“Espírito é o que enfim resulta De corpo, alma, feitos: cantar”
– Caetano Veloso, Recanto escuro, 2011
“Ó mágicos do som, Contai a nossa história.”
– Agostinho Neto, Boogie-Woogie, 1948
“Um escritor desprovido de uma interpretação do
Brasil pessoal e original nunca chegou (nunca
chegará) a produzir uma grande obra literária.”
– Silviano Santiago, Mário, Oswald, Carlos, intérpretes do Brasil, 2005
A Tropicália foi ponto alto na história cultural do Brasil e produziu uma estética que marcou a música popular por décadas. Ela não foi a obra definitiva de seus artífices, mas um início estrondoso. Contribuiu para um debate mais amplo na sociedade brasileira dos anos 1960, e por muito tempo foi uma marca incontornável na cena musical brasileira.
No entanto, não é a mão morta do passado que assombra tudo o que vem depois, sussurrando “sou perfeito, completo, insuperável”. Foi produto da atenção dos tropicalistas às circunstâncias da criação artística no meio da música popular, e era legível como uma encenação de pensamentos e sentimentos que diziam respeito à situação do país, à experiência de uma geração e à tradição da canção popular. Hoje, é apreciada como uma espécie de teoria da cultura brasileira.
Caetano Veloso é o artista, entre os tropicalistas, que mais nos interessa aqui, porque combina produção artística e comentário sobre os sentidos mais amplos do que faz. Diz José Miguel Wisnik, seu amigo e colaborador bissexto, sobre seu procedimento de comentarista: “[...] o gesto nítido de Caetano sempre foi a recusa independente dos lugares-comuns dados como prontos, muitas vezes provocados por ele com prazer não disfarçado”. Em Verdade tropical, Caetano cita João Gilberto: “[...] disse que eu contribuía com ‘um acompanhamento em pensamento’ para a música brasileira, ou seja, para o que ele faz”. O livro, continua, “[...] é uma retomada da atividade propriamente crítico-teórica que iniciei concomitantemente à composição e à interpretação de canções”. Nas páginas finais, declarou o que entendemos valer para Recanto, composto por ele para Gal Costa, e lançado no final de 2011: “O que vale mesmo ressaltar é que o que me levou ao tropicalismo aqui me traz”. Recanto é enigmático na letra e mântrico no som; trata retrospectivamente dos anos 1960, mas também fala, de uma maneira obscura e profunda, de uma sensibilidade contemporânea.
No final de 2011, e em 2012, em que pese a insatisfação de setores conservadores e seus profetas, as notícias gerais eram de que o país estava bem, com estabilidade econômica, distribuição de renda, o surgimento de uma chamada nova classe média que tinha acesso maior a bens e serviços, controle das contas públicas, agenda positiva no tratamento da violência trazendo alívio especialmente para a população da cidade do Rio de Janeiro, com as perspectivas abertas pelas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), políticas públicas de renda mínima, de apoio à agricultura familiar, cotas raciais nos vestibulares, construção de moradia. Tais medidas pareciam ter deslanchado novas forças no país. Mas havia também motivos de mal-estar, como a política de promoção da indústria automobilística entupindo as cidades de carros, e as profundas discordâncias políticas entre o governo petista e sua base em torno da construção da hidrelétrica em Belo Monte. O mal-estar ainda era encoberto pelas taxas de aprovação do presidente Lula e certo ufanismo sobre o aumento de prosperidade. Um ano e meio depois do lançamento de Recanto, as manifestações contra o aumento de tarifas de ônibus expuseram uma insatisfação que logo foi capturada pela direita, resultando, ao longo do tempo, na instalação de um governo ilegítimo que, em nome de equilibrar as contas públicas, restringiu radicalmente os direitos da maioria da população à educação, à saúde e à previdência social, institucionalizados por décadas.
No momento do lançamento e dos primeiros shows de Recanto, tais acontecimentos eram insuspeitos. Mas não poucos apreciaram o disco, alguns até com alívio, em meio ao frenesi daqueles tempos, dominados pela Copa do Mundo e o ufanismo em torno de um Brasil que “deu certo”. Enfim aparecia uma crítica cultural que passava ao largo dos valores dominantes, mas não era saudosista ou reacionária, como tantas que se queixavam das novas políticas que popularizavam espaços antes exclusivos. Alívio, ainda, porque apresentava uma sensibilidade reconhecível e atual, mas difícil de articular. Os acontecimentos posteriores validaram a atmosfera sombria da obra, mas aqui não se trata de entender o disco como premonição dos tempos atuais, senão de tentar articular seus sentidos para além da fuga da positividade empostada daqueles tempos.
O impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016 e os fatos subsequentes foram logo comparados, por estudantes, setores da esquerda e simpatizantes, ao golpe civil-militar e à ditadura dos anos 1960, contexto histórico de Tropicália ou Panis et Circensis. Entretanto, o mesmo paralelo não pode ser feito entre os estilos dos dois discos. Recanto não trabalha com o jogo de estereótipos e alegorias, como Tropicália, e não entra no debate sobre o popular para apontar, indiretamente, um Outro que não é sujeito da razão instrumental dos bem-pensantes. Se os dispositivos estéticos de justaposição de gêneros e estilos musicais, pastiche e alegoria, não entram mais em jogo, quais são os novos dispositivos e o que apontam? Se Recanto pode ser entendido como a elaboração de uma reação ao Brasil contemporâneo por um artista que foi “trazido” ao presente pelas mesmas forças que o levaram à Tropicália, o que pode ser dito, mesmo assim, sobre continuidades entre a Tropicália e a obra contemporânea? Quais são os novos tropos e sons que captam o período e a conjuntura que ainda vivemos? Ficamos com eles, na busca de enxergar não somente a nova poética, mas como caminho para entender questões que não são apenas de estilo? Quais são os debates ou valores de referência em Recanto? Ignora por completo temas candentes dos anos 1960, como o subdesenvolvimento e a busca da mudança social radical, a influência estrangeira, a mercantilização e possível vulgarização da cultura, ou apresenta novas posições? O argumento a ser desenvolvido aqui é que o elogio ao corpo que canta condensa uma atitude diante da vida no início do século 21.
GAL E CAETANO
Concebido e com composições de Caetano Veloso, Recanto, nominalmente, é um disco de Gal, apesar de, em todos os materiais de divulgação e promoção, ser tratado como sendo dos dois. Coloca em cena os artistas e suas biografias: a relação de amizade e colaboração, conhecida do público, mas reapresentada a ele, faz parte da comunicação do sentido da obra. Recanto é o segundo álbum da dupla (seu título pode significar reiteração: re-canto). O primeiro, Domingo (1967), marcou a estreia de ambos no mercado fonográfico. No texto de capa desse primeiro disco, depois de elogiar a cantora, à época com 21 anos, por sua “capacidade de inovar, de violentar o gosto contemporâneo, lançando o samba para o futuro”, Caetano escreveu:
Todas as minhas músicas que aparecem aqui foram feitas junto dela e um pouco por ela também. Ouso considerá-la como parte integrante do meu processo de criação: este é um disco de “GAL interpretando Caetano” mesmo nas faixas em que ela canta músicas de outros autores ou quando sou eu mesmo quem canta as minhas. GAL cantando o que quer que ela goste, isso já é minha música, e quando eu canto ela está presente. O seu canto (como o de Gil ou o de Bethânia) tem sido sempre meu parceiro.
O disco, com o canto suave da jovem Gal, deixa clara a filiação comum à Bossa Nova de João Gilberto. Mas a intenção era ir além do que já fora feito. “A minha inspiração não quer mais viver apenas da nostalgia de tempos e lugares, ao contrário, quer incorporar essa saudade num projeto de futuro”. Às vésperas dos primeiros gestos tropicalistas, em Domingo Caetano declara sua relação complexa com a Bossa Nova: chega de saudade, mas não de modernidade.
No texto de capa de Recanto, também assinado por Caetano, ele relembra seu encontro com Gal Costa em Salvador e as canções que compôs para ela. Sobre o projeto de Recanto, diz:
Compus pensando na voz dela e em programações eletrônicas. Tem até faixa 100% acústica neste disco, mas os sons eletrônicos predominam. Senti necessidade de dizer justo essas coisas através dela. Vi que ela e eu podíamos fazer soar um objeto não identificado que tivesse a ver com tudo o que essencialmente somos. Por mim, este disco é dedicado a Maria Bethânia e Gilberto Gil, por razões que deveriam ser óbvias.
Nos dois casos, os nomes de Maria Bethânia e Gilberto Gil vêm junto, mas na obra colaborativa de 2011, como na de 1967 (e em muitas outras ocasiões), é Gal a parceira escolhida por Caetano. Quando a parceria se repete em Recanto, 44 anos mais tarde, Caetano quer “[…] fazer soar um objeto não identificado que tivesse a ver com tudo o que essencialmente somos”. Na letra da canção Não identificado, o objeto é a paixão do sujeito, que “há de brilhar na noite/No céu de uma cidade do interior”. Segundo Lorraine Leu, a letra dessa canção ensina “como fazer uma canção de amor”. Em Recanto, o objeto não identificado não se restringe à paixão, ele é da ordem do ser, ou, como na canção Língua, do ser e do estar, da existência e da postura.
Recanto foi concebido para ter um som predominante de “programações eletrônicas”. É um disco feito em estúdio por Gal, Caetano, Moreno Veloso e Kassin. Caetano fez, com seus parceiros, várias experiências com música experimental; desde Acrilírico, do mesmo álbum branco que Não identificado, e Araçá Azul (1973), outras faixas e discos tiveram essa marca, a exemplo de Rap popconcreto, em Tropicália 2 (1993), e os três discos mais recentes: Cê (2006), Zii Zie (2009) e Abraçaço (2012). Não identificado é a primeira faixa do primeiro álbum solo de Gal Costa, gravado em 1968 e lançado em 1969. O arranjo parece a trilha sonora de um curtíssima metragem. Antes sequer da entrada da voz, ouve-se um som de batidas em gongo e outros objetos metálicos, com reverb. O som aparece e reaparece, simulando um OVNI aterrissando. Isso é seguido de uma introdução de uma banda de iê-iê-iê, com destaque para o órgão, em um timbre de tuba muito agudo e, em uma terceira parte desses primeiros 30 segundos, uma terceta de cordas que antecipa a melodia cantada em seguida.
Essas cordas, caricaturalmente românticas, alternam com a banda o acompanhamento da voz, em ritmo de baile de interior, interrompidas brevemente pelo som distorcido da vibração metálica, no fundo das palavras “disco voador” na primeira vez que aparecem. No final da canção, quando a voz cessa, o objeto não identificado decola novamente com o gongo e uma voz dizendo “ah” distorcidos por mais 15 segundos. No segundo disco solo, Gal (1969), a cantora potencializou a psicodelia no design gráfico e no som, jogou com a estridência e a guitarra elétrica. Gal continuou por esse caminho em Legal (1970), Fatal (1971), Índia (1973) e Cantar (1974).
Recanto atualiza esse som eletrônico depois de décadas. Em vez da psicodelia, na maior parte das faixas a voz de Gal é acompanhada por uma multiplicidade de sons complexos: uma batida forte e grave que faz o corpo vibrar, mas que tem “ruído”, rápidos trechos melódicos com som de violoncelo, violão ou piano, e sons percussivos irregulares e mais agudos. Em paralelo, há acordes, geralmente produzidos eletronicamente, com poucas séries que ensaiam uma melodia. Entre esses elementos – a percussão e os acordes que não parecem se entrosar –, abre-se o caminho para a voz: escutamos três categorias de som que se separam e também convergem, em que a voz, quando presente, conduz a audição e, pela letra, define o que estamos ouvindo. Essa sonoridade extrapola o melódico e surpreende em sua materialidade, causando desconforto e dificultando sua interpretação ou redução a um sentido. Isso contribui para uma recepção em que a simpatia pelos artistas, compositor e cantora, é deslocada, colocada em suspenso. Eles parecem estar sozinhos, ouvindo um ao outro e interagindo, mais do que atentos ao público.
No disco Domingo (Veloso e Costa, 1967), a primeira colaboração dos dois, Gal canta com espontaneidade e leveza; parece estar apenas soltando o ar, sussurrando ou embalando uma criança. Em Nenhuma dor, composição de Caetano e Torquato Neto, combina-se a condescendência com a paixão:
Minha namorada, muito amada
Não entende quase nada [...]
É preciso, ó doce namorada
Seguirmos firmes na estrada
Que leva a nenhuma dor.
Se em Domingo a canção brota como se fosse tão natural quanto respirar, em Recanto o fôlego é mais curto, as frases tendem a não se prolongarem nas finalizações. A voz é calma e a cantora canta baixo o reverso de Nenhuma dor, Tudo dói. No disco em que Gal atualiza seu psicodelismo, traz de volta, também, um estilo mais claramente joãogilbertiano.
A amizade entre os dois, Gal e Caetano, estabelecida inicialmente em torno da admiração comum por João Gilberto, constitui o nexo de relações que gerou Recanto, mas o desencaixe também dá o tom. A escolha da canção que abriu o show que circulou pelo país, sob a direção de Caetano, Da maior importância (1975), também o indica. Disse Caetano sobre ela: “Não apenas fiz para a Gal gravar, mas também conto um pouco uma cena entre nós na praia”. A letra fala de um quase encontro amoroso, de como os dois “se estranharam”.
É tão difícil, tão simples
Difícil, tão fácil
De repente ser uma coisa tão grande
Da maior importância
Deve haver uma transa qualquer
Pra você e pra mim
Entre nós
Desfazer o nó desse tesão tem uma dimensão cósmica, e a “transa qualquer” pode ter um efeito borboleta, que faz tempestade do outro lado do planeta:
E assim como existe disco voador
E o escuro do futuro
Pode haver o que está dependendo
De um pequeno momento puro de amor
Embora a história não termine com esse momento de especulação sobre o futuro, mas repita “Você/Não teve pique/E agora/Não sou eu quem vai/Lhe dizer que fique”, o tom é de possibilidade. Tensionado entre a falta de pique de um lado, e a falta de vontade de correr atrás, de outro, a relação continua existindo. Recanto faz a imaginação do público transitar entre obra e pessoas, harmonia e ruído, mantendo-o em tensão produtiva, atento à possibilidade de as coisas fazerem sentido na contramão das condições dadas e da história contada. Pautado por essas tensões geradas pelo desencaixe, pela sonoridade que amalgama tradição e ruptura e pelo tom sombrio de avaliação da própria experiência, que veremos adiante, Recanto é um disco que abre espaço para a possibilidade de se continuar crendo, se não, de ter fé.