Neste quarta-feira (26), quando deve ser votada a maior reforma trabalhista deste a instauração da Consolidação das Leis do Trabalho, em 1943. Por isso, disponibilizamos um trecho do livro Cooperativismo de plataforma, de Trebor Scholz, lançado recentemente pela editora Elefante. A obra fala de importantes questões do ubercapitalismo ou economia compartilhada - um sistema no qual as pessoas abrem mão das relações tradicionais de trabalho sob a ideia de que serão mais livres e tomarão as próprias decisões se viverem como freelancers ou usar o próprio carro no fim de semana para garantir uma renda extra. Tudo potencializado pela velocidade da internet e ao alcance de toques em gadgets, especialmente o celular. Isso se repete em todo o mundo, com intensidades diferentes.
Em contraposição à economia compartilhada, Scholz propõe o estabelecimento de plataformas de cooperativismo, de propriedade coletiva e possuída pelas pessoas que geram a maioria dos valores nessas plataformas. É um esforço para ofertar soluções para a precarização do trabalho e a falta de mecanismos mínimos de segurança social geradas pelo ubercapitalismo
No trecho abaixo, que abre a obra, vê-se um panorama do autor sobre os problemas do trabalho na atualidade. A tradução da obra é de Rafael Zanatta.
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Entre todos os problemas do trabalho no século XXI – o inchaço do setor de serviços mal remunerados, a desigualdade econômica, o desmanche dos direitos trabalhistas –, o maior deles é que há tão poucas alternativas realistas. O que falta no debate sobre o futuro do trabalho é uma abordagem que ofereça às pessoas algo que elas possam abraçar de corpo e alma. É sobre isso que este estudo trata [nota 1] [nota 2].
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As consequências da economia do compartilhamento – a assim chamada “economia dos bicos”, “economia em pares ou “economia do compartilhamento”. Tomou um tempo para reconhecer que a economia do compartilhamento era na verdade uma economia de serviços sob demanda que foi iniciada para monetizar serviços que antes eram privados. É verdade que existem oportunidades inegáveis para estudantes, trabalhadorxs escolarizadxs em busca de emprego e todas as pessoas que possuem um segundo lar. Agora, é mais fácil para quem estuda em uma universidade “descolar um bico” instalando móveis ou renovando a casa de alguém. Consumidorxs, acostumadxs com uma profunda apreciação por preços baixos e uma conveniência estilo Uber acima de tudo, dão boas-vindas a essas estrelas ascendentes. Mas deveríamos compreender a economia do compartilhamento como uma estrada que sinaliza um futuro do trabalho melhor e mais flexível? O que essa economia realmente nos trouxe?
Bem-vindx às “vilas de Potemkin” [nota 3] da “economia do compartilhamento”, onde você finalmente pode vender as frutas das árvores de seu jardim para sua vizinhança, compartilhar uma corrida de carro, alugar uma casa na árvore na Floresta Vermelha, ou visitar o “KinkBnb”. Sua conveniência amigável é, para muitxs que trabalham, uma armadilha precária de salários baixos. Mas você, por outro lado, pode ouvir sua própria lista de músicas da Spotify em um carro da Uber. Você nunca mais sofrerá com aquilo que o economista George Akerlof chamou de “mercado de limões” [nota 4]; essas novas plataformas estão introduzindo novos freios e contrapesos. Você é promovidx a um cargo de gerência intermediária, capaz de demitir quem dirige para você. As empresas conseguiram até mesmo encontrar uma forma de sugar o valor financeiro de suas interações com objetos cotidianos, recrutando-os como informantes para o capitalismo de vigilância.
As empresas de trabalho “descoladas”, como Handy, Post-mates e Uber, celebram seus momentos Andy Warhol, seus 15 bilhões de dólares de fama. Elas revelam isso no fato de que lançaram suas plataformas monopolistas na ausência de uma infraestrutura própria. Assim como aol e at&t não construíram a Internet, e Mitt Romney não construiu seu negócio por si mesmo [nota 5], as empresas na “economia sob demanda” também não construíram seus impérios. Elas estão operando o seu carro, seu apartamento, suas emoções e, mais importante, seu tempo. Elas são empresas de logística que demandam que x participante pague a quem intermedia. Nós somos transformadxs em bens; essa é a financeirização da vida comum versão 3.0.
No ensaio “What’s Yours is Mine” (“O que é seu é meu”), o pesquisador canadense Tom Slee resume a questão:
Muitas pessoas bem-intencionadas sofrem de uma fé equivocada nas habilidades intrínsecas da Internet de promover comunidades igualitárias e confiança e, assim, inadvertidamente ajudaram e incitaram essa acumulação de fortuna privada e a construção de novas formas exploradoras de emprego. [nota 6]
Na conferência Cooperativismo de Plataforma, John Duda, da organização Democracy Collaborative, afirmou que:
A propriedade das instituições de que dependemos para viver, comer e trabalhar está progressivamente concentrada. Sem democratizar nossa economia não teremos a sociedade que queremos ter, não seremos uma democracia. A Internet certamente não está ajudando. Ela é impulsionada por pensamento de curto prazo, lucros corporativos; ela é direcionada pela indústria de capital de risco e está contribuindo para a concentração de riqueza em poucas mãos. Ao passo que a economia digital se torna galopante, morar se torna totalmente inacessível. Precisamos reverter essa tendência. [nota 7]
Trabalhos que não podem ser terceirizados para fora do país – como xs passeadorxs de cães e xs faxineirxs – estão se tornando subsumidos naquilo que Sascha Lobo e Martin Kenney chamam de “capitalismo de plataforma” [nota 8]. A geração do baby boom está perdendo setores da economia – como transporte, alimentação e vários outros setores – para a geração do milênio, que ferozmente se apressa para controlar a demanda, a oferta e o lucro ao adicionar uma espessa “crosta de gelo de negócios” nas interações baseadas em aplicativos. Esta geração está estendendo os mercados livres desregulados a áreas previamente privadas de nossas vidas.
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A “economia do compartilhamento” é retratada como um prenúncio para a sociedade pós-trabalho – o caminho para o capitalismo ecologicamente sustentável onde o Google vencerá a própria morte e você não precisa se preocupar com nada. Com o slogan “O que é meu é seu”, o cavalo de Troia da economia do compartilhamento nos traz formas jurássicas de trabalho enquanto desencadeia uma máquina antissindical colossal, passando por cima de trabalhadorxs mais velhxs, especialmente. O autor alemão Byung-Chul Han emoldura o momento atual como a Sociedade da Fadiga [nota 9]. Estamos vivendo, escreve ele, em uma sociedade orientada à realização, supostamente livre, determinada pelo chamado do “sim, nós podemos”. Inicialmente, isso cria um sentimento de liberdade, mas logo é acompanhado pela ansiedade, autoexploração e depressão.
Mais importante, não podemos ter essa discussão sem antes reconhecer que a “economia do compartilhamento” não é uma coisa embalada a vácuo e isolada no “ciberespaço”, mas é somente outro reflexo do capitalismo e do atlas massivo de práticas de trabalho digital. Consequentemente, não podemos ter uma conversa sobre plataformas de trabalho sem antes reconhecer que elas dependem de vidas humanas exploradas em toda sua cadeia de fornecimento global, começando com o hardware sem o qual toda essa economia “sem peso” iria afundar até o fundo do oceano.
Todos os amados dispositivos da Apple não podem ser considerados sem antes nos lembrarmos das condições de trabalho no que Andrew Ross chamou de “moinhos de suicídio da Foxconn” em Shenzhen, na China. Ou considerem-se os raros minerais da terra na República Democrática do Congo; é essencial seguir a cadeia de fornecimento que facilita todos esses estilos de vida aparentemente limpos e glamorosos da vida digital.
Há uma massa de corpos sem um nome, escondida por trás da tela, exposta a vigilância no ambiente de trabalho, espoliação da multidão, roubo de salários e softwares proprietários. Como alertado pelo ativista do software livre Micky Metts: “Ao construir plataformas, você não pode construir liberdade com base na escravidão de outrem”. [nota 10]
Ao enfrentarem uma crítica política da economia sob demanda, certxs acadêmicxs argumentam que, bem, os terríveis resultados do capitalismo desregulado são bem compreendidos, que essa lenga-lenga não precisa ser afirmada mais uma vez. Mas, talvez, como McKenzie Wark afirmou: “Isso não é capitalismo, isso é algo pior”. Ele sugeriu que “o modo de produção no qual parece que estamos entrando não é o capitalismo como classicamente descrito” [nota 11].
Isso não é uma mera continuação do capitalismo pré-digital como conhecemos, existem descontinuidades notáveis – novas formas de exploração e concentração da riqueza que me levaram a cunhar o termo “espoliação da multidão”. A espoliação da multidão é uma nova forma de exploração, executada por quatro ou cinco estrelas, que se apoia em uma massa global de milhões de trabalhadorxs em tempo real.
A situação atual precisa ser discutida na esteira de formas intensificadas de exploração online e outras economias mais antigas de trabalho invisível e sub-remunerado – pense na campanha “Wages for Housework” (salários para o trabalho doméstico) de Silva Federici, Selma James e Mariarosa Dalla Costa, e, nos anos 1980, na teórica cultural Donna Haraway discutindo as formas como as tecnologias de comunicação emergentes permitiriam que o “trabalho em casa” se disseminasse por toda a sociedade.
NOTAS
As notas abaixo foram extraídas do livro, exceto quando sinalizada outra autoria.
[nota 1] - Nota da revisão do livro: decidiu-se evitar o masculino genérico para alcançar uma inclusão linguística maior de outras identidades de gênero. A substituição do determinante pelo “x” não apenas engloba a forma feminina, mas ao mesmo tempo questiona a binariedade na determinação de gênero e abre espaço para outras identidades possíveis. Não se quer sugerir nenhuma solução padronizada ou definitiva mas que sim, antes de tudo, que o uso do “x” possa provocar reflexão.
[nota 2] - Nota do Suplemento Pernambuco: após traçar sua visão dos problemas do trabalho, o autor passa a propor o cooperativismo de plataforma como forma de solucionar os problemas da economia compartilhada. A definição dessa possível solução e os dez princípios que o autor elenca para isso ficaram de fora deste trecho por questões de espaço e foco (aqui, nosso interesse é ofertar à leitora/ao leitor o contato com uma visão dos problemas do trabalho no século XXI).
[nota 3] - As “vilas de Potemkin” (ou “aldeias de Potemkin”) fazem referência ao príncipe Grigori Potemkin, que criou estruturas falsas de vilarejos em um trajeto de acesso à Crimeia, uma região devastada e pobre. A expressão tornou-se popular no Leste Europeu para designar estratégias de mascaramento ou criação de situações artificiais.
[nota 4] - Akerlof, George A. The Market for “Lemons”: quality uncertainty and the Market mechanism, The Quarterly Journal of Economics, v. 84, n. 3, 1970, p. 488-500. doi: 10.2307/1879431.
[nota 5] -Review & Outlook. You Didn’t Build That. The Wall Street Journal, 19 jul. 2012. http://www.wsj.com/articles/SB10001424052702304388004577533300916053684.
[nota 6] - Slee, Tom. What’s Yours is Mine: Against the Sharing Economy. New York: Or Books, 2015.
[nota 7] - Duda, John. Platform Cooperativism: The Internet, Ownership, Democracy, 13-14 nov. 2015. https://vimeo.com/149401422.
[nota 8] - Lobo, Sascha. Sharing Economy wie bei Uber ist Plattform-Kapitalismus. Spiegel Online, 09 mar. 2014. http://www.spiegel.de/netzwelt/netzpolitik/sascha-lobo-sharing-economy-wie-bei-uber-ist-plattform-kapitalismus-a-989584.html.
[nota 9] - Han, Byung-Chul. Müdigkeitsgesellschaft. Berlin: Matthes & Seitz, 2010. Nota do Suplemento Pernambuco: a obra foi publicada pela Editora Vozes sob o título Sociedade do Cansaço.
[nota 10] - Metts, Micky. Cooperative Development: Thinking Outside the Boss. The Design for Co-Op Apps. Internet Society. http://livestream.com/internetsociety/platformcoop/videos/105663835.
[nota 11] - Wark, McKenzie. Digital Labor and the Anthropocene. DIS Magazine, http://dismagazine.com/disillusioned/discussion-disillusioned/70983/mckenzie-wark-digital-labor-and-the-anthropocene.