alberto

Eu gosto dessa foto. É uma imagem de veraneio, que me leva a evocar mil verões, mas é claro que não tive, nem terei, mil verões para lembrar e sinceramente eles não me interessam tanto assim. Talvez não os saiba desfrutar direito, faz muito calor, a luz do meio-dia é horrível, também não sou, e nunca fui, um rato de praia, um cara que amanhece deitado, todo queimado, na areia do Rio de Janeiro. Além disso, eu não sou do tipo que foge dos verões da capital para ir, sei lá, desfrutar o mar e a “agitação” de Punta del Este ou Vinã del Mar, para ver e ser visto ou mesmo para me ilhar em lugares onde os ricos de países pobres se isolam, independente das suas posições políticas. Afinal, os ricos são diferentes e se conhecem e se bronzeiam do mesmo modo: com cremes importados e pegajosos de babosa.


O que eu gosto mais sobre o verão, o verão chileno, especialmente o de Santiago, é que, lá pelas 9h da noite, o calor que estava matando você alivia. Diminui, escapa, é removido. Refresca. Gosto do som das pessoas regando meu bairro no meio da noite. Gosto de saber que preciso sair de casa preparado, porque, apesar de ter feito 33, 34 e até 35 graus, ao final de tudo, lá pelas duas da madrugada, fará menos de 15 graus e você sentirá frio e jamais irá transpirar sob a luz da lua.

Esta foto não é santiaguina, não é chilena, e sem dúvida é parte da minha memória vital, daquilo que eu associo ao verão e tem algo daquilo a que chamam de paraíso perdido. Sim, uma foto pode contar muitas coisas, esta foto as conta e, com o passar do tempo, sua história só faz aumentar. Fui criado nos Estados Unidos, na Califórnia, onde, segundo Albert Hammond, nunca chove ao sul do estado, o que não é necessariamente uma verdade absoluta, mas tem sua verdade: chove pouco e o clima, em geral, é glorioso, uma primavera eterna e um verão desértico, duro e seco. Esta foto foi tirada pelo meu pai, que sempre teve seu lado artístico, cuja faceta mais desenvolvida foi a da fotografia. Acredito que o meu lado cinéfilo não vem do seu lado (mas de onde vem mesmo?); sim talvez, ao menos, venha dele a consciência da luz e do enquadrar. Para mim, o que mais importa no cinema, para além de captar o que pensa um ator, é a luz e o enquadramento.

Esta foto foi tirada, provavelmente, na praia de Zuma, em Los Angeles, perto de Malibu (ou foi durante um passeio a Santa Bárbara?). Deve ter sido tirada no final dos anos 1960 e começo dos 1970. Quem sabe 67, em pleno verão do amor? Talvez não, não pode ser, deve ser de 1969, porque minha irmã é de 66 e em 67 ela estaria muito pequena. Não é. É por aí. Eu gosto muito dessa foto. Tem inocência, tem felicidade, é uma prova de que, durante uma época, durante um verão, fomos jovens e felizes e não nos importávamos com nada. Gosto da forma como me vejo (sou o do meio, o bonito, ainda sem óculos) e de como estou contando algo para minha irmã (o futuro escritor) e também do gesto que faço com a mão, há algo de diretor de cinema nele. Gosto da expressão no rosto da minha irmã, com seu biquíni havaiano, tipo Jodie Foster nos comercias de Coppertone, que, nesta época, estavam em toda parte (um cachorrinho abaixa a parte traseira do biquíni de uma garota e vemos que ela está toda bronzeada, com exceção do seu bumbum, branco como a neve). Na verdade, se você olhar direito para Michelle vai ver que, de fato, sua parte traseira também está caindo, o que prova que esse verão, esse verão antes dos raios ultravioletas foi vivido inteiramente em piscinas de cimento ou infláveis lá em Encino.

Ao lado, à esquerda, há um garoto que deve ter uma idade intermediária entre minha irmã e eu. Ele não era um amigo próximo, mas também não era um extra que simplesmente estava ali. O garoto se chama – ou se chamava – Esteban e era o único filho de um casal de chilenos (ou ela era uruguaia e ele é que era chileno?), que foram relativamente negligentes. Eles também viviam no Valle: em San Fernando Valley da Califórnia. Aqui me perco e talvez invente ou distorça, mas esta não é uma reportagem ou uma biografia, nem muito menos um conto, não tenho muita clareza do que se trata, mas eu gosto da ideia de voltar, de forma precisa ou não, a esses anos, a essa California Dreaming, onde estão presas tantas pessoas no meu disco rígido musical.

As vezes as fotos reaparecem, como quando decidi escanear algumas (reparem o look Kodak desvanecido, quase polaroide, não muito diferente dos filmes usados pelos grandes fotógrafos do cinema americanos dos anos 1970), e esta foto claramente ficou entre as favoritas da família. Mas sempre – sempre – surge o tema de Esteban. O que aconteceu com Esteban? Ou indo para o começo de tudo, quem era Esteban mesmo? Qual era seu sobrenome? Ossadón? Rivadeneira? Quando se abandona um lugar, ele se transforma em algo mítico. Um lugar para onde é impossível retroceder. Ao passado não se volta, no máximo se visita. Por isso coisas são contadas: coisas sobre Esteban. Que sua família se separou (como a minha). Que sua mãe, famosa por nunca lavar os óculos, por ter as lentes envoltas numa grossa camada de sujeira, voltou a Santiago depois do Golpe (ou foi para Montevideo?) e deixou Esteban lá. Ou talvez não tenha sido bem assim. Talvez tenha retornado depois, depois de nós mesmos. Minha mãe, até hoje, acredita que nos salvamos por termos voltado, por não termos crescido como gringos, por termos sidos criados como chilenos. Quem sabe? Não é possível se salvar em qualquer idioma? Será o país ou a família ou o contexto os responsáveis por semearem a autodestruição dentro da gente?

Olhem direito para Esteban. Fixem o olhar. Ele tem algo raro? Distinto? Olho e olho e não compreendo. Gosto dos seus dentes. E sempre lembrei dessa foto achando que este Esteban, a quem nunca cheguei a ser amigo, que desapareceu de nossas vidas, não tinha os dentes. Mas nesse ano eu era muito jovem. Talvez nesse verão tenhamos passado muito tempo na casa de Esteban. Sua excêntrica mãe nos dava leite com banana, em calorosos e fétidos copos de plástico coloridos, que haviam permanecido muito tempo ao sol. Essa família (havia outro irmão ou irmã?) tinha uma coisa insólita no quintal que se chamava Slip-N-Slide, que nada mais era que uma larga tira de nylon que ficava molhada. Por um lado, a mangueira era colocada e, de vez em quando, através de uns buraquinhos, saía água. Assim todo o quintal ficava extremamente escorregadio, e, quando alguém corria, se lançava sobre o nylon vermelho e acabava deslizando como num toboggan.

Quando alguém se instala em outro país, eventualmente chega gente do seu lugar de origem. E parte do ritual é colocar em dia o que aconteceu. E, aos poucos, fomos sabendo que Esteban se perdeu. Desapareceu. Para voltar alguns anos depois. Ou o encontraram, não sei. Parece que Esteban era gay, para desgosto da família. Algo assim. Talvez não tenha se perdido, talvez o tenham perdido. Talvez tenham expulsado ele de suas vidas. Isolado-o. Não tenho certeza, não sei se o que estou contando aqui é verdade, não é que a memória falhe, porque não há memória, não é minha vida. Não é minha memória, é a vida, é o que aconteceu ao garoto que está do lado esquerdo da foto que gostamos tanto. E quando as pessoas perguntam quem é o garoto, logo um breve silêncio se instala.

Que simpático é esse garoto. Quem foi ele?
Quem foi ele?
Que pergunta!

A pergunta que vale um milhão, a pergunta obsessiva, a pergunta de todas as mães, talvez a única pergunta importante.

O que aconteceu com ele?
Como ele terminou, em que trabalhou, como ele tratou sua vida?

Não temos respostas. Não é meu irmão, nem primo. Não voltamos a vê-lo. Mas ele está nesta foto, é parte da nossa intimidade, e aí está Esteban: bronzeado, alegre, rindo, sem querer posar para a foto, talvez levemente tímido, como se tentasse esconder o rosto.
O que podemos responder? O que posso responder?

Que tudo terminou mal. Que o verão de 69 não durou para sempre. Que já não temos mais esses rostos, esses dentes, esses corpos, esse calor. Digo que Esteban fugiu de Valle, de Encino, do sul da Califórnia e se refugiou em São Francisco? Mas não tenho certeza. Nada disso, na verdade, me consta.
Só me consta uma coisa: que morreu. Morreu antes do tempo, morreu mal, morreu sozinho (aqui eu invento) e que não voltou a sorrir assim. Talvez tudo isso seja mentira. Coisas que escutamos em festas frequentadas por quem conheceu seus pais há 30 anos.

Uma coisa, ao menos, é certa: eu sigo contando histórias e sei que minha irmã, que também tem muitas histórias para contar, permanece escutando-as.

*Alberto Fuguet – Escritor chileno, nos anos 90 fundou o movimento McOndo e é autor de, entre outros, Baixo Astral e Missing. Atua também como cineasta. Esse texto aparece no livro Tránsitos – Una cartografía literaria, que faz um balanço da carreira do escritor, lançado pela Ediciones UDP. A tradução do original em espanhol é de Schneider Carpeggiani. A versão traduzida foi publicada na editora Cesárea.