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A masculinidade nos romances de Daniel Galera (texto que está no livro Do trauma à trama: o espaço urbano na literatura brasileira contemporânea, organizado por Regina Dalcastagnè e Ricardo Barberena)

Em janeiro de 2011, Dilma Rousseff assumiu a Presidência da República do Brasil. Sua posse marcou um momento histórico no país. Rousseff é parte do número crescente de mulheres que estão assumindo cargos de importância não somente na esfera política, mas também nos âmbitos econômicos e sociais. A presidência de Rousseff pode ser vista como parte do que Hanna Rosin, no seu livro The End of Men (2012), caracteriza como uma onda sociopolítica que marca o fim do domínio masculino na sociedade contemporânea. Ou seja, para Rosin, o momento atual se caracteriza pela ascensão socioeconômica e política das mulheres globalmente. Segundo a autora, a crise em que se encontra o conceito de “masculinidade” é, em parte, uma resposta a essas mudanças.

Diante dessas transformações, a sociedade se envolve numa polêmica para definir as masculinidades contemporâneas e lidar com a posição indefinida da masculinidade na atualidade. A revista masculina Playboy Brasil é um exemplo marcante desta polêmica. Em sua edição de dezembro de 2013, os editores publicaram um artigo de treze páginas titulado Constituição do Homem Livre, no qual delineiam 60 “artigos” que consideram como os direitos naturais dos homens (não mulheres) (Heart, 2013, pp.111 - 124). Estes constituem um compêndio de ideais sexistas que só são igualados pelas suas conotações homofóbicas. O artigo exalta as relações homossociais ao
mesmo tempo em que as nega. A Constituição do Homem Livre começa com a declaração:

“Nós, homens, nascemos para ser livres. A liberdade é o nosso maior patrimônio [...] Jamais nos verão numa passeata reivindicando nossos direitos. Com a exceção de jogos de futebol, não gostamos de muito homem junto. Por isso, aqui vai este manifesto. Nossa declaração de princípios. Sejamos o que somos, sem culpa nem preocupações. Não vamos ceder – a não ser, claro, que seja com segundas intenções. Faz parte do jogo.” (Heart, 2013, p. 111)

A lógica do manifesto é esmagadoramente reacionária e se fundamenta na premissa de que os direitos que se atribuem ao homem são naturais, portanto, inatos, não havendo, por isso, necessidade de justificá-los (o título no índice da revista assenta esta ideia do começo: “Viva a liberdade: A Constituição [nada machista] do Homem Livre, sem fronteiras e de princípios invioláveis” [Playboy 275 Brasil, 2013, p. 12]). As ilustrações das páginas são também reveladoras do que os autores entendem por masculinidade e seu significado social: constituídas exclusivamente por fotos de homens, trazem uma reformulação do Marine Corps War Memorial, em Arlington (VA), na qual soldados do sexo masculino levantam a bandeira da coelhinha da Playboy (também o logotipo do artigo); também há um astronauta que planta a bandeira da coelhinha da Playboy na Lua; e uma linha interminável de homens numa posição escarranchada no muro de Berlim. O que temos nestas imagens é uma ênfase sobre a centralidade das relações homossociais e referências fálicas que afirmam o potencial do homem – a bandeira reta, o homem de pé sobre o muro de Berlim. As imagens propõem reivindicar/reafirmar uma masculinidade que, tradicionalmente, servia para garantir a posição de poder na sociedade ao homem, mais especificamente o homem branco heterossexual da classe média-alta.

Neste artigo, analiso a representação da masculinidade do homem branco heterossexual da classe média-alta em dois romances do escritor gaúcho Daniel Galera: o seu terceiro romance, Mãos de cavalo, de 2006 (Companhia das Letras), e seu último, Barba ensopada de sangue, de 2012 (Companhia das Letras). Os dois romances têm protagonistas “jovens adultos” (Lehnen, 2012, p. 95), homens envoltos num isolamento voluntário, que evoca a nostalgia por um sujeito masculino definido pela virilidade tradicional frente à crise da masculinidade que os atinge. Neste artigo, depois de uma pequena sinopse dos romances, discuto brevemente as mudanças de posicionamento da masculinidade durante o último século. Consequentemente, me deparo com a expressão da nostalgia ao redor da masculinidade nos textos em questão, com um enfoque em Barba ensopada de sangue. Em seguida, considero como Mãos de cavalo emprega a cultura de massa como exemplo para a interpretação da virilidade desejada de Hermano. Finalmente, mostro a importância dos esportes extremos nas narrativas e a volta à violência entre homens como meio da consagração da virilidade dos protagonistas.

Mãos de cavalo narra a história do seu personagem principal, Hermano. O romance intercala dois períodos de sua vida: o presente centrado no Hermano de trinta anos, cirurgião plástico, com esposa e filha. Este segmento acompanha o protagonista das 6h08 até às 8h04 de uma manhã de sábado, em seu Mitsubishi Pajero TR4, pelas ruas de Porto Alegre. Paralelamente, temos o relato que se centra no protagonista entre os dez e os quinze anos quando ele enfrenta um evento traumático. Durante este episódio, Hermano testemunha covardemente (ou seja, sem intervir) a turma do Uruguaio, adolescentes do bairro vizinho, assassinar o seu amigo Bonobo. Segundo
Leila Lehnen, “o trauma que deixou cicatrizes duradouras fica claro no tempo verbal usado para descrever a juventude de Hermano. O romance está narrado integralmente no presente do indicativo, aludindo a uma fluidez entre passado e presente” (Lehnen, 2012, p. 100).

Intercalando as duas linhas narrativas, a juventude de Hermano e as duas horas durante as quais o protagonista adulto percorre as ruas semidesertas de Porto Alegre, a história narra, como argumenta Leila Lehnen, a trajetória de formação frustrada de Hermano. Segundo a autora, Mãos de cavalo é um Bildungsroman antitético que emprega a cultura de massa (revistas em quadrinhos, filmes de ação, videogames) para interpretar os passos de formação do protagonista da sua adolescência até a idade adulta. Barba ensopada de sangue também narra a história do seu protagonista, um professor de natação sem nome, que, após saber do suicídio (anunciado) de seu pai, se muda com a cachorra órfã do pai, Betinha, para o balneário de Garopaba (Santa Catarina) durante a baixa temporada. A sua decisão é motivada pela sua última conversa com o pai em que este revela a história da morte misteriosa do avô. O nosso protagonista vai à procura do esclarecimento sobre o desaparecimento do seu avô, ao mesmo tempo em que foge da sua vida conturbada em Porto Alegre em que a ex-namorada o deixou para se casar com seu irmão mais velho, escritor que mora em São Paulo. É interessante notar o binário em que o irmão simboliza o potencial masculino intelectual, enquanto o protagonista fica na oposição pela sua virilidade expressada através do corpo.

O texto, similarmente a Mãos de cavalo, é narrado predominantemente no presente do indicativo, o que também indica a influência do passado no presente. Esta “fluidez” entre o presente e o passado, a meu ver, se concentra na construção da masculinidade, real ou desejada, do protagonista de Barba ensopada de sangue. À diferença de Mãos..., em que o protagonista procura modelos de masculinidade fora da esfera familiar (em Bonobo, nos heróis das histórias em quadrinhos), o protagonista de Barba ensopada de sangue recorre à história dos homens de sua família, mais especificamente o avô, que alcança uma posição quase mítica para o protagonista. Há, por assim dizer, uma genealogia da masculinidade e de sua crise em Barba ensopada de sangue. Proponho analisar as crises que atingem a identidade masculina dos protagonistas destes dois romances de Daniel Galera como simbólicas do estado instável da masculinidade na sociedade atual. Parto da premissa de que os romances do autor são caracterizados pela ambiguidade que, por um lado, representa esta crise duma forma crítica, através de protagonistas socialmente desarraigados e, por outro, lamenta a perda de um paradigma masculino tradicional e hegemônico que os guie. É nessa ambiguidade que reside a “crise do macho”, através da qual entrevemos a sua ansiedade frente ao declínio da dominação masculina e o questionamento da configuração tradicional da masculinidade baseada nesta dominação.

Masculinidade nos séculos XX e XXI

A dominação masculina até meados do século XX se baseou na virilidade do homem, fundamentada na força física, potência sexual, domínio dos outros (muitas vezes pela força física), coragem e autocontrole: aspectos principalmente arraigados na violência simbólica e não tão simbólica que garantiam o domínio do homem na sociedade. Estes são os eixos que definiram a masculinidade tradicional e que foram naturalizados na sociedade como elementos essenciais e inatos da expressão da virilidade, requisito para ser homem “verdadeiro”.

O movimento feminista da segunda metade do século XX questionou e contrapôs-se à organização da sociedade baseada na dominação masculina. O feminismo revelou como a dominação masculina atinge todos os aspectos da vida diária, desde a forma de estruturação da sociedade até a linguagem que se usa no dia a dia. Com isso, o movimento feminista enfrentou e, até certo ponto, desestabilizou o privilégio masculino. Mais adiante, teóricos como Judith Butler (1990), Judith Halberstam (1998), José Esteban Muñoz (1999) e o movimento queer questionaram a naturalização da associação da virilidade com o sexo masculino, interrogando, dessa forma, a equivalência da biologia de uma pessoa com a sua expressão de gênero como uma performance regida pela sociedade no seu contorno. Frente a essas mudanças sócio-históricas e culturais, a masculinidade se encontra hoje em dia, ao que parece, em permanente estado de crise (Connell, 1987). Neste sentido, desde meados do século XX, o homem branco, heterossexual da classe média-alta, enfrenta uma série de mudanças sociais, políticas e econômicas que desestabilizaram a sua posição de poder e privilégio.

É dentro deste contexto que os romances de Galera lidam com a questão da masculinidade e a crise causada pela perda (pelo menos, em parte) do privilégio masculino na sociedade brasileira atual (Courtine, 2012, pp. 8-12).

Nostalgia e o sujeito masculino

Em Mãos de cavalo e Barba ensopada de sangue, o tom geral das narrativas é nostálgico. Os dois protagonistas dos romances se isolam do mundo ao seu redor, ao mesmo tempo em que procuram na expressão tradicional da masculinidade a possibilidade de se reintegrar socialmente. Neste sentido, os dois textos apresentam protagonistas que lamentam a falta duma virilidade marcada e encontram na violência o instrumento material e simbólico que os permite afirmar a sua masculinidade. Tomamos como exemplo a narrativa de Barba ensopada de sangue que, de forma geral, é permeada por um sentimento de perda desde o começo do livro. Esse sentimento é evidente na descrição do avô do protagonista:

"[R]etorna com uma fotografia velha de borda serrilhada. A imagem em preto e branco mostra um homem barbudo sentado num banquinho coberto por um pelego de ovelha, ao lado de uma mesa de cozinha, dando início ao movimento de levar à boca a bomba de uma cuia de chimarrão, olhando meio de lado para a lente, insatisfeito em estar sendo fotografado. Veste botas de couro, bombacha e uma blusa de lã com motivos quadriculados..."
(GALERA, 2012, p. 25)

A imagem é marcada por elementos que inserem o avô dentro da cultura tradicional gaúcha: chimarrão, botas de couro, bombacha e barba. Na imaginação popular, os gaúchos eram homens que trabalhavam no campo, principalmente na lida com bois e cavalos. Neste mundo, a força física, o domínio dos animais e dos outros, e a coragem eram considerados essenciais (Leal, 1992). Desse modo, a imagem do gaúcho tradicional estava intimamente vinculada com uma masculinidade cujos padrões se fundaram na violência dominadora.

Ao ver a foto, o nosso protagonista vai ao espelho e compara o seu próprio rosto com o que aparece na fotografia. Segundo a voz narrativa, “o rosto na fotografia é uma cópia mais morena e um pouco mais envelhecida do rosto do espelho. A única diferença digna de nota é a barba do avô” (Galera, 2012, p. 26). A fotografia do avô é o espelho idealizado do protagonista, a imagem daquilo que ele (o protagonista) deseja ser. Desta forma, a fotografia serve para ligar o protagonista com uma cultura considerada particularmente viril. Ou seja, desde o começo do romance, o protagonista começa a procurar no passado um exemplo viril com quem se comparar: ou como exemplo para emular, ou como lamento de uma época que não existe mais (“fotografia velha de borda serrilhada”).

Depois de o pai contar para ele a história da duvidosa morte a facadas do avô, em Garopaba, o protagonista pergunta ao pai por que ele lhe contara a história. A resposta, segundo o pai, reside no conto do escritor argentino a Jorge Luis Borges “O sul”. “O sul” narra a viagem do bibliotecário Juan Dahlmann para uma fazenda no sul mítico da Argentina, depois de sofrer uma lesão na cabeça. Na viagem, ele acaba se confrontando com um gaúcho que parece anacrônico, o resquício de um tempo mais “selvagem”, mas também mais “viril”. O conto de Borges se desdobra em possibilidades sem esclarecer se a viagem de Dahlmann é um produto dos seus pesadelos no sanatório onde o tratam depois da lesão, ou se é uma experiência real. O interessante da referência intertextual no romance de Galera é que Dahlmann procura nesse mítico sul-argentino uma “morte romântica” supostamente digna do seu avô que foi morto pelas lanças dos “índios de Catriel” (Borges, 1999, p. 89). Ou seja, no conto de Borges, o avô de Dahlmann foi um gaúcho argentino que, para o protagonista do conto, encarna a virilidade, enquanto que sua vida de bibliotecário o distancia desse mundo varonil.

O protagonista de Barba ensopada de sangue também faz a sua viagem para Garopaba, procurando o passado viril encarnado nos mitos do seu próprio avô e da cultura gauchesca. O romance de Galera não somente estabelece uma comparação (não tão) implícita entre a nostalgia do protagonista do conto de Borges e suas próprias aspirações, mas também determina um paralelo entre a alienação do protagonista de seu entorno em Porto Alegre e o alheamento do personagem principal em “O sul”.
É essa alienação que motiva a viagem do protagonista de Barba ensopada de sangue. Ele foge da metrópole gaúcha para se instalar num pequeno apartamento numa
praia de pescadores (outro símbolo tradicional de masculinidade), de pouco movimento, em Garopaba, à procura da reivindicação masculina que ele espera encontrar neste meio. Garopaba é, para ele, símbolo de uma natureza não completamente domada: “Os vagalhões sacodem o bote com violência para todos os lados. A temperatura caiu pelo menos dez graus de um instante para o outro e o horizonte inteiro já desapareceu na tempestade que se aproxima. O vento ruge e lança jatos de espuma no ar. Todos os pássaros desapareceram faz muito tempo” (Galera, 2012, p. 204). É o cenário ideal para encenar sua performance de virilidade, praticando natação no mar conturbado, enfrentando o frio da água e a violência das ondas e o vento.

A metáfora da viagem solitária une os dois romances e condensa tanto o tom nostálgico – em ambos os textos, trata-se de uma viagem simbólica ao passado – e de perda e retraimento dos dois protagonistas. Assim, em Mãos de cavalo, o Mitsubishi Pajero também serve para distanciar o protagonista do mundo ao seu redor ao longo do trajeto de sua viagem que atravessa a cidade de Porto Alegre vazia nas primeiras horas de uma manhã de sábado. Os dois indivíduos – Hermano e o protagonista de Barba ensopada de sangue – são sujeitos solitários, que procuram de forma consciente o isolamento. Eles são seres socialmente desenraizados e cada vez menos capazes de se relacionar com os outros, mesmo seus próximos – a esposa, no caso de Hermano, as namoradas, no caso do protagonista de Barba ensopada de sangue.
Os protagonistas desenraizados representam homens que se encontram frente ao desejo de voltar a uma masculinidade definida por parâmetros tradicionais que lhes assegura a posição de poder. A nostalgia que pulsa nas narrações de Galera se revela como sintomática da perda dum padrão hegemônico e inequívoco de masculinidade.

Procurando modelos: a masculinidade e a cultura de massa

Pesquisas recentes sobre a masculinidade e suas diferentes configurações têm enfatizado a natureza múltipla e diversificada da autodefinição masculina e de sua expressão (Connell 1987, 1995, Gutmann 2003). No entanto, como Richard Dryer (2002) observou sobre a sexualidade masculina, expressões de masculinidade na vida cotidiana impõem uma norma silenciosa mais abrangente que envolve os nossos ambientes sociais e políticos, “a sexualidade masculina se parece muito com o ar – você o respira o tempo todo, mas não se dá muita conta disso” (Dryer, 2002, p. 89, tradução nossa). Esta invisibilidade faz com que a masculinidade seja extremamente difícil de definir, mesmo sendo onipresente. Normas masculinas são estabelecidas através, por exemplo: da cultura (programação de televisão, filmes de sucesso, meios de comunicação, anúncios de produtos de consumo); das interações sociais, políticas e econômicas que instituem e naturalizam códigos de conduta em ditos como “os meninos são assim”, “homens não choram”, “ser um homem de verdade”. É dentro dessas interações que os códigos de dominação masculina são revelados, espaços discursivos onde o poder da masculinidade e da sociedade patriarcal é invocado, mas sua expressão explícita não é necessariamente empregada. Através desses processos de codificação, a masculinidade mantém o seu poder social e, ao mesmo tempo, permanece escondida.

Em Mãos de cavalo, o uso da cultura de massa para interpretar a masculinidade desejada de Hermano revela como este processo de codificação social se infunde na expressão individual do nosso protagonista. O fato de que Hermano tenha observado, sem intervir, a surra e subsequente morte do seu amigo Bonobo deixou fortes cicatrizes na sua vida. De certa forma, trata-se de uma falha da masculinidade. É um momento trágico, que, mesmo depois que Hermano se torna adulto, permanece sem possibilidade de retificação. Hermano irá revisitá-lo ao longo de sua vida. O trauma de Hermano é duplo. Por um lado, a sua covardia nega os ideais de masculinidade que ele admira (como os supracitados heróis de ação, como Mad Max). Por outro, a morte de Bonobo também extingue, para Hermano, um alter ego masculino. Segundo Leila Lehnen: “Para Hermano, o amigo transmite uma visão de masculinidade que é ao mesmo tempo oposta e complementar à sua personalidade. Se ele é reservado e controlado, o outro jovem representa uma espontaneidade liberadora que Hermano admira e deseja” (Lehnen, 2012, p. 102). Adicionaria que Bonobo personifica a masculinidade heroica que Hermano procura nas revistas em quadrinhos, filmes de ação, e videogames. Consideremos por um momento como Hermano descreve a força física de Bonobo:

"Bonobo se movia como uma criatura do dobro de seu peso e tamanho. Os demais seres humanos eram obstáculos insignificantes. Ou melhor, tudo o que existe era um obstáculo insignificante. [...] Era o tipo de sujeito que pisa em um caco de vidro e continua andando de chinelo o dia todo, completamente à vontade, deixando atrás de si um rastro de pegadas sanguinolentas" (Galera, 2006, p. 35).

A descrição remete à imagem de um super-herói como Hulk ou Hellboy, cuja força física ultrapassa o seu intelecto. A desatenção à dor física exemplifica tanto coragem como descaso com normas sociais, realçado pela imagem das “pegadas sanguinolentas” – que também evoca a ideia de violência física. Há uma certa arrogância no gesto. A repetição de “obstáculo insignificante” evoca a imagem de Bonobo derrubando qualquer obstáculo no seu caminho. Bonobo segue suas próprias normas, um código de uma masculinidade primitiva.

A imagem é duma masculinidade exagerada, que privilegia a força física acima de tudo. Para um menino entrando na puberdade, como Hermano e outros membros da sua turma, época durante a qual o corpo experimenta grandes mudanças, mostras de virilidade cobram ainda mais peso. Desta forma, os meninos do bairro tinham inveja de Morson Manera (outro menino da turma de Hermano) por causa do seu bigode (Galera, 2006, p. 33) e do Bonobo, pela força física e a sua atitude rebelde. Essa avaliação de Hermano é confirmada no mito urbano segundo o qual Bonobo enfrentou vinte dos adolescentes mais velhos do bairro. Com somente uma pedra e um pedaço de madeira à sua disposição, ele consegue mandar vários dos assaltantes para o pronto socorro e foge da cena sem dano maior à sua pessoa.

A virilidade mítica de Bonobo se contrapõe à virilidade simulada de Hermano, para quem estas mostras de masculinidade se reduzem a simulacros autonarrados, como, por exemplo, na abertura do livro, quando Hermano narra as suas aventuras como ciclista urbano em voz em off. A narrativa de Hermano se apropria dos padrões do filme de ação (Galera, 2006, pp. 9-30). Outro método que Hermano usa para encenar sua masculinidade são lutas inventadas frente ao espelho do banheiro (Galera, 2006, pp. 43-46). Estas batalhas são performances solitárias, nas quais o protagonista, literalmente, se reveste de uma pintura de guerra simulando feridas e sangue, usando crayons que ganhara de seus pais em um de seus aniversários.

As referências contínuas aos super-heróis da cultura de massas estabelecem um contraponto com a realidade vivida por Hermano até o momento em que ele trava uma espécie de luta final contra os fantasmas de seu passado. O enfrentamento entre Hermano e uma gangue de jovens nos subúrbios de Porto Alegre é o ápice da ação e serve como um momento de catarse que, por um lado, promete transformar Hermano no homem que ele sempre desejou ser e, ao mesmo tempo, enfatiza a inabilidade de mudar o passado e assumir a virilidade desejada:

"Vê a cena toda do alto, como se o Pajero estivesse sendo acompanhado por uma grua, o carro se aproximando em alta velocidade do cenário do combate. A desvantagem numérica é gigante, mas dessa vez não vai se esconder. Vinte metros. Lembra do V8 propulsionado pelo nitro em Mad Max 2 [...] Precisa enfrentar todos dessa vez. Dez metros. Não está somente imaginando cenas do filme. Agora ele é Mad Max, incorporou o guerreiro da estrada. Quer dar um cavalo-de-pau com o Pajero, mas não sabe dar cavalo-de-pau [...] A gangue o encara. Mad Max retribui os olhares de desafio..." (Galera, 2006, p. 149).

A primeira coisa que chama a atenção na descrição da cena é o olhar cinematográfico com que os acontecimentos são narrados. Como na abertura do romance, quando Hermano descreve as (suas) aventuras de “ciclista urbano”, nesta descrição a voz narrativa se apropria da cinematografia dos filmes de ação para inserir os eventos vividos por Hermano dentro das histórias imortalizadas em filmes como Mad Max (George Miller, 1979), Mad Max 2: The Road Warrior (George Miller, 1981), Mad Max Beyond Thunderdome (George Miller, 1985), ou Blade Runner (Ridley Scott, 1982). A voz em off narra a cena medindo em contagem regressiva a aproximação física de
Hermano à ação: cinquenta, quarenta... dez metros. Com cada passo, o narrador transforma Hermano em Mad Max até ele assumir o seu nome, transformando-se em um simulacro do personagem vivido por Mel Gibson. A descrição reencena, de forma geral, as batalhas do cowboy renegado Max “Mad Max” Rockatansky (Mel Gibson) que, num mundo pós-apocalítico, defende uma colônia de uma gangue de saqueadores brutais. No filme, Mad Max salva os colonos, que, com a sua ajuda, fogem para a costa e estabelecem a nova colônia, a “Great Northern Tribe”. Mad Max, por sua parte, volta para o deserto só, entrando na mitologia da tribo. De acordo com Rebecca
Johinke, Mad Max existe na “hipermasculina ‘idade de ouro’, [representada nos] traços de Max de agressividade contida, controle, autoridade, poder, potência e domínio tecnológico [...] um herói masculino” (Johinke, 2001, p. 118, tradução nossa). Ou seja, Mad Max é o exemplo par excellence do homem viril num território que suplica a violência e mostras da sua virilidade.

A metamorfose de Hermano em Mad Max cria um paralelo entre as ações do protagonista e o cowboy renegado e viril. No texto de Galera, Hermano se imagina como uma versão do herói masculino. No caso do protagonista de Galera, ele salva um jovem, em seu antigo bairro, de um ataque de uma gangue. Hermano reencena o episódio da morte de Bonobo, mas agora assumindo o papel de protagonista, de herói que, ao salvar o jovem da gangue, também está salvando o amigo de ser morto pelos seus agressores.

O romance, porém, também enfatiza o lado simulado da cena quando inclui o seu desejo de “dar um cavalo-de-pau” e, concomitantemente, faz questão de notar que o protagonista não sabe como “dar um cavalo-de-pau”. Ou seja, no mesmo momento em que a narração insere o leitor dentro da ação, também faz questão de banalizar a mesma ação através do humor. A cena típica dos filmes de ação: o herói entra na cena cantando pneu, derrapa o veículo, dá uma volta de 180 graus e para no meio da ação para lutar contra os bandidos. É uma das manobras de carro mais famosas da história do cinema. Agora, ao notar a incapacidade de Hermano para reencenar este truque automobilístico, põe ênfase na impossibilidade de ele encarnar a virilidade exposta na “época de ouro” de Mad Max que tanto Hermano deseja.

Tentando reivindicar a masculinidade hegemônica: esportes extremos e a volta para a violência

Tanto em Mãos de cavalo como em Barba ensopada de sangue, os protagonistas praticam os esportes extremos. Em Mãos de cavalo, Hermano pratica o montanhismo e a escalada. Hermano “considera a escalada em primeiro lugar uma forma de meditação, um exercício de autoconhecimento estendido a cada um dos duzentos e doze músculos do corpo” (Galera, 2006, p. 98). O protagonista de Barba ensopada de sangue treina para as competições de Ironman e é professor de natação. Os esportes ocupam um lugar privilegiado dentro dos textos e, geralmente, na formação da identidade masculina. Em ambos os romances, os esportes extremos estão ligados à demonstração e manutenção da centralidade da virilidade (neste caso, física, mas que se estende ao âmbito da subjetividade) para a definição da masculinidade.
No início do século XX, segundo Pierre de Coubertin, “o esporte aparece como o próprio símbolo da virilidade” (Coubertin, 1992, p. 152), através do qual o homem testa seus extremos. Seu corpo talhado pelo exercício chega a representar a perfeição masculina, o vigor dos seus músculos é monitorado para a exibição deste na luta arbitrada/regulamentada (Vigarello, 2012, p. 270). Em Mãos de cavalo e Barba ensopada de sangue, os esportes extremos são uma expressão da violência sublimada. Ambos os protagonistas arriscam as suas vidas para conquistar a natureza e mostrar a sua virilidade: Hermano na escalada, e o protagonista de Barba ensopada de sangue na natação extrema no oceano conturbado e nas competições de triathlon.

Paralelamente, o esporte substitui as práticas da violência “entre homens” à medida que a violência individual se torna cada vez menos aceitável, não só socialmente, mas principalmente frente à lei. Nesta mudança, o Estado assume o monopólio das práticas da violência dentro da sociedade, tornando-se o único eixo legítimo da expressão desta, pelo menos frente ao sistema jurídico. Além disso, de acordo com Luoluo Hong, “O processo de socialização masculina predominante... inculca em meninos e homens um código hegemônico e limitado da masculinidade que liga intimamente os papéis masculinos tradicionais com a violência” (Huong, 2000, p. 269,
tradução nossa). Estes códigos privilegiam as relações entre homens e procuram a afirmação da virilidade individual nos outros homens. Conforme Michael Kimmel, a expressão da virilidade é formulada em torno de decretos homossociais em que o desempenho da masculinidade é para, e concedido por, outros homens (Kimmel, 1994, pp. 128-129). A prática da masculinidade através de performances, como o esporte, e seu reconhecimento por outros homens define estes atos individuais de “gênero”. Dentro das hierarquias sociais masculinas, os homens tentam melhorar a sua posição usando “marcadores da masculinidade”, tais como a realização no trabalho, riqueza, poder e status, destreza física e potência sexual (Kimmel, 1994, p. 129).

Nos dois romances de Galera discutidos aqui, a violência acaba por ser o marcador privilegiado, que oferece aos protagonistas uma forma de catarse, através da qual conseguem alcançar uma masculinidade hegemônica mais tradicional. Em Barba ensopada de sangue, na abertura do livro, o protagonista, recém-chegado em Garopaba, sai com Dália, uma moça que ele conheceu numa pizzaria local e com quem vai para uma festa no Pico do Surf (Galera, 2012, pp. 42-53). Uma vez lá, ela some por um tempo e, quando, finalmente, o protagonista a reencontra, ela está na companhia de um nativo com “cabelo oxigenado”, estereótipo da cultura “surf”. Na narração, a tensão entre o protagonista e o “nativo” é palpável. Por fim, o protagonista sai sozinho quando o nativo o “empurra com força” (Galera, 2012, p. 52). No primeiro encontro, o nativo toma uma posição de agressor viril e, ao final da briga, é ele quem ganha a atenção da Dália, que parece preferir a versão de uma masculinidade violenta e dominadora.

O protagonista não reage à agressão, até recua diante do seu agressor. Este incidente no começo do romance parece um pormenor, porém comunica a construção da masculinidade do protagonista, porque sugere a agressividade contida que este sente em relação ao irmão por ele ter casado com a sua ex-namorada. “Eu [o pai] podia te fazer prometer coisa bem pior. Fazer as pazes com o teu irmão, por exemplo” (Galera, 2012, p. 34). Como no caso do “nativo”, a reação do protagonista ao relacionamento do irmão com a sua ex-namorada é de passividade, negando assim o ideal de uma masculinidade agressiva e proativa.

Uma cena paralela irá se repetir no final do livro. No entanto, esta cena mostra a mudança do protagonista. O processo de formação pelo qual ele passa no decorrer da narrativa o motiva a usar a violência como marco de uma virilidade tradicional (tão almejada por ele). Esta violência também consolida sua posição social dentro da pequena comunidade de Garopaba, posição esta que estava ameaçada, ironicamente, em parte devido à masculinidade agressiva do avô.

O enfrentamento, porém, acontece somente depois de sua longa investigação sobre a vida do avô e de uma espécie de confrontação com a figura mitológica do seu antepassado – que, quase que literalmente, assombra os arredores da cidade litorânea. O romance volta ao confronto entre o protagonista e o “nativo” em frente a um bar local. Desta vez, o protagonista está tentando resgatar a cachorra que herdara do pai, Betinha: “[E]le consegue agarrar o nativo pelo meio das pernas com uma das mãos e ao mesmo tempo prender sua garganta com a outra. Pode sentir os testículos esmagados e o tubo da traqueia comprimido entre os dedos. As pernas do nativo amolecem” (Galera, 2012, p. 391). A cena realça a castração do nativo, descrevendo como o protagonista, após ter passado por um processo de aprendizado viril, agarra seu oponente pelos testículos. A castração violenta do inimigo, por sua vez, afirma a masculinidade do protagonista. A cachorra, nesta cena, funciona como metáfora da virilidade resgatada do passado. Ela substitui a figura da mulher cobiçada (Dália, ao princípio do romance). Betinha é uma vindicação do confronto entre homens no Pico do Surf. Sua posse, alcançada pela violência, posiciona o protagonista dentro da tradição patriarcal que o avô representa.

Para Hermano, em Mãos de cavalo, a violência permite a reivindicação da masculinidade do protagonista. Como supracitado, é interessante que o nosso narrador constrói Hermano na linha do anti-herói Mad Max: “Aos trinta anos, o combatente veterano e cansado ali é ele. A gangue o desafia com xingamentos. Ele hesita. Não sabe se ataca ou espera. Atacar qual deles? Um herói não pode hesitar” (Galera, 2006, p. 150). A violência promete a possibilidade da superação do trauma, um momento de catarse que o situa dentro dos paradigmas da masculinidade tradicional. Destacando a associação entre violência, fisicalidade e masculinidade, o protagonista encontra
no sangue a confirmação da sua virilidade: “Sente gosto de sangue. Não é a primeira vez, mas dessa vez é o sangue da bravura, não da covardia” (Galera, 2006, p. 151).

A demonstração da bravura, o uso da violência para “proteger” outro homem – atitude diante da qual ele antes recuou – confirma uma masculinidade tradicional baseada
na virilidade do homem, fundamentada na força física, na potência sexual, no domínio, na coragem.

O final dos homens

Para concluir: nos dois romances analisados, nos encontramos frente a protagonistas socialmente aleijados, que, por um lado, representam a crise da masculinidade na sociedade contemporânea e, por outro, lamentam a perda duma masculinidade tradicional e hegemônica. É nesta ambiguidade que reside a “crise do macho”, através da qual entrevemos a ansiedade frente ao declínio da dominação masculina e o questionamento da configuração tradicional da masculinidade baseada nesta dominação. O protagonista em Barba ensopada de sangue se agarra a um conceito de masculinidade que não é mais funcional (exemplificado pelo avô, na crise com o suicídio do pai e
na sua incapacidade de assumir esse ideal antiquado). Hermano, protagonista de Mãos de cavalo, perde-se no sonho de emular os super-heróis e reivindicar a sua masculinidade. São vestígios de uma cultura que ainda não aceita o final dos homens.

* Jeremy Lehnen possui doutorado em Estudos Latino-americanos – The University of New Mexico (2010). Tem experiência na área de letras, cinema, cultura popular e artes visuais com ênfase em letras e cinema, atuando principalmente no seguinte tema: masculinidade e violência.


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