O mais recente livro de Terry Eagleton lançado no Brasil, A morte de Deus na cultura, com tradução de Clóvis Marques, retoma uma série de pontos caros não apenas ao autor em questão e à sua obra, mas também a uma parte significativa do campo de debate cultural e teórico dos últimos anos. É preciso, portanto, situá-lo dentro de um contexto. Muitos pensadores, intelectuais e filósofos, das mais variadas extrações ideológicas e nacionais, têm publicado trabalhos que abordam as relações entre religiosidade, política, sociedade e cultura. Dos mais acessíveis em edições nacionais, pode-se citar Giorgio Agamben – com trabalhos como O reino e a glória e Opus Dei –, Slavoj Žižek – O absoluto frágil e Sobre a crença –, Alain Badiou – São Paulo: A fundação do universalismo –, John Gray – Missa negra: Religião apocalíptica e o fim das utopias –, entre outros. Em maior ou menor medida, todos eles fazem referência a certos nomes centrais para a reflexão sobre a secularização e a metamorfose dos conceitos teológicos na modernidade, “instauradores de discursividade” como Marx, Nietzsche e Walter Benjamin.
No caso específico de Eagleton, que nasceu em um lar irlandês católico e foi coroinha na infância, trata-se de um retorno às origens. E isso não apenas por conta dos dados biográficos, mas também por aqueles bibliográficos: seu primeiro livro, de 1966, foi intitulado A Igreja da Nova Esquerda, seguido por um sobre Shakespeare, um terceiro sobre o tema do exílio e, em 1970, O corpo como linguagem: Esboço para uma teologia da Nova Esquerda (nenhum deles foi publicado no Brasil). De lá para cá, foram mais de 40 os livros publicados por Eagleton, e o tema “religiosidade”, e toda uma série de conceitos correlatos, fundamentais para a filosofia, como “metafísica”, “absoluto”, “razão” e “liberdade”, sempre esteve presente. Ao contrário dos autores citados no primeiro parágrafo, contudo, Eagleton não é conhecido por ser “difícil”, “hermético” ou “esotérico”, ainda que maneje sempre um instrumental teórico bastante denso. Mesmo os livros mais complicados de Eagleton, como A ideologia da estética, por exemplo, são organizados formalmente de modo didático, cronológico, explanatório. Não é diferente com A morte de Deus na cultura, composto de seis capítulos que contam uma história linear, cumulativa – como o próprio autor escreve no prefácio: “Este livro fala menos de Deus que da crise gerada por seu aparente desaparecimento. Com isso em mente, parto do Iluminismo para no fim chegar à ascensão do Islã radical e à chamada guerra ao terror”.
Em paralelo à profusão de interesses e publicações, construídas a partir de uma exposição que se quer acessível e didática, Eagleton vem desenvolvendo um estilo de escrita bastante peculiar, com um gosto acentuado para exemplos atípicos e piadas inesperadas, um terreno que compartilha com Slavoj Žižek (vide seu As piadas de Žižek, publicado em 2015 pela editora Três Estrelas). Uma amostra do primeiro, em A morte de Deus na cultura: “A versão contemporânea da religião é o esporte. É o esporte, com seus ícones sagrados, suas tradições reverenciadas, suas solidariedades simbólicas, suas assembleias litúrgicas e seu panteão de heróis, que vem a constituir o ópio do povo”. Um exemplo do segundo: “Joseph Priestley sustentava que o estado final da humanidade seria ‘glorioso e paradisíaco’, convicção sem dúvida notável para alguém que passou boa parte da vida em Birmingham”. Tal postura intelectual deve ser levada em consideração quando se lê a obra de Eagleton como um todo e A morte de Deus em particular, pois o dilema central apresentado nesse livro é o seguinte: como reaproveitar a força de movimentação das massas que só a religião parecer ter a capacidade de disparar?
Desde o Iluminismo, argumenta Eagleton, muitos foram os candidatos a substituir a religião nesse contato íntimo com as massas. Para certos pensadores, a substituição é impossível, nada conseguiria mobilizar a sociedade em amplas proporções como o faz a religião, com seu misto infalível de pragmatismo e mistério. Por conta disso, a própria religião deve ser cindida em seu interior, com uma parte respondendo aos desejos mais imediatos das massas – os rituais, os ofícios, o espetáculo – e outra parte, mais reservada e distanciada, reservada aos eruditos, aos mais “esclarecidos” (o nome dessa parte é “teologia”). O século XIX, contudo, conheceu a emergência de um movimento que tentava, sim, a substituição da religião como esfera simbólica dominante na sociedade – e o que foi designado para ocupar seu lugar foi, em termos gerais, a estética, e, em termos específicos, a arte. No fim das contas, o substituto “arte” tornou-se, na verdade, substituto de um substituto anterior – a “filosofia”, que havia sido a escolha da geração anterior, dos iluministas. “A arte pode ser mais palpável que a filosofia”, escreve Eagleton, “a imagem, mais convincente que o conceito – mas tende a deixar o populacho quase igualmente frio. É matéria por demais secundária para substituir a fé religiosa, que liga a conduta diária de incontáveis homens e mulheres comuns à mais sublime das verdades”. É precisamente essa ligação entre pensamento e “conduta diária” que Eagleton vê como a questão fundamental tanto da cultura como da política, ontem e hoje.
No primeiro capítulo, “Os limites do Iluminismo”, Eagleton procura rastrear a profunda ambivalência com relação à religião existente nas obras de figuras como Rousseau, Diderot e Voltaire. O período do “esclarecimento”, com palavras de ordem como “progresso” e “racionalidade”, tinha como um dos seus principais alvos o clero, a classe religiosa, seus privilégios e obscurantismos. Esses autores revolucionários, no entanto, reconheciam a importância da religião como veículo de coesão social – Voltaire, por exemplo, tomava muito cuidado para nunca falar de suas ideias de renovação perto dos criados. Além disso, no plano dos conceitos e das ideias, os iluministas não conseguiram conceber um mundo sem Deus, ou ao menos sem algo de inefável que permaneça como meta distante – seja a razão, seja a ciência.
Eagleton mostra no segundo capítulo, intitulado “Idealistas”, que o projeto iluminista foi levado adiante em termos menos radicais, mas ainda buscando “uma reconfiguração da fé religiosa em termos seculares”. Para os idealistas – Fichte, Schlegel e Schleiermacher, entre outros –, não se trata tanto da Razão, embora ela tenha um lugar de honra, mas, sim, do Espírito, algo que diz respeito tanto ao indivíduo quanto ao social, servindo de mediador entre fora e dentro, matéria e subjetividade: “Se o racionalismo iluminista depositava sua fé no conceito e no sistema”, escreve Eagleton, “boa parte do idealismo preserva essa confiança, mas aplicando esse arsenal intelectual ao mundo do Espírito”. Hegel, por exemplo, o grande nome desse período, precisou da totalização racionalista do Iluminismo, reconhecendo sua ingenuidade. Espírito e Razão confluem a partir do pensamento dialético, encadeado a partir das teses, antíteses e sínteses, uma maquinaria aprimorada por Hegel para dar conta do “perpétuo devir” da verdade, como nomeia Eagleton.
Em vários momentos de A morte de Deus na cultura Eagleton é cuidadoso em apontar que as divisões são arbitrárias, correspondendo mais a um esforço didático do que a uma pura e simples representação daquilo que historicamente se deu. Dos iluministas aos idealistas, por exemplo, uma série de categorias prévias permanece em atividade, ainda que renomeadas – ou seja, conceitos que devem guiar, antecipadamente, a vida e a experiência. O absoluto insondável, que é o principal insumo da religião, segue sendo reivindicado nessas duas etapas, que buscam sistematizar o absoluto dentro de regras e preceitos (em resumo, como fazer aquilo que se deve fazer e em que momento). O terceiro capítulo, dedicado aos românticos, é, em grande medida, um esforço de definição de certos aspectos que separam estes dos idealistas anteriores. A nova fase já não vê com bons olhos a sistematização e a regulação, investindo muito mais no transbordamento da expressividade e da sensação. As profundezas da subjetividade – muito mais do que as profundezas da divindade – são matéria de investigação tanto para idealistas quanto para românticos, ainda que os últimos tenham tido mais sensibilidade contra o “toque frio do conceito”, pois, continua Eagleton, na proposta romântica “o Absoluto não deve ser apreendido discursivamente, mas intuitivamente, esteticamente ou no próprio ato da autorreflexão”. Os afetos, obstáculos para os iluministas, agora são vias privilegiadas de acesso ao conhecimento e à verdade.
Cobrindo o final do século XIX e início do XX, os dois capítulos seguintes, “A crise da cultura” e “A morte de Deus”, são complementares, constituindo um arco que vai de Marx e Nietzsche até Durkheim, Freud e Walter Benjamin. Essa virada de século marca uma transformação na percepção da religião, agora considerada “uma síndrome que exige vigilante interpretação”, e não uma força passiva esperando melhor utilização. Em linhas gerais, contudo, o absoluto ainda ronda a visão de mundo desses três desmistificadores: a sociedade utópica sem classes de Marx, sua “hipótese comunista”, é um eco da cidade celestial; a morte de Deus de Nietzsche, que deve acontecer em paralelo à morte do homem comum, deve igualmente abrir espaço para o Übermensch, o “super-homem”, uma versão secular de Cristo; e psicanálise de Freud, nas palavras de Eagleton, é “um ateísmo que se ocupa de um desejo quase religioso de uma realização impossível”. Robustos sistemas de pensamento desacreditam, portanto, a crença como alternativa de vida, algo que se intensifica na primeira metade do século XX, com suas duas guerras mundiais. “O modernismo e depois” é o capítulo final, que busca uma narrativa que dê conta de aproximar o alto modernismo das vanguardas, o pós-modernismo das décadas de 1970 a 1990 e o extremismo que se tornou global após o 11 de Setembro e a “guerra ao terror”.
É preciso deixar claro que não se pode esperar do livro de Eagleton um aprofundamento desse último ponto, mais dramático e midiático, tão perto de nós historicamente. Na condição do panorama que de fato é, A morte de Deus na cultura, além disso, é menos sobre a “morte” do que sobre a “transformação” da ideia de Deus, da mesma forma que a “cultura” deve ser percebida por um viés mais restrito – a “cultura europeia” ou “ocidental”. Fica evidente, contudo, que Eagleton procura escapar da dicotomia “nós” contra “eles”, fazendo referência a um extremismo que é compartilhado ao longo de todo o espectro político – citando, por exemplo, o “crítico racionalista da religião” Sam Harris e sua sugestão de um “ataque nuclear preventivo” contra Estados muçulmanos. Talvez um consolo surja ao fim da leitura: nosso caótico beco sem saída contemporâneo é mais um elo de uma longa história, cheia de som e fúria, que no fim provavelmente não significará nada.