou modo muito cultivado no país pelos escritores mais conhecidos do público. Conta-se nos dedos os contos fantásticos, por exemplo, escritos pelos membros da Academia Brasileira de Letras de ontem e hoje. “Ainda estamos tentando domesticar o realismo, e cultivar o fantástico não é prioridade por enquanto. Nossa literatura, vista em conjunto, pretende enxergar o Brasil, imaginar o Brasil, extrair de nossas experiências contraditórias uma imagem plausível do Brasil”, explica Bráulio. Por outro lado, a experiência do fantástico está “muitas camadas geológicas abaixo do Brasil. Parece ser uma só, comum a todos os povos, contínua ao longo de todas as épocas. Podemos tentar ignorá-la, mas não sei se poderemos um dia nos livrar dela”. E é justamente nessa experiência que toca o que há de mais íntimo ao ser humano, em que a percepção do estranho se conjuga à capacidade imaginativa e à criatividade, que o fantástico se valida e demonstra sua sempiterna riqueza.


André de Sena é escritor e doutor em teoria literária.

 

Outros ensaios da edição:

Após vinte anos, Madonna ainda é o tal futuro, por Schneider Carpeggiani

De quando o abandono é a arte em si, por Fernando Monteiro