Hannah Arendt, para quem a irreflexão tornara-se a principal característica de uma era “à mercê de qualquer engenhoca tecnicamente possível”, escreveu em célebre seção de Homens em tempos sombrios (Cia. das Letras), dedicada ao pensador alemão Walter Benjamin: “ele tinha paixão pelas coisas pequenas, até minúsculas”.
Perseguido pela má sorte (pelo fantasma do Sr. Desajeitado, como invocava a mãe do filósofo e as demais mães da Alemanha quando as crianças, desastradas, incorriam nas “pequenas catástrofes da infância”), Benjamin protagonizou causos extravagantes que o levaram à mesma galeria dos eclipsados Franz Kafka e Robert Walser, para ficar em alguns nomes. Sobre Kafka, aliás, o filósofo explicaria como que para si mesmo: “um entendimento de sua produção envolve, entre outras coisas, o simples reconhecimento de que ele foi um fracasso”.
A respeito de suas esquisitices, o professor de mística judaica Gersholm Scholem (por quem Benjamin foi bastante influenciado) conta que o filósofo era obcecado pela ideia de colocar 100 linhas escritas em cada página de seus cadernos de notas. Colecionava livros infantis raros ou de autores “mentalmente perturbados” (palavras com as quais Arendt também define o filósofo), que “não serviam para nada, nem para divertir, nem para instruir”: Benjamin não se interessava por psicologia infantil nem psiquiatria. Scholem, não esquece, além disso, do culto que o teórico rendia a dois grãos de trigo da seção judaica do Museu Cluny, em Paris, nos quais se encontrava a inscrição do Shemá Israel, palavras iniciais da Torá.
Talvez bastasse dizer, nesta introdução, que a indecibilidade inscrita ao longo do pensamento benjaminiano (ambíguo, dado que uma luta justamente contra a acedia e o tédio) expressou-se tragicamente no episódio da morte do pensador: o azar de Benjamin foi metastático.
Como lembra Leandro Konder (O marxismo da melancolia, Civilização Brasileira), Benjamin, dividido pelas amizades de Theodor Adorno, Scholem e Berthold Brecht (judeus que se odiavam e viviam, durante a Segunda Guerra, em países de fronteira segura), foi incapaz de decidir para onde fugiria caso os alemães chegassem a Paris, onde então vivia desde 1933. Acabou tirando a própria vida, em 1940, antes de conseguir cruzar a fronteira franco-espanhola. Na tentativa frustrada de fuga, um fato lhe tiraria de vez as esperanças: a Gestapo confiscara seu apartamento parisiense, e com ele, seu verdadeiro e único patrimônio, a biblioteca.
(E pensar, como lamenta Michael Löwy – Walter Benjamin: aviso de incêndio, Boitempo -, que o pensador poderia ter composto o quadro docente da Universidade de São Paulo, na ocasião em que o filólogo Erich Auerbach enviou-lhe correspondência, em 1935, falando sobre a vaga na cadeira de Literatura Alemã. Mais uma vez o azar: “Que pena! Por culpa de alguma instância incompetente...”)
A paixão pelas “grandezas do ínfimo”, não se tratava, contudo, de capricho. Benjamin, como bem indica Arendt, cria (sim, trata-se de uma teoria mística, ou de uma teologia acadêmica) ser possível encontrar, no mundo, algo concreto em que coincidiriam significado e aparência, palavra e coisa, ideia e experiência. Para Benjamin (assim distanciado de caminhos tradicionais do marxismo e do materialismo histórico) quanto menor fosse o objeto (sua letra no caderno de anotações ou grãos de trigo), mais pareceria provável que este contivesse “tudo sobre sob a mais concentrada forma”. Nos grãos de trigo, todo o Shemá Israel, e assim, também, todo o judaísmo: “a mais minúscula essência aparecendo na mais minúscula entidade”.
É exatamente neste sentido que o filósofo tinha o colecionismo em boa conta: o gosto por reunir objetos sem uso (a miudeza é, sobretudo, uma questão ligada à utilidade) em um universo que só interessava a si mesmo, traduzia, em suas palavras, a “tentativa de capturar o retrato da história nas representações mais insignificantes da realidade, por assim dizer em suas raspas”.
A metodologia de Benjamin é infantil ou perdulária no desejo de transfigurar objetos, profaná-los, tal como faz uma criança ou alguém muito rico: em ambos os casos o desinteresse pela coisa, por seu uso (e quanto prazer há nisso!), é justamente o que permitiria a emergência de sua beleza.
O fato é que, para Benjamin, não apenas objetos de arte se ofereciam ao colecionador: qualquer coisa poderia ser retirada do mundo, e através de uma subtração (objetos colecionados perderiam a característica de ser meio para um fim), revelar seu valor intrínseco: espécie de redenção das coisas consubstancial à redenção do homem no projeto marxista.
Susan Sontag, evocando o “magistral ensaio” de Arendt, aqui tão citado, lembra-nos por fim que talvez não houvesse nada mais característico em Benjamin do que cadernos onde colecionava citações (como ‘pérolas’ e ‘corais’ que a vida lançava-lhe em sua rede).
Estes cadernos, pois, possuíam capas pretas.
OS LIVROS PRETOS
Recentemente publicado no Brasil, A máquina de Joseph Walser (Cia. das Letras, 2010), do português Gonçalo M. Tavares foi o último de quatro romances da série O Reino a ser editado pela casa paulista. A quadrilogia – composta ainda pelos títulos Aprender a rezar na era da técnica (2008), Um homem: Klaus Klump (2007) e Jerusalém (2006) – recebeu sugestivamente, no país de seu autor, o nome “livros pretos”.
A referência às capas e contracapas completamente pretas e sem ilustrações (projeto da lisboeta Caminho), certamente não seria suficiente para ligá-las ao universo benjaminiano. Entretanto, a prolífica prosa de Tavares (desde que foi editado pela primeira vez, há dez anos, aos 30 de idade, o autor já jogou no mercado 24 livros) revela a atmosfera irrespirável do estado de exceção, um tema central para Walter Benjamin, aqui tratada como a legitimação política da “cobardia mútua”.
Tavares, cuja ficção levou José Saramago a declarar, certa vez, que gostaria de batê-lo de tão bem escrita (“Não tem o direito de escrever tão bem com apenas 35 anos”), lança-nos nas minuciosas maldades de um regime político para o qual o corpo e o conhecimento dele extraído desempenham papel central nos cálculos e estratégias do poder. Interessa-lhe a política que é biopolítica, e onde nenhuma outra figura é mais “democrática” do que o onipresente campo de concentração.
E, perceba, é exatamente por anteverem a maneira como o fascismo se articula na democracia (ou seja, como as instituições para solucionar problemas são também elaboradas para criar os problemas), que as narrativas da série O Reino tomam os dispositivos de esquadrinhamento e docilização do sujeito moderno enquanto protagonistas (o hospital – em Aprender a rezar na era técnica; o hospício - Em Jerusalém; a prisão – Em Um homem: Klaus Klump; a fábrica – em A máquina de Joseph Walser).
O sofrimento do “homem bom” Joseph Walser, um operário estranho e de poucas palavras, às voltas com uma mulher adúltera, com uma máquina implacável e uma coleção inútil (como há de ser) de peças de metal que encontrava pelo chão (sempre “menores que dez centímetros”), atravessa a mesma questão presente em um dos textos filosóficos e políticos mais importantes do século 20, o sibilino Sobre o conceito de história, escrito por Benjamin no ano de sua morte. Em tantas passagens místicas, vê-se com o olhar cristalino de um homem inadequado, pequeno qual um grão de trigo: “o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral”.
O italiano Girogio Agamben (Estado de exceção e profanações, Boitempo; O que é o contemporâneo e outros ensaios, Argos), o mais arguto comentador contemporâneo de Benjamin, definirá o referido estado de exceção, como a prática essencial dos Estados contemporâneos, entre os quais os chamados democráticos: uma guerra civil legal que permitiria a eliminação física “não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não mais integráveis ao sistema político”.
Em todos os quatro “livros pretos”, note, o tema da guerra (que vem destruir o estado de direito para restabelecê-lo de maneira igual a todos, mas sempre de forma mais violenta sobre os perdedores) é manifesto ou latente, como o cheiro de um cavalo morto em uma rua.
O leitor de Tavares deve possuir estômago ao ser conduzido por bairros onde “a maldade é uma categoria do raciocínio”, ou seja, onde a violência e o poder jurídico são consubstanciais. Impossível lê-lo sem sentir-se nauseado: seja em função de nosso pacto de covardia, apoiado sobre a vontade comum de “ter um senhor grande” porque “receber ordens grandes e fortes dá mais segurança do que receber ordens fracas”; seja pelo domínio absoluto exercido pelos incontáveis dispositivos da tecnoburocracia (um conjunto de práxis, de saberes, de medidas, de instituições cujo objetivo seria “gerir, governar, controlar e orientar” os gestos e os pensamentos dos homens), no último “livro preto”, sintetizados materialmente por uma máquina industrial.
Joseph Walser (ainda que Tavares afirme, com alguma ironia, tratar-se de mera coincidência de sobrenome), deseja à maneira de Robert Walser, ou de seu jovem personagem Jakob Von Gunten (trancafiado em outro dispositivo, a escola), do romance de mesmo nome (Relógio d’água), tornar-se um enigma para si próprio. Grotesco, ridículo às vezes, cultiva o desejo familiar aos eclipsados de ser “no futuro um zero à esquerda, um zero muito redondo encantador” e com isso reafirmar sua luta contra a submissão ao poder, contra a “vida nua”, contra o estado de direito (sagrado) onde tudo é necessário e quase nada é possível.
Encontrar a potência do não ser, retornemos às “medidas ínfimas” de Benjamin, trata-se de uma operação infantil: equivale a buscar a infância, ou seja, a “capacidade de jogar e de amar”, liberdade para “viver na intimidade de um ser estranho, não para fazê-lo conhecido, e sim para estar ao lado dele sem medo de ficar entre o dizível e o indizível”.
“Era o espaço infantil da casa”, afirmará o narrador de Tavares sobre o cômodo secreto onde Joseph Walser colecionava suas peças estranhas. No interior do mesmo quarto, sobre a mesa do personagem, “um caderno de capa preta, ao lado uma régua de cor cinzenta e brilhante”, também nos conduz de volta a Benjamin (ou seria Agamben?): as crianças sentem um prazer especial em se esconder e rejeitam personificar o impessoal. Fazem um certo uso das coisas “que nunca advém direito ou propriedade” (ação que não põe, executa ou transgride o direito): profanação.
Em meio à “vida nua” dos personagens de Tavares, também o desvanecer da Literatura: conhecer e escrever é parodiar a vida através do ridículo, do cômico e do grotesco, enquanto a única possibilidade de atingir o que interessa (o mistério!) é calar-se. Conclui Agamben: “É dessa palpitação infantil que provém tanto a volúpia com que [Robert] Walser garante as condições de sua ilegibilidade (os microgramas) como o desejo obstinado de Benjamin de não ser reconhecido”.
Paulo Carvalho é jornalista e mestre em comunicação social.