O corpo impossível, livro lançado em 2002, investiga o imaginário do corpo dilacerado, imagem subversiva e fragmentada que confronta o antropomorfismo. O livro foi recentemente republicado pela Iluminuras.
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O dedão do pé, diz Bataille num texto de 1929, é “a parte mais humana do corpo do homem”. Ao contrário dos animais arborícolas, a espécie humana não depende dele para sua locomoção, o que determina “a diferença desse órgão com o elemento correspondente no macaco antropoide (chimpanzé, gorila, orangotango ou gibão)”. O homem move-se no solo sem precisar agarrar-se a eventuais galhos, prescindindo do dedão do pé em seus deslocamentos: por tal razão, a função primordial do pé humano consiste em “proporcionar uma base firme para essa postura ereta da qual o homem tanto se orgulha”.
O artigo Le gros orteil (O dedão do pé), publicado na Documents, propõe de imediato uma polarização entre os elementos altos e baixos que compõem a figura humana, fazendo contrastar as partes mais elevadas do corpo com a platitude dos pés. A primeira dessas oposições concentra-se nos distintos significados simbólicos atribuídos aos membros superiores e inferiores: os dedos das mãos, lembra Bataille, significam os atos hábeis e os caracteres firmes, enquanto os dedos dos pés são normalmente caracterizados pela estupidez e baixa idiotia.
Essa distinção inicial remete a uma tópica antiga, desenvolvida por vários filósofos. Aristóteles, por exemplo, afirma que a mão possibilitou ao homem tornar-se senhor da natureza, pois “foi à criatura capaz de adquirir o maior número de técnicas que a natureza dotou do utensílio efetivamente mais útil, a mão”. Seu tratado sobre a geração dos animais descreve minuciosamente esse órgão para demonstrar como ele se distingue da pata dos mamíferos: nos macacos, os dedos e as unhas têm aspecto mais bestial porque eles servem-se de seus membros inferiores da mesma forma como dos superiores. Assim, a mão dos símios “não existe em estado puro”, pois, sendo “da natureza do homem manter-se ereto”, a verdadeira função do órgão não consiste em suportar o peso do corpo mas, sim, em agarrar e segurar.
Partindo dessa hipótese que propõe a mão humana como modelo perfeito e medida universal, Aristóteles justifica a sua anatomia, observando que “as articulações do braço dobram-se em sentido inverso ao das patas anteriores dos quadrúpedes, permitindo que a mão esteja e se mantenha à disposição da inteligência humana”. De tal elevação, resulta a supremacia do homem no universo: a natureza, que nada empreende em vão, dotou a mão de uma estrutura funcional cujas “particularidades preciosas e inimitáveis conferem ao ser humano uma superioridade sobre os outros seres vivos”.
O tema é exaustivamente revisitado no século XIX, quando os teóricos do evolucionismo retomam teses naturalistas dos filósofos setecentistas, buscando estabelecer os itinerários da formação da espécie humana. As obras de Lamarck, Darwin e Haeckel dedicam particular atenção às transformações orgânicas que se operaram na escala evolutiva e permitiram ao homem libertar a mão de sua função locomotriz. Em que pesem certas diferenças conceituais entre esses autores, no limite todos propõem que tal processo só se tornou realmente possível quando o ser humano assumiu em definitivo a postura ereta: assim, a conquista da verticalidade estaria na origem da primeira forma humana, ou seja, da mão.(...)
Na contramão dos evolucionistas, o autor de Le gros orteil toma o macaco como modelo ao definir o ser humano através de seus órgãos mais atrofiados, ou seja, enfatizando as capacidades que ele teria perdido no decorrer do processo civilizatório: a parte mais humana do corpo do homem é precisamente aquela na qual se tornaram evidentes as marcas dessa perda. Esboça-se aí uma visão negativa do homem, que vem denunciar o vão orgulho de sua elevação, seja no topo da escala orgânica suposta pela genealogia evolucionista, seja na ontológica estatura superior que os filósofos antigos lhe atribuíram.
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Essa troca de sinais parece orientar também a reflexão de alguns autores surrealistas sobre o tema: se Breton e seus amigos não chegam a propor uma tal antinomia, diversos textos seus deixam clara uma recusa às mãos, especialmente quando associadas à edificação do mundo burguês. Vale lembrar a conhecida frase de Rimbaud que os signatários do movimento tanto gostavam de citar: “Tenho horror a todos os ofícios. Patrão e operários, todos grosseiros, ignóbeis. A mão na caneta vale o mesmo que a mão no arado. – Que século de mãos! – Eu jamais terei minha mão”.
Semelhante recusa encontra-se num poema de Desnos, que denuncia a sujeição das mãos às atividades mais produtivas da sociedade burguesa: “Existem mãos terríveis / Mãos manchadas de tinta do estudante triste / Mão vermelha sobre a parede da câmara do crime / ... / Mãos abertas / Mãos fechadas / Mãos abjetas que seguram uma caneta / Ó minha mão você também / Minha mão com suas linhas misteriosas / Por quê? Antes as algemas”. Haveria, portanto, um mistério das mãos que a vida civilizada – das escolas, dos escritórios ou das câmaras de tortura – tentaria apagar a todo custo, adequando o corpo às exigências da produtividade. (...) Daí Breton aludir ainda à “bela mão que se abandona a curiosos delitos”; daí também Buñuel propor, em L’âge d’or, a imagem da mão que oscila nervosamente apoiando-se sobre um dedo que desaparece num buraco, num movimento perturbador ao extremo, cuja expressão é particularmente onanista.
Uma tal erotização das mãos tende a aproximá-las dos pés, na medida em que rebaixa seus significados mais elevados. Nesse sentido – mas apenas nele – seria possível dizer das mãos o mesmo que Bataille afirma sobre os pés: “o pavor secreto que o pé causa ao homem” está profundamente associado às inquietações sexuais: em várias culturas ele é considerado um órgão imoral, tornando-se objeto de fortes tabus. Assim também, as inúmeras práticas rituais que submetem os pés humanos a suplícios e deformações resultariam dessa aversão. O artigo Le gros orteil fornece diversos exemplos, que vão desde os arcaicos costumes chineses de atrofiar os pés das mulheres até o hábito moderno de usar saltos altos, todos com o objetivo último de tentar dissimular ao máximo a “baixeza” do órgão.
Se isso acontece, continua Bataille, é porque o homem, deixando de ser um arborícola como os macacos, “tornou-se ele mesmo uma árvore, quer dizer, levanta-se no ar reto como uma árvore”. Por isso, ele tende a afastar-se o mais que pode da lama terrestre e, ao “elevar-se em direção ao céu e às coisas do céu, ele olha para seu pé na lama como se fosse um escarro”. Essa busca de verticalidade estaria, segundo o autor, na origem das imagens idealizadas do ser humano, sempre privilegiando a cabeça em detrimento dos órgãos mais baixos: “os calos dos pés diferem das dores de cabeça e das dores de dentes pela baixeza, e se são dignos de riso isso se deve a uma ignomínia, explicável pela lama onde repousam os pés”.
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Bataille retoma, em Le gros orteil, algumas concepções fundamentais de seu pensamento que já haviam sido anunciadas em textos anteriores. Em L’oeil pineal, escrito alguns anos antes, ele propõe que a vida terrestre se organiza basicamente em dois eixos: o horizontal, que orienta a posição da maior parte dos animais, e o vertical, sob o qual se sustentam quase todos os vegetais. Somente o homem teria conseguido escapar de forma definitiva a essa regra; mas “foi ao preço de um esforço doloroso e ignóbil expresso no rosto dos grandes símios, que o ser humano pôde livrar-se da tranquila horizontalidade animal, conseguindo apropriar-se da postura ereta dos vegetais e se deixando polarizar, em certo sentido, pelo céu”.
O homo erectus traduz, dessa forma, a imagem ideal do ser humano, que se desenvolve “no sentido de uma regularidade cada vez mais nobre ou mais correta: por isso, a retidão automática de um militar fardado, em posição de sentido, emerge sobre a confusão imensa do mundo animal e se propõe ao universo da astronomia como o seu termo”. Contudo, essa verdade militar e matemática é desmentida pelas partes baixas do corpo, que se apresentam como “sua compensação inevitável, ameaçando o esplendor humano com uma forma penosamente imperativa”. Ainda que se evoque toda a grandeza da história humana, conclui o autor, nada pode apagar a evidência de que “o mais nobre dos animais tem calos nos pés, ou seja, que ele tem pés e que esses pés vivem, independentemente dele, uma vida ignóbil”.
O tema havia sido desenvolvido também em Le langage des fleurs, publicado na Documents alguns meses antes de Le gros orteil, em que Bataille propõe a mesma distinção. Se as plantas, a exemplo dos seres humanos, crescem no eixo vertical, elas contêm igualmente a contrapartida perfeita de sua imagem idealizada; esta seria dada pela “visão fantástica e impossível das raízes que fervilham sob a superfície do solo, repugnantes e nuas como vermes”. As raízes testemunham que “nem tudo é uniformemente correto na impecável postura ereta dos vegetais”: enquanto os caules “se elevam nobremente, elas revolvem-se ignóbeis e pegajosas no interior do solo, tão ávidas de podridão quanto as folhas de luz”.
Monstruosidades semelhantes seriam perceptíveis em outros órgãos da planta, ocultos pela idealização das flores. Bataille lembra que, ao se arrancarem as pétalas da corola, nada mais sobra que um tufo com aspecto sórdido; ou que “depois de um curto tempo de esplendor, a maravilhosa corola apodrece impudicamente ao sol, transformando-se numa gritante ignomínia para a planta”; ou ainda que “as flores murcham como lambisgoias velhas e excessivamente pintadas, e morrem de forma ridícula nos caules que pareciam elevá-las às nuvens”. Num argumento vertiginoso, que se constrói contra a “decisiva harmonia da natureza vegetal”, o autor termina por concluir que a flor – signo do amor e da beleza – “tem o odor da morte”.
Essa aproximação entre a flor e a morte só se torna efetivamente significativa diante de um processo de decomposição que parte dos aspectos mais visíveis da planta – tão ostensivos quanto o rosto vulgar de uma mulher “excessivamente pintada” – para chegar aos órgãos menos evidentes. No ponto terminal desse processo, assiste-se à decapitação da flor, proposta numa imagem perturbadora que anuncia a figura do acéfalo.
Está claro que a relação entre a flor e as raízes é um desdobramento da polaridade entre o alto e o baixo que, no corpo humano, têm seus correspondentes na cabeça e nos pés. As palavras de Bataille são categóricas: “a divisão do universo em inferno subterrâneo e em céu perfeitamente puro é uma concepção indelével, já que a lama e as trevas são os princípios do mal, assim como a luz e o espaço celeste são os princípios do bem: com os pés no barro e a cabeça mais próxima da luz, os homens imaginam obstinadamente um fluxo que os elevaria para sempre a um espaço puro”. Contudo, sublinha o autor, “a vida humana comporta na realidade a raiva de ver que se trata de um movimento de vaivém do abjeto ao ideal e do ideal ao abjeto, fazendo incidir essa raiva num órgão tão baixo como o pé”.