
Tenho 79 anos. O romance Stella Manhattan, 30. Publiquei-o quando tinha 49 anos. Desde 1936, ano em que nasci no dia 29 de setembro, a lógica do três e de seus múltiplos sempre definiu a mim e aos produtos. O nove pelo viés do número três interfere na lógica de Stella. O romancista ganhava careca e cabelos brancos, o romance queria ser sexy. O jeito foi apelar para a memória. Localizar a trama nos anos 1960. O primeiro capítulo se abre no dia 18 de outubro de 1969. A rebelião de Stone Wall, hoje marco histórico do movimento gay, ainda era manchete. Escrito em tempos de AIDS, Stella Manhattan é nostálgico da revolução. A dedicatória dupla — a Auggie e a Minnie — homenageia amigos mortos.
Velhice e infância são inseparáveis — disse-nos Machado de Assis. Basta atar as duas pontas da vida para desdobrar Dom Casmurro em Bentinho e escrever a solidão amorosa que estoura em Memorial de Aires (ou em Mil rosas roubadas). Difícil é conciliar velhice e idade da razão. Expulso do núcleo vital da experiência pelo peso dos anos, você entra escarrado na idade em que a voz da Morte recita a contagem regressiva. Da desarmonia origina-se um objeto abjeto, ao mesmo tempo colorido, brincalhão e derrisório, semelhante a escultura de Niki de Saint-Phalle à porta do Beaubourg, em Paris.
Aparentemente, o protagonista do romance se divide em dois: o jovem Eduardo e Stella. Na verdade, se divide em três. Importa é a intersecção de um no outro, do Outro no Um. Importa o eixo cilíndrico da dobradiça que destranca e abre a porta Stella até então reprimida pela esquadria Eduardo. Computa-se o três — a “diferença simétrica” entre dois, como se diz na teoria dos conjuntos.
As duas placas da dobradiça e seu eixo dizem que a identidade (do ser) está para ser montada/desmontada como os Bichos, de Lygia Clark, ou as Poupées (Bonecas), de Hans Bellmer. A identidade de gênero não é fixa nem imutável. É nômade. Coincide, no romance, com o escancarar da porta da Experiência e se figura como em quadro do pintor Francis Bacon. Em termos numéricos e demasiadamente humanos, identidade é uma questão de diferença simétrica. Representa-se pelo número três ou pelo nove e pode dar um pulo até o 69.
Stella Manhattan é proverbial. É juvenil, intuitivo, lúdico, estiloso (camp) e tem uma moral falocêntrica (a revolução comportamental a reclamava então) que pode ser lida na batida do samba “Quem cochicha o rabo espicha”, cantado por Jorge Benjor. Não fique pelas esquinas, cochichando. Fale. Quem fala o phalo espicha. Passo a seguir Jorge, ao pé da letra: saia pelo mundo afora fazendo amizades, conquistando vitórias. Também não fique pensando que essas vitórias serão fáceis. Pois nesta vida de perde e ganha, ganha quem sabe perder. Perde, quem não sabe ganhar. Por isso você precisa aprender a jogar.
Paralelamente, há em Stella Manhattan a caracterização do homoerotismo como desperdício (de sêmen). Gasto improdutivo, conquista do supérfluo. Desejo, transbordamento e esbanjamento da libido. Excesso de energia e “desregramento de todos os sentidos” (para retomar o verso de Rimbaud). Eis o homoerotismo como elogio à Alegria e à Vida, para atualizar os conceitos nietzschianos. O gasto improdutivo coloca contra a parede dos bons sentimentos conservadores e religiosos a noção de promiscuidade, aceita até hoje para caracterizar o universo gay.
Dentro do livro, pedi ajuda ao francês Georges Bataille. Recorri à noção de desperdício, desenvolvida por ele nos livros A noção de despesa e A parte maldita. Bataille fala do desperdício de energia, do gasto improdutivo como movimento em direção ao sagrado. Ao desdobrar o gasto como algo de improdutivo, o eixo cilíndrico da dobradiça faz saltar à vista a perda de finalidade nas trocas capitalistas. Fala-se do gasto sem retorno para que salte à vista o dom. Troca-se o seis por meia dúzia. A sexualidade adquire outro e pleno sentido. Nega o bumerangue da fertilidade que garante o retorno produtivo da troca sexual. Georges Bataille dá o exemplo das joias: não é suficiente que sejam belas e deslumbrantes. Seria possível substituí-las por falsas. O importante é que signifiquem o sacrifício de uma fortuna pelo amor. O sacrifício do corpo pelo prazer.
À voz de Bataille acrescento a de Gaston Bachelard: “A conquista do supérfluo proporciona uma excitação espiritual maior do que a conquista do necessário. O homem é uma criação do desejo e não da necessidade”.
Não estranhem notações numéricas e citações de artes plásticas neste depoimento. Tenho medo de ser um artista comovido, tenho medo de ser um artista que comove. O medo, como em Clarice Lispector, não é sentimento que imobiliza. Se meu medo não imobiliza, leva a quê? Ao despertar da sensualidade no leitor. De que forma despertá-la? Através duma escrita ficcional que o atinja como Lygia Clark o atinge, pedindo-lhe que monte (como se monta a um cavalo, no universo de Clarice) o “bicho”. Espero atingi-lo, leitor, pedindo-lhe que trabalhe o contato epidérmico dos cinco sentidos com a escrita. Essa sensualidade, que se exige do espectador da obra de arte, são os corpos que eu gostaria de ter exposto em Stella Manhattan. Palavras se escrevem na página mais para serem vistas do que lidas.
Cito um trecho do romance: “Quero fazer um poema, um livro, onde a apreensão pelo tato seja o que importa. Pedir ao leitor que pegue as palavras com as mãos para que as sinta como se fossem vísceras, corpo amado, músculo alheio em tensão. Que as palavras sejam flexíveis, maleáveis ao contato dos dedos, assim como antes, na poesia clássica, elas eram flexíveis e maleáveis quando surpreendidas pela inteligência. Quero que a polissemia poética apareça sob a forma de viscosidade. Que não haja diferença entre apanhar uma palavra no papel e uma bolinha de mercúrio na mesa”.
Fechada a porta da leitura, que Stella Manhattan seja jogado para um canto. É o que André Gide aconselha em Os frutos da terra: “Quando me tiveres lido, joga fora este livro — e sai. Gostaria que te tivesse dado o desejo de sair — sair do que quer que seja e de onde quer que seja, de tua cidade, de tua família, de teu quarto, de teu pensamento. Não leves meu livro contigo”.