“Vale a pena em certas horas do dia ou da noite observar objetos úteis em repouso: rodas que atravessaram empoeiradas e longas distâncias, com sua enorme carga de plantações ou minério; sacos de carvão; barris; cestas; os cabos e as alças das ferramentas de carpinteiro... As superfícies gastas, o gasto infligido por mãos humanas; as emanações às vezes trágicas, sempre patéticas, desses objetos dão à realidade um magnetismo que não deveria ser ridicularizado. Podemos perceber neles nossa nebulosa impureza, a afinidade por grupos, o uso e a obsolescência dos materiais, a marca de uma mão ou de um pé, a constância da presença humana que permeia toda a superfície. Esta é a poesia que nós buscamos.”
Pablo Neruda, Paixões e impressões.
O fotógrafo salvadorenho Fred Ramos compôs em 2014 uma impressionante série sobre crianças e jovens assassinados em diferentes países da América Latina. Suas fotos apresentavam apenas roupas e pequenos objetos que eles portavam quando foram mortos, e que são preservados pela polícia forense para uma possível identificação pelos familiares. O que mais choca nas imagens é justamente a ausência dos corpos — franzinos, pequenos —, subtraídos pela violência. Quase dá para ver nossos filhos preenchendo um moletom vermelho, ou grudados naqueles fones de ouvido imprestáveis, mas as manchas de sangue e de fogo, os rasgões e as perfurações logo impedem qualquer aproximação. E temos de voltar a imaginar a criança que realmente viveu ali, sua história e a daqueles que a perderam. É que, tal como a fotografia, alguns objetos nos convidam a construir uma narrativa, e a completar sua existência, já marcada pela fricção com o humano. A intenção, aqui, é refletir sobre a força e os significados que os objetos podem trazer para a construção narrativa.
Ao nos determos na composição dos espaços da narrativa brasileira contemporânea é preciso indagar, antes de mais nada, a quem eles servem. Muitas vezes, basta observar o modo como ele é preenchido para intuirmos as personagens que o habitam. Nos lugares ocupados, ou vivenciados, por grupos marginalizados (pobres, negros, trabalhadores) é comum tropeçarmos em resíduos. Não é à toa que Carolina Maria de Jesus comparava a favela a um quarto de despejo e pensava o próprio corpo como um trapo descartado. Assim, se os espaços da elite econômica e cultural são quase sempre descritos como destituídos de objetos — a menos que sejam livros (vide O irmão alemão, de Chico Buarque, por exemplo) ou obras de arte (como em Corpo estranho, de Adriana Lunardi), os espaços dos pobres costumam ser atulhados de coisas: vasilha de plástico, brinquedo quebrado, gibi sem capa, imagem de santo, radinho de pilha. É só lembrar do início do romance Cidade de Deus, de Paulo Lins, com a descrição da chegada dos novos moradores e toda a sua parafernália:
“Os novos moradores levaram lixo, latas, cães vira-latas, exus e pombagiras em guias intocáveis, dias para se ir à luta, soco antigo para ser descontado, restos de raiva de tiros, noites para velar cadáveres, resquícios de enchentes, biroscas, feiras de quartas-feiras e as de domingos, vermes velhos em barrigas infantis, revólveres, orixás enroscados em pescoços, frango de despacho, samba de enredo e sincopado, jogo do bicho, fome, traição, mortes, jesus cristos em cordões arrebentados, forró quente para ser dançado, lamparina de azeite para iluminar o santo, fogareiros, pobreza para querer enriquecer, olhos para nunca ver, nunca dizer, nunca, olhos e peito para encarar a vida, despistar a morte, rejuvenescer a raiva, ensanguentar destinos, fazer a guerra e para ser tatuado. Foram atiradeiras, revistas Sétimo Céu, panos de chão ultrapassados, ventres abertos, dentes cariados, catacumbas incrustadas nos cérebros, cemitérios clandestinos, peixeiros, padeiros, missa de sétimo dia, pau para matar a cobra e ser mostrado, a percepção do fato antes do ato, gonorreias mal curadas, as pernas para esperar ônibus, as mãos para o trabalho pesado, lápis para as escolas públicas, coragem para virar a esquina e a sorte para o jogo de azar. Levaram também as pipas, lombo para polícia bater, moedas para jogar porrinha e força para tentar viver. Transportaram também o amor para dignificar a morte e fazer calar as horas mudas.”
É uma poética lista de tralhas que inclui seus corpos, verdadeiras “telas de representações”, como dizia Stuart Hall, uma vez que aos negros muitas vezes o corpo foi o único capital cultural que restou — o corpo do escravo era o “objeto” em que ele podia materializar sua cultura. Assim, as personagens de Lins entram em cena trazendo junto seu passado e sua história fraturada, negra e pobre. Muito mais do que mobiliar seus barracos, eles demarcam seu espaço, moldam seu ambiente — pelo menos até serem arrastados, mais uma vez, para outro lugar. Afinal, como já lembrava Carolina Maria de Jesus, em Diário de Bitita, os negros, desde a escravidão, “hoje estavam aqui, amanhã ali, como se fossem folhas espalhadas pelo vento. Eles tinham inveja das árvores, que nasciam, cresciam e morriam no mesmo lugar”.
Daí a necessidade de, ao se pensar o espaço literário, integrar ao chão e aos corpos trecos e coisas, mercadorias (ou ex-mercadorias, já sem nenhum valor) que, ao mesmo tempo em que preenchem o vazio da página em branco, nos vão revelando experiências e personagens que por vezes nem estão ali, seja como nas fotos de Fred Ramos, seja como em algumas das narrativas de Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, onde a descrição dos objetos em uma sala “diz” de seu dono antes mesmo que ele entre em cena, se é que ele entra. Neste sentido, muitas vezes é suficiente a lista de conteúdos de uma gaveta, uma estante, um armário — todos devidamente abarrotados — para imaginarmos seu ocupante. Os objetos falam de sua classe, de seu gênero, talvez até de sua raça, dos lugares por onde andou, de seus afetos e sua solidão, fazem com que nos sintamos próximos de suas experiências, por compartilharmos dos mesmos produtos, ou então muito distintos em relação aos seus gostos “pessoais”, que talvez nem sejam tão pessoais assim, já que refletem as influências sociais. Isso porque, como dizia Pierre Bourdieu em A distinção, até mesmo a arte e o consumo artístico são predispostos a “desempenhar, independentemente de nossa vontade e de nosso saber, uma função social de legitimação das diferenças sociais”.
A inscrição de um lugar para si
Mas, além de contextualizar o espaço e constituir personagens ausentes, os objetos também podem ser manipulados por elas próprias, de forma a marcar sua subjetividade e inscrever seu lugar no mundo, como no Guia afetivo da periferia, de Marcos Vinicius Faustini, ou, em outra perspectiva, no projeto Lixo extraordinário, do artista plástico Vik Muniz. No livro de Faustini, o jovem narrador se apresenta a partir dos produtos que ele consome e que o cercam – seja o velho ventilador Faet, sejam os livros e gibis usados, as roupas costuradas com etiquetas falsas, a mochila “customizada” com caneta Bic, as latas de Sardinhas 88 que preenchem a despensa da família e as garrafas de Coca-Cola do almoço de domingo. Também aqui as coisas definem classe e gênero; marcam, ainda, o espaço pobre da periferia. Mas, ao contrário dos romances de Paulo Lins ou Luiz Ruffato, os objetos são conscientemente usados pelo protagonista para se relacionar com os outros e para compor seu relato de formação. O adolescente “evolui” junto dos objetos que adquire — compra e vende para comprar de novo outras coisas, mais adequadas às suas recentes aspirações pessoais (conquistar as meninas) ou ideológicas (com a adesão ao trotskismo e às lutas estudantis):
“A mochila toda rabiscada com trechos de Este lado do paraíso, de Scott Fitzgerald, dividia espaço com o símbolo da IV Internacional. (...) Ter uma mochila toda rabiscada era como ter uma roupa de marca. Dentro do ônibus ou dentro do trem, colocava a mochila de modo que o passageiro ao lado conseguisse ler o que estava escrito. Eu queria ser um outdoor tanto do charmoso ceticismo burguês do Armory Blane quanto do charmoso espírito revolucionário trotskista. Se você não tem isso na sua juventude, você está morto.”
Já na obra de Vik Muniz, a relação das “personagens” com as coisas é intermediada pelo artista, mas objetos descartados compõem, desde sempre, o cenário de suas vidas. Ao convidar um grupo de trabalhadores de um lixão (o agora extinto aterro do Jardim Gramacho, no estado do Rio de Janeiro) para colaborar com seu projeto, Muniz os faz objeto e coautores de sua representação. Convivendo com os trabalhadores, que precedem a obra, como o jovem Sebastião Santos (então presidente da Associação dos Catadores de Material Reciclável de Jardim Gramacho), o artista os fotografa em poses que replicam quadros canônicos, como o Marat assassinado, de Jacques-Louis David; depois reproduz as imagens em grandes proporções no chão de um galpão e, com a ajuda dos trabalhadores, as recobre meticulosamente com pneus, garrafas, latas de tinta, chinelos, baldes, assentos de sanitários, guarda-chuvas recolhidos por eles próprios, dando textura, cor e novos contornos aos retratos. Então, ele fotografa o resultado e conclui a obra, que frequentará galerias e museus mundo afora. No galpão, o material é varrido e se torna, outra vez, mercadoria barata para os centros de reciclagem. O retrato, ali, é desfeito, mas fica (como indica o filme com o mesmo título) o espanto dos que puderam se reconhecer, literalmente envolvidos no objeto de seu árduo trabalho, em uma obra de arte.
Superfície de memórias
Mas as coisas podem, ainda, ser superfície de memórias. E a referência aqui não é aos livros raros com encadernação em couro, aos antigos relógios de pêndulo de várias gerações ou aos tapetes persas colecionados durante toda uma vida que preenchem salas e sótãos da rica família de judeus emigrados no romance Desterro, de Luis S. Krausz, por exemplo. São os móveis usados, as estatuetas quebradas, os vasos de plantas rachados, o radinho de pilha meio descascado que vão sendo trazidos por um casal empobrecido para sua pequena casa na periferia de Belo Horizonte, no conto “Eles dois”, de Sérgio Sant’Anna, no volume Homem-mulher. É a partir da lembrança desses objetos sem nenhum valor de troca que o narrador retoma momentos felizes de sua vida — a expectativa do encontro com sua jovem esposa, o silêncio das noites, olhando abraçados o céu estrelado, a alegria das pequenas descobertas no jardim. Talvez seja justamente a imperfeição dos objetos, as marcas deixadas neles por outros usos que lhes garanta a porosidade necessária para a absorção de novas histórias. É que, além de definirem o lugar, as coisas o povoam de sentido e marcam um espaço afetivo que se transforma em memória para, em seguida, se fazer narrativa (ou vice-versa).
A visualização desse processo poderia ser feita junto de um pequeno livro da artista plástica Rosângela Rennó, chamado Fotoportátil 3, onde ela compõe um conjunto de narrativas a partir de fotos de cenas de crime registradas pela polícia. O percurso que acompanhamos ao folhear o livro vai exatamente dos inúmeros objetos — às vezes caídos no chão, outras vezes cuidadosamente arrumados sobre os móveis — ao corpo ensanguentado. É uma transição lenta, uma vez que são muitas fotos para cada história, por isso, podemos ir imaginando e recompondo a vida que se viveu ali e que sabemos, desde o início, está perdida para sempre. A “intrusão” da artista em meio às fotos dos peritos da polícia se dá pela justaposição e sequenciamento das imagens. O homem morto de pijama listrado e um tiro no peito caído no jardim pode, então, ser imaginado outra vez regando o quintal com a mangueira esticada de fotos anteriores, jogando a bola esquecida na grama para o cachorro, empurrando o filho no balanço vazio, no triciclo ou no carrinho abandonados. O “caso” se transforma, assim, em narrativa e nos convida a inventar uma memória.
Se para Rennó são suficientes as imagens apropriadas para a confecção do artefato artístico (normalmente é com imagens alheias que ela trabalha), Sant’Anna precisa construí-las do nada, palavra por palavra — o que não quer dizer que não dialogue diretamente com o imaginário prévio do leitor, também repleto de cacarecos afetivos que se recusam a ser jogados fora. Em outra narrativa, “Conto (não conto)”, do livro O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, o autor vai compondo seu chão pouco a pouco diante de nossos olhos, colocando e retirando elementos, justificando e problematizando os próprios recursos, mas, principalmente, questionando a possibilidade da descrição de um espaço sem a presença do humano. Se, por um lado, o calor, os sons, os cheiros, a própria dor e a loucura são inviáveis sem que exista alguém para senti-los, e defini-los, por outro, como registrar a presença de homens e mulheres no mundo sem a lembrança de seus artefatos?
Compartilhamento do mundo
Por isso, também, porque os objetos de algum modo confirmam nossa passagem pelo mundo, eles são tão importantes: “Sua presença ou ausência muitas vezes é a própria definição do que as pessoas experimentam como pobreza”, lembra o antropólogo Daniel Miller, em Trecos, troços e coisas. Assim, quando Totonhim, protagonista de Essa terra, de 1976, de Antônio Torres, volta ao Sertão da Bahia 20 anos depois de ter migrado para São Paulo, em O cachorro e o lobo, de 1997, uma das primeiras coisas a lhe chamar a atenção são as inúmeras antenas parabólicas, fincadas como flores ao lado de cada pequena casa, além do fato de seu pai ter passado a fumar cigarros Hollywood, substituindo os antigos palheiros. O vilarejo miserável que habitava sua memória (e o romance anterior), repleto de tragédia e distante do resto do mundo, dá lugar a outras histórias, com pessoas tranquilas e alegres, que dividem presentes e a mesa farta.
O protagonista do romance carrega consigo o olhar preconceituoso das grandes cidades, que ainda imaginam o interior do país como um espaço totalmente alienado, que não participa do circuito de circulação de mercadorias, à margem do capitalismo e de sua parafernália. As antenas parabólicas representam, então, essa abertura para o mundo, e o consumo do cigarro industrializado seria um modo de se ver dentro dele. Ao reconfigurar o espaço de seu romance anterior, Antônio Torres o insere no tempo presente, reconhecendo, com Renato Ortiz (em Mundialização e cultura), que a “mundialização não se sustenta apenas no avanço tecnológico. Há um universo habitado por objetos compartilhados em grande escala. São eles que constituem nossa paisagem, mobiliando nosso meio ambiente”.
A forte presença dos objetos nessas narrativas não é gratuita: ela remete ao fato de que uma das características da sociedade capitalista é que as relações entre as pessoas são, muitas vezes, mediadas pelas mercadorias. A cooperação social é, assim, travestida pelas trocas mercantis, de maneira que cada um de nós se relaciona com os produtores apenas por meio de seus produtos, que aparecem como dotados de uma identidade separada daqueles que os fizeram — o que Marx, n’O capital, chamava de “fetichismo da mercadoria”, ou seja, “uma relação social determinada entre os próprios homens que aqui assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas”. O que, no capitalismo contemporâneo, ganha uma nova dimensão, já que não são nem os próprios produtos, mas suas marcas, que parecem falar por si sós.
Por todas as suas possibilidades, é de se estranhar que os objetos só ganhem esse destaque em obras que representam pessoas pobres — algo que mereceria uma análise com mais detalhe, a partir da releitura de um conjunto de obras que têm como foco a elite econômica e intelectual. O dualismo entre sujeito e objeto parece circular o problema. Talvez a recusa ao objeto seja uma estratégia para que o sujeito (entendido como o membro da elite) se evidencie. Ou, como já observava Bourdieu, talvez a resposta seja o reconhecimento dos escritores de que “transcender” o mundo material é um dos privilégios daqueles que estão em posição de não se preocupar com ele. Se para Carolina Maria de Jesus o dia a dia passa pela obtenção da comida e para o menino da periferia a roupa nova pode ser um acontecimento identitário, o intelectual é aquele que pode transcender a sua materialidade e, como o Rodrigo S. M. de A hora da estrela, de Clarice Lispector, ostentar a própria frugalidade.
Compartilhar o mundo a partir do consumo e da posse e objetos é uma imposição ideológica do capitalismo, dizemos nós, intelectuais, que pagamos caro por uma camisa de boa qualidade que não precisa exibir sua marca para ser reconhecida. Um cantor negro do funk ostentação, por outro lado, vai responder que precisa mostrar que pode ter tudo o que sempre lhe foi negado por sua condição. O problema do discurso contra o consumo, legítimo em seu princípio, é que camufla uma questão importante: consumo de quem? Há uma grande diferença, afinal, entre discutir os imperativos do consumismo, que geram desperdício e desgastam o planeta, e legitimar a exclusão de uma enorme massa de pessoas do universo dos bens materiais. Colocar em evidência esse tipo de incongruência também significa apontar a necessidade de relações mais igualitárias, inclusive no acesso aos objetos.
As obras que citadas aqui parecem partir do princípio de que não é possível descrever o mundo sem incluir nessa descrição as coisas que carregamos conosco, em caixas, nos bolsos ou na memória. Basta ver os estandartes e as assemblages de Arthur Bispo do Rosário — belíssimas obras produzidas durante décadas em um manicômio depois que Deus lhe mandou “reconstruir o mundo” — para entender o significado dos objetos em nosso imaginário e na nossa relação com o espaço em que vivemos. As coisas nessas narrativas (literárias ou visuais) demarcam o espaço das personagens, moldando seu ambiente, seja pelo excesso, seja pela falta. Servem, ainda, para nos revelar diferentes modos de experimentar diferentes lugares; ou para definir a subjetividade de protagonistas e narradores, inscrevendo-os na vida e delimitando-os nas hierarquias sociais. Mas refletem, também, em sua superfície muitas vezes debotada e com fissuras, a memória daquilo que já não tem substância no mundo — confirmando, assim, de um modo arrevesado, nossa existência e a daqueles que amamos.
Ilustrações de Hallina Beltrão.