Capa 1 Maria Julia Moreira

 

Susan Sontag (1933-2004) foi uma ensaísta prolífica e polêmica. O trecho abaixo pertence ao texto O que está acontecendo na América?, escrito há exatos 50 anos. Mostra como ela não tinha medo de se indispor com o público americano para defender suas ideias. Segundo a autora, o texto foi escrito em resposta a um questionário feito pela revista Partisan Review a várias pessoas, no verão de 1966. São lançadas sete perguntas a partir de algumas premissas que Sontag chama de “incompletas” - ela diz que a enquete começa com um “existe um grande grau de ansiedade sobre a direção da vida americana. De fato, há motivos para temer que a América esteja ingressando em uma crise moral e política”, para, então, lançar as questões.

As perguntas foram: 1. Tem alguma importância saber quem está na Casa Branca? Ou há algo em nosso sistema que forçaria qualquer presidente a agir como Johnson está fazendo? 2. Quão sério é o problema da inflação? O problema da pobreza? 3. Qual o significado da cisão entre o governo e os intelectuais americanos? 4. A América branca está comprometida em garantir a igualdade ao negro americano? 5. Aonde você acha que a nossa política externa está nos conduzindo? 6. De modo geral, o que você acha que irá acontecer no país? 7. Você acha que há esperanças nas atividades dos jovens de hoje?

Mais ao fim da vida, em 2001, Sontag publicou artigo sobre o atentado do 11 de setembro, defendendo que os EUA também tinham culpa no ocorrido. Era uma pessoa sem medo de enfiar o dedo na ferida para olhar o que ocorre – algo que precisamos exercer com cada vez mais atenção no atual contexto.

O que está acontecendo na América? parece ter sido escrito ontem, tamanha sua atualidade. E que falta nos faz uma Susan Sontag para nos ajudar a entender o que está acontecendo. O contexto global mudou bastante – países emergentes hoje detém importância política e econômica maior que há 50 anos, por exemplo – mas, ainda assim, há muitas semelhanças.

Recomendamos a leitura completa desse “ensaio-resposta”, originalmente publicado no inverno de 1967 pela Partisan Review. A versão que aqui disponibilizamos foi publicada pela Companhia das Letras no livro A vontade radical.


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Tudo aquilo que se sinta sobre este país é, ou deveria ser, condicionado pela percepção do poder americano: dos Estados Unidos como o arqui-império do planeta, que detém o futuro biológico e histórico do homem em suas garras de King Kong. Os Estados Unidos de hoje, com Ronald Reagan como o novo papai da Califórnia e John Wayne mastigando costeletas de porco na Casa Branca é exatamente a mesma Terra de Matutos descrita por Mencken. A principal diferença é que o que está acontecendo nos Estados Unidos tem muito mais importância no final da década de 1960 do que tinha na década de 1920. Naquela época, se se tivesse entranhas vigorosas, seria possível zombar, às vezes carinhosamente, da barbárie americana e considerar a inocência da nação de certa forma cativante. Nos dias de hoje, tanto a barbárie como a inocência são letais, extravagantes.

Em primeiro lugar, assim, o poder americano é indecente em sua escala. Mas também a qualidade da vida americana é um insulto às possibilidades de crescimento humano; e a poluição do espaço estadunidense, com engenhocas e carros, TV e arquitetura em caixotes, violenta os sentidos, transformando em neuróticos sombrios a maioria de nós, e em perversos atletas espirituais e sonoros autotranscendentes os melhores dentre nós.

Gertrude Stein disse que os Estados Unidos são o país mais idoso do mundo. Certamente, é o mais conservador. Têm o máximo a perder com mudanças (sessenta por cento da riqueza mundial nas mãos de um país que tem seis por cento da população do planeta). Os americanos sabem que suas costas estão contra a parede: “eles” querem tirar tudo isso de “nós”. Na minha opinião, a América merece que tal aconteça.

 


Três fatos sobre este país.

Os Estados Unidos foram fundados sobre um genocídio, sobre o pressuposto inquestionável do direito dos brancos europeus de exterminar uma população nativa, tecnologicamente atrasada e de cor, a fim de tomar o continente.

Os Estados Unidos tiveram não somente o mais brutal sistema de escravidão na era moderna como um sistema jurídico único (comparado a outros sistemas escravocratas, digamos, os da América Latina e das colônias americanas), o qual não reconhecia, em nenhum aspecto, os escravos como pessoas.

Enquanto nação — enquanto distinta de uma colônia — a América foi criada principalmente pela população pobre excedente da Europa, reforçada por um pequeno grupo que estava simplesmente Europamüde, cansado da Europa (um lema literário da década de 1840). Todavia, mesmo os mais pobres conheciam tanto uma “cultura”, em grande parte inventada pelos melhores colocados socialmente e administrada a partir de cima, como uma “natureza”, que fora pacificada no decorrer de séculos. Tais pessoas chegaram a um país onde a cultura indígena era meramente considerada inimiga e estava em processo de ser implacavelmente aniquilada, e onde a natureza, por sua vez, também era inimiga, uma força primitiva, não modificada pela civilização (isto é, pelas necessidades humanas), que devia ser derrotada. Após ter sido “conquistada”, a América foi ocupada com novas gerações de indivíduos pobres e erigida de acordo com a aparatosa fantasia da boa vida que as pessoas culturalmente destituídas e desarraigadas deviam partilhar no início da era industrial. E assim se parece o país.

 

 

Os forasteiros exaltam a “energia” americana, atribuindo a ela tanto a nossa prosperidade econômica sem paralelos como a esplêndida vivacidade de nossas artes e entretenimentos. Mas, seguramente, trata-se de uma energia nociva em suas origens e pela qual pagamos um preço demasiado caro, um dinamismo hipernatural e humanamente desproporcionado que desgasta os nervos de todos nós até deixá-los em carne viva. Basicamente, é a energia da violência, da angústia e do ressentimento disseminados, desencadeada por deslocamentos culturais crônicos que precisam ser, em sua maior parte, ferozmente sublimados. Essa energia foi sobretudo sublimada no cru materialismo e na ânsia de aquisição. Na febril filantropia. Em cruzadas morais cercadas de trevas, a mais espetacular das quais foi a Lei Seca. Em um talento aterrador para tornar medonhos o campo e as cidades. Na loquacidade e tormento de uma minoria de moscões: artistas, profetas, rastreadores de corrupção, maníacos e loucos. E nas neuroses autopunitivas. Mas a violência nua continua a irromper, colocando tudo em questão.

Não é preciso dizer que os Estados Unidos não são o único país violento, feio e infeliz na face da Terra. Ainda uma vez, é um problema de escala. Somente 3 milhões de índios viviam aqui quando o homem branco chegou, fuzil na mão, para seu novo início. Hoje, a hegemonia americana ameaça a vida não apenas de 3 milhões mas de incontáveis milhões que, como os índios, nunca ouviram falar dos “Estados Unidos da América” e muito menos de seu mítico império, o “mundo livre”. A política americana ainda é alimentada pela fantasia do Destino Manifesto, embora os limites fossem outrora colocados pelas fronteiras do continente, ao passo que, atualmente, o destino do país engloba o mundo todo. Ainda existem hordas de peles-vermelhas a serem dizimadas antes que a virtude triunfe; como explicam os clássicos do faroeste, índio bom é índio morto. Essa afirmação pode soar como exagero para aqueles que vivem na atmosfera especial e mais finamente modulada de Nova York e seus arredores. Cruze o rio Hudson. Você descobrirá que não apenas alguns americanos mas virtualmente todos eles pensam dessa maneira.

Por certo, essas pessoas não sabem o que estão falando, literalmente. Mas não há desculpa. É isso, de fato, que torna tudo possível. O voraz moralismo americano e a fé dos habitantes do país na violência não são apenas sintomas gêmeos de alguma neurose de caráter que assume a forma de uma adolescência protelada, que pressagia uma eventual maturidade. Constituem uma neurose nacional plenamente desenvolvida e firmemente instalada, fundada, como todas as neuroses, na eficaz negação da realidade. Até aqui isso funcionou. Exceto por certas porções do Sul cem anos atrás, os Estados Unidos jamais conheceram a guerra. Um motorista de táxi me dizia, no dia que podia ter sido o Armageddon, quando os Estados Unidos e a Rússia estavam em rota de colisão, próximo às praias de Cuba: “Eu não me preocupo. Servi na última, e agora estou fora do limite para a convocação. Eles não podem me pegar de novo. Mas sou totalmente a favor que façam as coisas já. O que estamos esperando? Vamos resolver logo isso”. Uma vez que as guerras sempre aconteceram lá longe e nós sempre vencemos, por que não jogar a bomba? Se tudo que é preciso é apertar um botão, melhor assim. A América é uma mistura curiosa — um país apocalíptico e um país valetudinário. O cidadão médio pode acalentar as fantasias de John Wayne, mas ele tem com a mesma frequência o temperamento de Mr. Woodhouse, de Jane Austen.