O texto abaixo é um extrato da apresentação de Frederico Barbosa ao livro Poesia completa, de Sebastião Uchoa Leite, editado pela Cepe em parceria com a Cosac Naify.
Este livro reúne toda a obra de um dos mais originais e provocativos poetas da nossa literatura. Publicada entre 1960 e 2003, a poesia de Sebastião Uchoa Leite percorre toda a segunda metade do século XX de maneira oblíqua: uma poesia-espiã, sempre avessa a classificações ou modismos, independente e arredia, em diálogo constante e crítico tanto com toda a nossa tradição poética, em especial a modernista, como com a poesia que lhe foi contemporânea.
“O artista perfeito não precisa ocultar pistas”, escreveu Sebastião Uchoa Leite. Talvez porque não as deixe. Talvez porque as deixe em tal profusão, apontando para tantos lados, que o leitor/detetive, partindo dos detalhes mais simples, acaba por se envolver no labirinto de pistas geradas pela máquina de signos que é toda obra de arte construída com o rigor e a engenhosidade de um crime perfeito.
Crime de um poeta raro, obsessivo e rigoroso, incapaz de fazer concessões, que encontra uma dicção particular, caracterizada sobretudo pela desarticulação do imaginário poético centrado na metaforização, e envereda por um processo metonímico de sobreposição de imagens que dá a tônica da sua produção posterior. Tudo isso permeado por um humor auto-irônico que, mesmo em face das agruras da doença e da proximidade da morte, nos últimos livros, ainda mais se disciplina e aguça.
Esse processo de articulações de imagens, intensamente metalinguístico, revela alguns procedimentos inusitados na nossa poesia e aponta saídas próprias para o fazer poético contemporâneo, tão carente de dicções originais, cerceado pelo impasse modernista instaurado a partir do momento em que se perde qualquer critério para a validação do poético ou mesmo do artístico.
A leitura de todo o percurso poético de Uchoa Leite, possibilitada em um só volume pela primeira vez aqui, revela a construção lenta e trabalhada dessa dicção poética original. Embora alguns temas e imagens reapareçam sempre, apesar de o rigor jamais ser esquecido (parodiando Valéry, diz o poeta: “A desordem não é o meu forte”) e mesmo que o poeta dialogue por vezes com sua própria produção anterior, há um abismo enorme entre o sonetista de 1958 – que escreve sobre o tempo, o silêncio e a morte, fortemente influenciado por Valéry, Ricardo Reis, Alberto Caeiro e mesmo por um certo artificialismo da dita “Geração de 45” e pela fase “sonetista” de autores modernistas como Drummond, Vinicius ou Jorge de Lima –, o poeta mais experimental de Signos/Gnosis e outros, de 1963-1970 – criando “palavras-valise”, extremamente marcado pela poesia concreta ou por sua própria tradução de Lewis Carroll – e o poeta maduro que encontra o caminho próprio a partir de Antilogia.
Em outras palavras, esta é a história de como um poeta foi procurando sua voz peculiar entre as ruínas do projeto modernista e, depois de achá-la, por ela enveredou com determinação.
“Palavras prescritas”
Publicado em 1960, o primeiro livro de Uchoa Leite compõe-se de dez sonetos de inspiração confessamente valéryana. Diz o autor em entrevista de 1990: “Dez sonetos sem matéria [...] foram muito centrados na poética de Valéry, são quase um ectoplasma valéryano”. Também a ensaística do autor de “Poésie et penseé abstraite” é de extrema importância para a compreensão do livro.
O texto “L’Homme et la coquille”, seja pela proposta de investigação abstrata das formas naturais múltiplas e fascinantes das conchas, seja tematicamente, é recuperado em:
Silêncio de uma concha? Receptáculo
de palavras prescritas que da turva
água do tempo dão na minha praia.
Seriam essas “palavras prescritas” a poesia sem rigor ou método que se produziu a partir de uma leitura superficial do modernismo? Mas o termo lido em outro sentido pode remeter ao inverso: palavras como “rigor”, “cerebralismo”... Lendo o duplo sentido, teríamos palavras e posturas que, esgotadas, gastas, “prescreveram”, caíram em desuso e são agora resgatadas como uma “prescrição”, um preceito, uma regra. A busca de uma regra secreta, da norma poética, é importante lembrar, perpassa toda a poesia valéryana, assim como os sonetos de estreia de Uchoa Leite.
“Em vez de fontes, bebedouros”
O segundo livro de Uchoa Leite, Dez exercícios numa mesa sobre o tempo e o espaço, nunca existiu de maneira isolada. Depois de Dez sonetos sem matéria, o poeta só voltaria a publicar em 1979, depois de dezenove anos, o magro volume de Antilogia. Os Dez exercícios numa mesa sobre o tempo e o espaço, escritos entre 1958 e 1962, permaneceram inéditos até 1988, quando foram, então, publicados com o conjunto da obra do poeta, no volume Obra em dobras.
Os Dez exercícios... apresentam algumas características fundamentais na evolução da obra de Uchoa Leite. Enquanto alguns poemas remetem claramente aos sonetos do primeiro livro, outros já apontam com nitidez para a poética “antipoética” que o autor seguiria a partir de Antilogia.
O livro se abre com o poema “Tombeau 1958”, título que remete a “Le Tombeau d’Edgar Poe” e “Le Tombeau de Charles Baudelaire”, de Stéphane Mallarmé. Mas o túmulo, no caso, não é de nenhum grande escritor do passado, mas do próprio “eu lírico” do poema. Nesse poema aparece pela primeira vez uma das obsessões que marcam a obra posterior de Uchoa Leite, a referência à morte tematizada em especial por meio da menção a túmulos e epitáfios. O poema, datado de 1958, reflete as preocupações dos sonetos. Mas já é notável um esforço do poeta em se libertar da influência dominante de Valéry, principalmente por meio da evocação de Mallarmé.
No sentido de apontar para procedimentos poéticos utilizados de forma mais radical em livros posteriores do autor, o poema mais importante desse livro é “Transparências”. Na primeira estrofe, temos uma comparação das transparências e claridades da cidade com as telas de pintores cubistas como Juan Gris e Braque, inaugurando uma linha que depois há de se tornar muito comum na poesia de Uchoa Leite, a referência direta a pintores ou artistas em geral:
Vê: transparências, claridades,
como nas telas de Juan Gris
ou de Braque, ou de outro qualquer.
Eis a cidade: qualquer.
Um elemento irônico é introduzido na comparação através do “ou de outro qualquer”, que minimiza a vertente cubista da descrição da cidade. Essa aparente indiferença a pintores ou cidades (“qualquer”) é reforçada na terceira estrofe do poema:
Teu olho, “blasé”, ignora
o rio folclórico-metafísico.
Teu olho quer apenas ver
com a sensação de ser.
O olho “Caeiro”, que “quer apenas ver”, inaugura uma rejeição que vai ser reiterada muitas vezes em poemas posteriores: a do “rio folclórico-metafísico”, seja do pitoresco, seja, principalmente, a da poesia dita metafísica.
Na quarta estrofe, um conflito é estabelecido com a primeira. Por querer “apenas ver”, o olhar despoja-se das referências iniciais:
Não olhar: não é olho cubista.
A luz o fere, não refere.
O teu olho é sóbrio e sensato
(pérola de recato).
O jogo de contrastes com o olhar que “não é cubista”, embora o poema se inicie referindo-se a Gris e Braque, continua no verso seguinte: “A luz o fere, não refere”. A primeira reação do olhar às transparências e claridades foi exatamente a referência aos pintores cubistas. Agora, tanto o cubismo como a referência em si são negados.
No entanto, esse conflito – entre o que é “dito” na estrofe de abertura e depois “contradito” na quarta – apenas reforça o teor cubista do poema, à medida que cria diferentes ângulos de percepção simultâneos da cidade. O poema segue com a descrição de uma cidade/montagem na qual as línguas e as referências se vão misturando para traduzir uma “ideia” de cidade a partir de visões fragmentadas de várias delas. Vão se misturando, como numa composição cubista, a Paris de Baudelaire, a Londres de T.S. Eliot, a Lisboa de Álvaro de Campos, a Roma de Fellini, Recife e Florença:
A rua é um sorvedouro, a rua
onde bebes a dolce vita.
Elétrica, condicionada, pura,
e sem o que perdura.
Em vez de fontes, bebedouros,
e cafés. As delícias do cream.
Salve, mitos modernos! Viva o ócio.
Au diable. Quem é beócio?
Andiamo: com brisa ou sem ela.
Fachadas, azulejos turísticos...
Esqueçamos Recife ou Florença,
Que nada é de quem pensa.
O italiano da referência ao filme La dolce vita, de Federico Fellini, mistura-se ao inglês do cream e ao francês de au diable, só para retornar em andiamo. Andiamo em qualquer cidade: seja nas fachadas de Florença, seja nos “azulejos turísticos” das igrejas “portuguesas” do Recife. Ao reafirmar que as “transparências” da cidade nada dizem a “quem pensa”, o poeta, em aparente contradição, nos leva por uma viagem a todas as cidades modernas.
Esse dizer dizendo que não quer dizer, mostrar dizendo que não tem o que mostrar, vai caracterizar a poesia de Uchoa Leite de maneira muito forte na continuidade de sua obra. A utilização antropofágica das referências – devorando-as, desmontando-as – vai retornar de forma acentuada em Antilogia. Em outras palavras, o poema “Transparências” é o primeiro prenúncio de uma postura poética que estava por se desenvolver.