Ensaio Zazie ESDI Arte sobre reproducao Acervo ESDI foto e Fernando Chaves design uerj resiste

 

Uma das primeiras atividades após nossa posse na diretoria da Escola Superior de Desenho Industrial da UERJ foi uma inspeção ao campus da Esdi, que eu não visitava de forma detida desde meus tempos de aluna, nos anos 1990. Nessa ocasião, fiquei bastante impressionada com a deterioração das instalações, que pareciam estar sendo tomadas pela ação do tempo, das plantas e dos cupins, que se espalhavam por toda parte.

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Em relação aos cupins, contactamos um especialista em termitologia, professor aposentado de uma universidade pública, que prestava serviços de descupinização. Em suas visitas ao campus, fomos apresentados ao trabalho silencioso e invisível realizado por essas criaturas, que haviam transformado o interior de portas e janelas em outras insuspeitadas coisas. Os cupins pareciam ter o cuidado de não roer as suas superfícies externas, devorando o seu interior, para então adicionar um novo material, composto de saliva e excrementos. Assim, aparentemente, ainda era possível encontrar, nas salas, portas, janelas e tampos de mesa. Contudo, por dentro, elas não eram mais compostas de madeira. Em seu lugar, esse estranho material, produzido pelo esforço colaborativo dos cupins e seus companheiros intestinais.

Então, o que parecia ser ainda uma escola, era já uma mesma e outra coisa. Uma outra escola, aparentemente oca, mas já reconformada por uma nova materialidade, produzida lentamente pelo trabalho invisível e silencioso dos cupins. Se, como administradores, tínhamos de combater a ação dessas criaturas e investir em modos de recuperar o que eles haviam danificado, por outro lado, o contato com essa outra arquitetura, produzida por eles, nos lançava uma série de questões relacionadas à novidade daquela (des)arquitetura. Que outras novas estórias essa arquitetura simbiótica nos convidava, agora, a edificar?

[...] Mais ainda, que estórias decidimos honrar? Aquela com a qual se identifica esse professor-fundador a quem por duas vezes prestamos homenagem em 2017? A da diretora Carmen Portinho, engenheira, urbanista e ativista do feminismo, plantando árvores junto aos alunos nos anos 1960? A que nos contam as raízes tentaculares das árvores que se aventuram pela cidade em busca de água? A dos cupins vivendo junto com bactérias e protozoários que com eles desenvolvem imbricados modos de vida e renovadas materialidades? Aquelas vividas pelos mais de mil designers já formados na Esdi? A dos 45% de alunos que entraram na universidade por meio de uma política estadual que reserva vagas para estudantes oriundos da rede pública de ensino, negros, pessoas com deficiência e integrantes de minorias étnicas, além de filhos de policiais civis, militares, bombeiros militares e de inspetores de segurança e administração penitenciária, mortos ou incapacitados em razão do serviço, política na qual a UERJ é pioneira no país? Ou, talvez, a estória forjada pelo governador Luiz Fernando de Souza, mais conhecido como Pezão, à frente da administração do estado do Rio de Janeiro entre 2014 e 2018?

Após um tempo de euforia, decorrente do anúncio da descoberta de reservas petrolíferas na camada de pré-sal do subsolo oceânico na região do Rio de Janeiro, esse estado mergulhou em processo de profunda crise financeiro-administrativa. A UERJ, universidade pública vinculada à administração estadual, e da qual a Esdi faz parte, foi afetada de modo intenso e inédito. Responsável pelo repasse de verbas para manutenção e custeio das atividades acadêmicas nessa universidade, o governo do estado subtraiu os pagamentos de salários e bolsas de estudo, bem como o financiamento para manutenção de infraestrutura e realização das atividades regulares de ensino e pesquisa. Os atrasos e as suspensões nos pagamentos tornaram-se recorrentes e cumulativos desde o início de 2016. [...]

Esse processo resultou em uma série de greves de professores, alunos e funcionários, bem como em suspensões temporárias das atividades por decisão da administração central da universidade, em razão de falta de água, luz, manutenção e serviços. Em meio a essa situação, também irromperam diversos quadros de doenças, stress, depressão e outras complicações físico-emocionais. […]

Resistindo à precariedade institucional e financeira, a manutenção da escola aberta se colocou como um exercício contínuo de gerenciamento compartilhado entre professores, alunos e funcionários, em que foram postos em prática diversos ensaios de sobrevivência em meio à precariedade. Além do esforço para descentralização, distribuição e horizontalização na liderança e administração da escola, emergiram diversas experimentações em torno de modos alternativos de abertura e manutenção das atividades: um grupo de alunos abriu terreno para o cultivo de uma horta comunitária onde, além de agricultura, eles passaram a desenvolver produtos e pesquisas a partir de materiais orgânicos; um outro grupo ocupou a oficina gráfica, até então desativada pela ausência de corpo técnico, criando o Colaboratório, experimento de gráfica artesanal que envolve gerenciamento compartilhado de espaço, hackeamento de máquinas e produção de livros e demais artes gráficas; professores, alunos e ex-alunos se reuniram para oferecer cursos livres que contam com reserva de gratuidade de 50% das vagas para alunos da Esdi; e, também, dias inteiros de aulas e oficinas gratuitas e abertas ao público geral, com temas definidos junto aos estudantes. Outro grupo de alunos se organizou para viabilizar o pagamento mensal dos salários do zelador da escola, Sr. Carlinhos, que fora demitido por uma das empresas que rompeu contrato com a universidade. Esses são alguns exemplos de ações realizadas em meio ao esforço pela sobrevivência e abertura da escola, naquele momento.

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A reitoria nos pedia para apresentar relatos sobre as condições para a realização das atividades de ensino, pesquisa e administração, mas, também, para reportar sobre as apreciações comunitárias, que deveriam ser resultado de encontros periódicos entre professores, alunos e funcionários em cada unidade acadêmica, para que, assim, toda a universidade pudesse estar a par não apenas das condições de funcionamento, mas, sobretudo, do “pulso” comunitário. O intenso ir e vir entre essas inúmeras reuniões, em que na maioria das vezes não havia algo a ser deliberado, gerava angústia em muitos de nós. No entanto, o esforço para manutenção da comunicação em meio a uma situação de crise cada vez mais complicada foi fundamental para a ativação de um forte senso comunitário na UERJ e, também, na Esdi.

Esse tenso processo se intensificou quando, ainda nos primeiros dias de 2017, a administração central declarou a impossibilidade de retomada das aulas, por conta da ausência de recursos e serviços básicos. Essa decisão deu início a um amplo debate nas unidades acadêmicas sobre as alternativas possíveis para evitar o completo fechamento das atividades na universidade.

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Naquele momento, parecia que ninguém se importava com a universidade. Nos debatíamos para chamar atenção. Muitos defendiam a ideia de que o caminho para enfrentar a situação seria mobilizar a “sociedade civil”, buscando apoio junto à “opinião pública”. Se ponderava sobre as perdas e os ganhos envolvidos no fechamento ou na abertura da universidade. O debate era constante e, apesar da enorme tensão que o cercava, o ambiente aberto à discussão, que na maioria das vezes não passava por tomadas de decisão ou votações, terminou por estabelecer um clima de motivação e engajamento entre aqueles, que, assim como a técnica de informática, estavam dispostos a manter a escola e a universidade abertas e em operação, mesmo que de forma improvisada e parcial.
Em meio a essas reuniões, decidimos, na Esdi, que seria importante mobilizar não apenas a comunidade atual, mas, também, os ex-alunos, reativando a associação de amigos da escola. Com isso, buscávamos ampliar o cuidado, tornar visível a nossa situação, e comemorar, com uma grande festa, a abertura de novo portão de acesso ao campus e website, ambos realizados através de parcerias articuladas ainda em 2016. O evento, denominado de Esdi Aberta #Uerjresiste, foi marcado para 12 de fevereiro de 2017.

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Mas por que comemorar? Discutimos muito sobre isso, e terminamos por entender que, diante de um quadro de tamanha instabilidade, em que parecia impossível vislumbrar qualquer tipo de articulação para escapar da precariedade que se instalava entre nós, na universidade, a melhor saída seria afirmar a nossa presença naquele lugar, lembrando a nós mesmos e aos outros que a Esdi existia e seguiria existindo. Comemorar não apenas para lembrar o que nos conforma como uma comunidade, mas, também, para atrair e prolongar, no presente, o que desapareceria sem a reciprocidade ativa de parceiros.
Dois motivos concretos animavam a festa: a abertura de um novo portão de acesso ao campus e o lançamento de um novo website, ambos projetos realizados por meio de parcerias com alunos, ex-alunos e instituições públicas e privadas. O evento contou com oficinas de arte e design, mutirão de plantio, grafite, bazar beneficente, feira de comida e bebida, desconferências, homenagem ao Prof. Bergmiller, aula aberta do Prof. Pedro Luiz Pereira de Souza, cerimônia de abertura do portão e lançamento de novos website e identidade visual, além de concerto reunindo vários artistas, e, para encerrar a festa, um bloco de carnaval. Passaram pela Esdi, nesse dia, mais de 1.500 pessoas, e houve importante repercussão na mídia local e nas redes sociais. Diferentes gerações de ex-alunos se reencontraram, e a onda de cuidado comunitário se espraiou para além da festa. Nas semanas seguintes, muitos ex-alunos voltaram à escola, propondo parcerias e se engajando em diversas atividades. Assim, foram sendo ensaiadas várias propostas para garantir a abertura da escola, que foram sendo testadas ao longo de todo o ano de 2017.

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Essas experimentações, assim como o senso comunitário que as inspirou, podem parecer meros atos improvisados e sem consequência, que servem apenas para mitigar, circunstancialmente, os efeitos da situação. Contudo, tal como as portas e janelas refeitas por uma outra materialidade, elas se multiplicam, criando, assim, de fato, uma nova e outra escola. Não porque rejeita ou recusa o passado, nem porque se pretende remodelada para o futuro como fruto de um outro novo projeto, mas, sim, uma mesma nova outra escola que corresponde ao que acontece aqui e agora.

Então, os modos com que, na Esdi, ensaiamos reagir não apontam apenas para caminhos de reinvenção da escola, mas, também, ampliam o debate sobre a noção de futuro como elemento tradicionalmente entendido como fundamental para a caracterização do exercício de projeto na prática profissional de design. Afinal, na retórica industrial que informa essa atividade, primeiramente as coisas deveriam ser idealizadas, para, em seguida, serem modeladas, testadas, fabricadas, lançadas no mercado, e, enfim, consumidas. Segundo essa versão, os desenhistas industriais seriam aqueles que se dedicariam ao projeto de desenvolvimento das coisas enquanto produtos da indústria. Planejando hoje o que só entraria em circulação um pouco mais tarde, em um futuro mais ou menos próximo. Projeto em design teria a ver, então, com as ideias de previsão, prescrição, predição.

Uma vez que, desde então, e ainda mais após as eleições presidenciais no final do ano de 2018, temos sido surpreendidos diariamente com novos e insuspeitados desafios, a predição supostamente intrínseca à atividade de projeto em design parece incompatível com as urgências e com a precariedade que nos ameaçam. Assim, as respostas que ensaiamos na Esdi, operadas em meio a intensos processos de experimentação e improvisação, parecem indicar transformações fundamentais nas ênfases temporais que orientam o exercício do design, uma vez que, mais do que planejar artefatos ou formas de comunicação com vias a uma implementação em um tempo futuro, é preciso tomar uma atitude e responder em tempo presente.

Parece, então, que a lógica industrial já não nos serve mais. Se formamos a última área de conhecimento a brotar do projeto ocidental moderno, acreditando, então, nas grandes separações – isso e aquilo, criação, produção, consumo, nós e eles (projetistas, consumidores e usuários)–, talvez seja hora de perceber que esse mesmo projeto, a que muitos de nós, designers, devotam sua fé, não mais nos cabe. Ou será que nós é que não cabemos mais nele? Será que algum dia teremos cabido?


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O texto acima é um trecho do livro Refazendo tudo: Confabulações em meio aos cupins na universidade, de Zoy Anastassakis, em que pensa a experiência de comunidade e resistência no movimento Esdi Aberta na Escola Superior de Desenho Industrial (Escdi) da UERJ, durante os anos de 2016 e 2017. O livro será lançado pela Zazie Edições e estará disponível para download gratuito em http://www.zazie.com.br/ a partir do dia 10/03.