Nicanor capajan17 ilustra2 KarinaFreitas

 

 

“O afã de desarticular o enorme”.

É nisso que se radicaria – segundo Hugo Montes Brunet em Nicanor Parra y la poesia del cotidiano – a antipoesia de Nicanor Parra. É nisso que se radica. Enormemente.

Também na busca por ser de todo corriqueiro, comunar, desfazer-se na multidão. Não para redimi-la, não para condoer-se em voz alta.

(Com que finalidade, então?)

Não para altear-se na multidão. Não para altear-se em seu centro. Não para castigar a multidão com programas, com diretrizes.

(Isso bem pode conduzir a parte alguma, diria Parra).

A relação da antipoesia com a comunidade dos homens. Documentação. Mas sem ambição de imparcialidade. Testemunho irônico, sutil, emitido de dentro dessa comunidade, não à parte, não por sobre. Há maneiras de enunciar que se colocam à parte, colocam-se por cima. O eu da antipoesia – o eu antilírico – pretende opor-se à excepcionalidade do ser que enuncia. O privilégio da palavra exemplarmente desperdiçado.

Não lamentar a comunidade dos homens é já dar-lhe de novo os recursos que lhe são próprios, lembrá-la de seu arsenal. Não lamentar a comunidade dos homens – embora nunca tenham faltado motivos para lamentá-la – é já refixar no mundo seu poderio ambivalente, sua potencialidade também para o mal, para a amoralidade, para a confusão, para a inação.

Não condescender. Sobretudo isso. Parra recorre regularmente à frase feita, à modulação rueira, às maneiras de uma certa realidade urbana situada e temporal, mas não se trata de condescender ao leitor. Em Parra, não parece haver altura de onde descer. Trata-se antes de escrever poesia a partir de lugar inteiramente diverso – na praça, com os da praça, de dentro de um conjunto humano difícil, heterogêneo, irredutível a seus termos constitutivos.

(Hugo Montes Brunet diz ainda, ao analisar certo poema de Parra, que na “mera soma” de indivíduos esboçados pelo texto manifesta-se “um mesmo fenômeno de incomunicabilidade” sugerido e reforçado pela ausência de pontuação, pelo caráter objetivo e eminentemente dizível das orações, etc.).

Anti, anti, anti. Prefixo de oposição de origem grega. Morfema que coloca à coisa o contrário da coisa.

Mas sabemos o que é poesia?

Anti, anti. Ant. Subtraída uma vogal, temos formiga em inglês. Dotadas de imensa capacidade organizacional. Dotadas de imenso potencial sabotador.

(Bem pode conduzir a parte alguma).

“Fato é que um mesmo impulso vital, vigoroso, impelia-nos para a frente. Impelia-nos para a dissolução, a destruição de todas as formas de arte, para a rebelião pela rebelião, para a negação anárquica de todos os valores... uma bolha de sabão que se autodestrói, um furioso anti, anti, anti, aliado a um igualmente apaixonado para, para, para!”. Hans Richter, Dadá: arte e antiarte.

Haverá homens comuns? Quando foi a última vez que troquei palavra com um homem comum? Será Parra um homem comum? Mesmo depois de tanto prêmio, tanto galardão, mesmo depois de mais de uma centena de anos? Poemas y antipoemas veio a público em 1954. Parra tinha então 40 anos. Os critérios para o comum, temos a impressão de que já não são os mesmos. Que é o enorme que devemos desarticular agora?

Pergunto-me se isto será possível. Tornar-se comunitário opondo-se à comunidade, democratizar-se por oposição.

Que era um homem comum em Zurique, nos idos de 1916? O que era um homem comum em Santiago do Chile, no ano de 1954? O que é um brasileiro médio navegando o pântano de 2017?

O que é um brasileiro médio?

Poderíamos, talvez, classificá-lo segundo graus de vulnerabilidade. O brasileiro médio seria, a bem da verdade, espectro bastante vasto. Tanto mais médio quanto mais ameaçado por uma súbita desregulagem da máquina pública.

O que é a máquina pública?

Lembro-me, então, que Parra foi professor durante período considerável de sua vida; para cúmulo, um homem de ciências exatas. Em seu célebre Autorretrato, constante de Poemas y antipoemas, Parra parece dirigir-se aos meninos do liceu sob sua tutela, reconhecendo junto a eles o lastimável de sua própria figura, de seu próprio “destino”. Ouça-se esta voz: exausta, seca até mesmo nas exclamações, rala de “500 horas” semanais, esta masmorra comum onde mestre e pupilos se entediam mortalmente, porque é assim que as coisas são, porque foi assim que se ordenou o caos primordial.

Coisa que nos une a todos – penso – é esta tendência incontida, “natural”, ao protagonismo. Essas coisas já acabaram, por certo. Mas não conhecemos o nosso lugar. Pensamo-nos centrais a alguma coisa. É difícil figurar-se em ponto diverso da paisagem. É difícil estar em relação com a paisagem sem o pressuposto do jugo.

É preciso muito equilíbrio para estar a um só tempo à margem e em meio aos homens.

Essa dificuldade vai bem figurada no antipoema.

Richter relaciona o anti dadaísta à “decomposição do burguês”, à decomposição colocada pelo burguês. Dadá declara-se antípoda da infernal falta de imaginação do industrial, do burocrata.

E, no entanto, somos todos burgueses.

E, no entanto, somos todos anti.

Num dos artefatos de Parra vê-se uma passeata; sobre ela, um cartaz que diz: La izquierda y la derecha unidas jamás serán vencidas.

Numa praça, a angústia de querer-se comunar se torna muito presente, muito forte. Queremos ser conduto para tudo. Queremos ficar ao pé do que é dito nas praças. O que cai pelas praças. Queremos recolher. Costurar uma epopeia.

(Em texto jornalístico de 1967, o crítico Federico Schopf afirma ser a antipoesia um “acordo inédito entre letra e mundo”).

As praças ao entardecer estão tomadas por entusiastas do cooper. E são um mundo. Não é um mundo criado por nós. Ordenou-se, apenas. Um mundo de entusiastas do cooper. Pessoas que, não se sabe por que milagre, retêm ainda alguma energia após o expediente.

Pessoas se exercitam ao ar livre. Parecem inofensivas. Convém desconfiar.

 

*

Considerações finais. É como poeta que me solicitam, logo, é como homem na praça que devo falar. Nem feliz, nem infeliz, a praça ordenou-se assim. Formulou-se assim. Compete reportar. O que se ouve? Em torno de barracas, quiosques, bancas e chafarizes, nas filas das piscinas públicas, nas pequenas coagulações de gente à volta dos violinistas de rua. Volta-se a falar de Parra, de Joan Brossa, de Brecht, de Carver, de Drummond, Murilo Mendes etc. Volta-se a falar de poetas cristalinos, de um dizer cristalino, atento, severo, todo ternura contida e ira insoluta. É um desejo. De leitores, de poetas.

Por mim, tenho enorme dificuldade em ser claro. Tenho, contudo, tentado. O problema – a necessidade de uma nova clareza, tão direta e impactante quanto a da antipoesia parriana –, isso, sim, já se tornou bem claro. No entanto, nada mais difícil e até mesmo arriscado que uma poesia que de fato diz. Então, como ficaríamos de mundo? Mas é esse o calafrio que antecede todo e qualquer apocalipse, nada mais. O apocalipse de uma poesia sem mistificações, ou melhor, de uma poesia contendo apenas as mistificações necessárias. Uma prática de arte que tenha presente a nada louvável necessidade de alguma mistificação; enunciadores que se reconheçam dentro de um labirinto de espelhos, exaustos demais para achar a imagem particularmente bela ou evocativa.

Testemunho sem ingenuidade. Vozes aborrecidas, contraditórias, irônicas. Gente que anda pelo mundo sem filiações redentoras. “Não, não será nesta vida”, diriam, o pensamento fixo em distrações como pão, teto, emprego, matrimônio.

*

 

À maneira de um Nicanor

Resta ainda qualquer coisa por falar
ao fim dos falanstérios

Estações termais
as carcaças
dos cassinos e também
de nossos amores

Sobram acordes
que os canários de Adorno diriam
no corrente já
não podem significar senão
vaga decadência
(tibieza de cromos, cartões de visita)

Ah, sim, resta ainda qualquer coisa
por falar das estruturas
de fascinação

Da piscosa noite em que velamos
a palavra florilégio

Morbos persistentes
Estes elepês de música orquestral
Que atulham
Os fundos das casas de discos
Abismo de rosas
Música para seu Devaneio

Entram em greve
Numes e vates
Vamos

Às ruas manifestar apoio
Manifestar as ruas
A tutelagem das ruas
Não aprendemos nada

Vogais e consoantes
conluiam-se ainda para dizer
e dizem são longas
as noites as pessoas
estão sós