O pesquisador literário às vezes inveja outros exploradores. O geógrafo pode chegar à nascente de um rio importante. O egiptólogo talvez esbarre num sarcófago desconhecido. O historiador de arte com sorte descobre — atrás de um sofá, num canto qualquer — um novo Leonardo. As alegrias de quem mexe com literatura são, em comparação, pouco adaptáveis ao cinema. O interesse do trabalho surge da crescente apreensão de uma obra, de uma personalidade, dentro e ao redor da obra. Depois, da possibilidade de divulgar as pesquisas e reflexões.
Mas isso não nos impede de sonhar com uma descoberta. Sabemos que todo autor moderno deixa rastros em locais inesperados. Até os maiores, para sobreviver, escreveram em jornais secundários; deram entrevistas a periódicos obscuros; recorreram a pseudônimos em trabalhos burocráticos que não queriam ver associados à obra “real”. Depois de um tempo, porém, pensamos que tudo o que diz respeito a determinado autor já deve ter sido descoberto. Afinal, quantas pessoas não vasculharam os mesmos arquivos? Quantas pessoas não chegaram antes?
O meu momento Tutancâmon ocorreu num dia qualquer, numa salinha sem graça de uma biblioteca no Rio de Janeiro, cheia de estudantes que enviavam mensagens de texto e olhavam entediados pelas janelas. Eu também estava entediado. Há dias folheava as páginas amareladas dos jornais com os quais Clarice Lispector havia colaborado no início de sua carreira. Eu estava preparando o volume de contos de Clarice a ser lançado em tradução inglesa, a reunião de todos eles, de seus primeiros esboços, aos dezenove anos, até as derradeiras histórias que ela deixou inacabadas ao morrer.
No Brasil, os contos completos de Clarice nunca foram publicados num volume único — encontram-se dispersos em inúmeros volumes. Como eu, valendo-me da língua franca em que se transformou o inglês, pretendia estabelecer uma edição que pudesse servir para promover a escritora para além das fronteiras dos países de expressão em língua portuguesa, queria ter a certeza de haver recolhido absolutamente tudo. Àquela altura, no entanto, eu começava a pensar que estava metido num trabalho insano, à espera de uma recompensa que talvez não se materializasse nunca. De repente, topei com meu tesouro, meu Leonardo: um conto que não havia sido revisitado desde o dia em que veio à luz, setenta anos atrás.
Não posso dizer que tenha caído em prantos, de joelhos, tampouco que meu achado fosse uma Mona Lisa. Não: era um pequeno desenho. Um texto um tanto cifrado, com um tom hierático que não deve ter suscitado grande interesse no dia em que apareceu. No contexto da obra da escritora, contudo, a segunda parte de “Cartas a Hermengardo”¹ — a terceira já era conhecida — revela aspectos bastante interessantes, que a vinculam à leitura de uma obra que exerceu sobre ela uma influência de peso.
Por volta de seus vinte anos, Clarice leu Spinoza numa tradução francesa, publicada apenas sete semanas antes da ocupação da França pelos nazistas. O escritor alemão Arnold Zweig, que assina o prefácio da edição, conjectura a perdurável ascendência do filósofo judeu-holandês sobre escritores jovens: “Desnecessário explicar que este grandioso panteísmo exerceu uma influência particular sobre os poetas e as naturezas poéticas, sobre os temperamentos faustianos”.
A jovem Clarice, uma das “naturezas poéticas” que o filósofo inspirou, já em Perto do coração selvagem — seu romance de estreia — cita extensos trechos de Spinoza. E a presença dele em sua obra seria notada até A hora da estrela, o último livro que ela lançou em vida, onde ela proclama “Deus é o mundo”, quase citando a famosa fórmula de seu mentor, “Deus sive natura” — “Deus, ou seja, a natureza”. Clarice frequentava amiúde o filósofo. O exemplar francês que o apresentou a ela está coalhado de anotações:
“Tudo que é, é porque alguma coisa foi anteriormente. Os fatos se ligam ao passado e não ao futuro (controle íntimo).”
“Dentro do mundo não há lugar para outras criações. Há apenas a oportunidade de reintegração e de continuação. Tudo o que [pode] existir, já existe certamente.”
“Nossa infelicidade vem de que somos incompletos (faíscas do fogo divino, como queriam os [hindus]) e perdemos o sentimento do todo.”
Em “Cartas a Hermengardo”, a leitura de Spinoza ainda não está bem digerida. O tom didático emula o filósofo, que expôs em curtas frases como se deve viver. Por meio de Idalina, que dá conselhos ao pobre Hermengardo com uma autoridade por vezes altaneira, Clarice também busca apontar a conduta correta.
Ambos os autores pretendem advertir contra as paixões, como se lê aqui em Clarice: “Eu te digo que há uma alegria em renunciar à dor das paixões. Porque desejá-las é desejar a dor e não o contentamento e os nobres sentem em si a necessidade de auscultar sua capacidade de arder.” Spinoza define quem renunciou a esse ardor: “O Sábio [...] não conhece quase nenhum tormento interior, mas, por uma certa eterna necessidade de si próprio, de Deus, e das coisas, não para nunca de ser e possui o verdadeiro contentamento.”
Podemos adivinhar, atrás dessas frases, seres tentados pelo ciúme, pela raiva, pela paixão. As criaturas tépidas, afinal, não procuram nem precisam arder, mas quem arde precisa renunciar ao fogo: “Que a alma foi feita para ser guiada pela razão e que ninguém poderá ser feliz se estiver à mercê dos instintos,” escreve Clarice. Ecoa a frase de Spinoza: “Não há então nada mais útil para a conservação do próprio ser e do gozo da vida de acordo com a razão que um homem guiado pela razão”.
Há outro ardor a que não se deve renunciar. O “grandioso panteísmo” que tanto interessou aos poetas é a ideia de que tudo no universo é perpassado, é impregnado de um sopro de vida. Spinoza o chama de “Deus”; Clarice lhe dará muitos nomes. É uma ideia poética, mística, mas no século 17 a ideia de que o mundo e Deus são sinônimos foi, antes de mais nada, uma revolução. Dispensou Estados e Igrejas; abriu um caminho para que cada um encontrasse o Deus que quisesse, onde quisesse. Divina simplesmente por fazer parte do mundo, a pessoa já não precisa de salvação. São as “faíscas do fogo divino” que, em toda a obra de Clarice Lispector, suas personagens tentarão descobrir.
Ser de natureza divina é uma coisa. Agir de acordo com essa natureza é outra. O primeiro é dado, o segundo é resultado de uma dura aprendizagem. Para aprender a viver, é preciso uma ética, para emprestar o título de uma das principais obras de Spinoza. Daí o tom de conselheira sábia que Clarice adota nesses contos. Ao mesmo tempo, vemos que esse tom a cansa: “Se não puderes seguir meus conselhos e todos os programas que inventamos para nos melhorar, chupa umas pastilhas de hortelã. São tão frescas”.
Aqui, Clarice nos prepara para uma outra diferença sua em relação ao filósofo. O homem guiado pela razão, diz Spinoza, é necessariamente mais homem, porque a razão é o que nos separa dos animais. “O maior bem da alma é o conhecimento de Deus; sua mais alta virtude é conhecer Deus, o que significa: estar de acordo com a nossa natureza.” Clarice concorda com isso, mas para ela nossa natureza não exclui a animalidade. “Porque nós somos animais, porém somos animais perturbados pelo homem”, escreve em “Cartas a Hermengardo.”
Para Spinoza, “a regra da procura do útil nos ensina a necessidade de nos unir aos homens, mas não aos animais ou às coisas, cuja natureza é diferente da humana”. A busca de Clarice para a superação desse limite terá um clímax em A paixão segundo G.H., livro em que G.H. busca uma reunificação de sua essência com a da barata. A natureza essencial da barata — irracional, animal — não é diferente da humana. Justamente.
A palavra “animal” vem da palavra latina “anima” (alma). Em iídiche, idioma da infância de Clarice Lispector, um animal selvagem é um “vilda chaya”. Chaya — animal, vida — era o nome que tinha Clarice antes de chegar ao Brasil.
Se Spinoza queria, de certa forma, fazer do homem mais humano, Clarice Lispector queria reencontrar a “vilda Chaya,” o coração selvagem que lhe foi roubado pelo que chamaria de “civilização”. Ela bem sabia que era impossível voltar a um estado de natureza pura. Todos precisamos viver no mundo como ele é. Mas em livros como A paixão segundo G.H. vemos com que ardor ela imaginava uma vida anticivilizada: anti, digamos, ética. É por isso que minha descoberta me empolgou tanto. Não só pelo arqueológico prazer de preencher um vazio na bibliografia, mas pelo prazer de encontrar, depois de um estudo prolongado, um maior entendimento de uma personalidade e de uma obra.
Eis aqui o embrião de um grande pensamento. Vemos, pela primeira vez, uma menina brasileira, ainda adolescente, medindo suas forças contra um dos grandes filósofos. A admiração por ele fica evidente. Como também evidente fica sua dignidade, sua capacidade de pensar por si própria, que dará à futura obra tamanha força intelectual. Essa força, que logo se combinará a uma poderosa força emocional, é que faz o prazer, e também o susto, de ler Clarice Lispector. Não é todo dia que nos é dado ver um gênio surgir. Pois, como disse Spinoza, “tudo que é grande é tão caro quanto raro”.
1 - As três partes do conto “Cartas a Hermengardo”, publicadas no jornal carioca Dom Casmurro em 14 de junho, 26 de julho e 30 de agosto de 1941, foram publicadas juntas em Clarice na cabeceira: jornalismo (Rocco, 2012).