contos

— Luz, câmera, ação!

Pedro Paulo, que mijava distraído, foi arrebatado pelo clarão dos faróis do carro. Virou-se e gritou:

— Apague a porra desses faróis!

Mas o carro já estava em cima dele. Sentiu o para-choque dianteiro quebrando suas pernas e caiu. Antes de morrer, esmagado pelas rodas da Ferrari, duvidou se era Sapo quem dirigia. Depois ficou tudo escuro.

— Corta!

Pedro Paulo encontrou os cinco rapazes em Itaquera, bairro da zona leste onde costumava pegar meninos. Foram comer galeto num boteco com radiola de ficha. O de cara de sapo chamou sua atenção. Nunca decorava os nomes dos meninos, nem se amarrava num mesmo parceiro. Achou mais fácil chamá-lo de Sapo, porque era feio e repulsivo, além de ter um jeito enviesado de levar os pedaços de carne à boca.

— Sapo tem quantos anos?

— Dezessete.

— Topa parada?

— Topo.

— Corta!

Pedro Paulo saiu do carro, irritado. Sapo não aceitava fazer o que ele desejava e o pau doía de tanta excitação. Precisava mijar para aliviar a dor. Estacionara num terreno baldio e escuro, fora da cidade. Detestava motéis. Afastou-se do carro, andou uns metros e virou-se de costas. Botou o pau fora da calça e esperou que o mijo viesse. Sentiu cheiro de capim molhado e por trás desse cheiro um outro mais antigo, de currais em noite de chuva. Olhou pro céu, viu as estrelas e lembrou que havia muito tempo não olhava para cima. Arrotou a cerveja que bebera e teve nojo de si mesmo. Sabia que depois dos segundos de orgasmo desejaria estar longe dali e nunca mais ver o rosto desagradável de Sapo. Passado pouco tempo, voltaria a procurar os rapazes como um viciado retorna às drogas.

Ouviu o carro sendo ligado e deixou para lá. Quando era menino, costumava ligar o Jeep do tio. Onde Sapo aprendera a dirigir? Em algum lava a jato ou puxando carros? Pedro

Paulo espantou-se com o próprio cinismo. Corrompera-se e arrastava consigo, todos os dias, uma legião de almas danadas como a sua.

— Apague a porra desses faróis!

— Corta!

Se conseguisse não sentir tanto remorso... Mas não deixava de senti-lo um minuto, principalmente quando rodava seus filmes engajados, panfletos sociais em defesa do povo, o mesmo que paria os rapazes com quem transava a troco de um galeto e uma cerveja. O carro veio em cima quando tentava se livrar de uns fiapos de carne, presos entre os dentes, e da náusea em que chafurdava havia anos.

— Apague a porra desses faróis!

A lanterna do tio em cima dele e do amigo. Os dois meninos deitados no palheiro de milho, saciando a mesma fome de sexo que nunca se apaziguava, fornalha de boca escancarada, engolindo, engolindo, engolindo...

— Vocês vão pro inferno!

Antes de chegar lá, passou pelo confessionário do padre, que não teve a menor compaixão do seu pecado e acusou-o publicamente de sodomia, no sermão da missa de domingo.

— Corta!

Luz, câmera, ação!

— Primeiro o para-choque, quebrando as pernas. Depois os pneus, esmagando a cabeça. Bem rápido! Um traveling de avanço e um recuo. E uma imagem para ilustrar os segundos da morte. Que imagem? A mãe paralítica, na cadeira de rodas. A boa senhora veio com ele para São Paulo, querendo limpar a barra do filho bicha, banido da cidade de interior onde nasceu. Um depoimento da velha mãe. Ela dirá: meu filho era bom e sofria por viver essas contradições. Filiou-se ao Partido Comunista e morria pela causa do povo. O cinema e a literatura que fez estão aí para provar. Foi uma vítima do capitalismo. Era um santo.

— Talvez seja importante acompanhar os pensamentos do cineasta nos seus últimos segundos de existência.

— Quem mede o tempo do sonho? Pensamento é sonho.

— Ele pode falar de um projeto que não realizou, de um roteiro inacabado. Propor uma nova técnica de enquadramento.

— Luz, câmera, ação!

Pedro Paulo sentiu vontade de mijar e andou até a beira do caminho, aspirando o cheiro fresco do mato. Todo seu desejo havia cessado. Experimentava uma liberdade insuportável. Sapo e o carro ficaram para trás. Desejou continuar andando, até livrar-se do impulso que parecia redenção, mas era morte. O cinema seria esquecido, a literatura abandonada.

Chegaria à cena perfeita, ao silêncio absoluto congelado em imagem, para sempre.

— Corta!

— Não é melhor repetir?

— Impossível ficar melhor.

Prescindiria dos Sapos, da embriaguez dos sentidos e da política. Só a Natureza é sagrada — pensou. Tudo é sagrado. O sacrifício de uma vida só é justo se Deus voltar a falar com os homens.

— Rápido, Sapo, acenda os faróis!

— Onde fica o botão?

— Ah, esqueci! Você é um fodido, não tem carro. O botão fica embaixo do volante.

— Achei! É aqui!

— Depressa, arranque! Aproveite que ele está distraído e de costas.

— Assim mesmo, sem gritar nada?

— Ele está esperando morrer. Não negue o que ele mesmo pediu.

— Corta!

— Caralho! Tem de ser ligeiro. No tempo em que ele sente a vontade de morrer e o impulso de viver novamente.

— Luz, câmera, ação!

Pedro Paulo caminha sereno. Experimenta a paz de quem não tem desejos. Quando os faróis do carro de luxo se acendem atrás dele, para onde se encontra, não esboça um gesto e nem diz uma única palavra. Parece aguardar o instante de libertação. Primeiro sente o baque surdo do parachoque quebrando suas pernas. Depois os pneus esmagando seu corpo frágil de homem, que nunca perdeu a inocência de menino.

A luz forte dá lugar ao escuro de uma noite sem estrelas.

— Corta! Perfeito. Continuaremos amanhã com outros personagens.

Leia aqui o texto do autor sobre os bastidores da criação desse conto.