Talvez este texto não precisasse ser escrito. Gonçalo M. Tavares já produziu 34 instigantes notas refletindo sobre seu próprio livro, em um posfácio que propõe leituras, chaves (que abrem e nunca fecham, é bom dizer). As reflexões do autor já cumprem um papel de ampliar o livro, sugerir caminhos vários para desdobrá-lo. Porém, Gonçalo mantém-se fiel à utopia de criar máquinas de pensar. E eis o que ocorre em Matteo perdeu o emprego: a máquina funciona. Leio e surgem ideias, além ou a partir das propostas no posfácio. Pensamentos encadeiam-se uns nos outros a partir do livro, e meu texto que, talvez, não precisasse ser escrito, enfim, é escrito.
Só por brincadeira, talvez pudéssemos lembrar o fator Kevin Bacon. Na primeira parte do livro (são duas, uma com 25 narrativas; outra com as citadas 34 notas ensaísticas refletindo sobre o livro), lançado no Brasil pela Foz, um personagem se liga a outro, que se liga a outro e faz a coisa andar até chegar no personagem-título. Fator Matteo. A quantos personagens estou de Matteo? Por que não ir por aí?
Porque Matteo perdeu o emprego é mais que a estrutura. E propõe mais que um jogo de encaixe.
Embora seja verdade que apenas a estrutura do livro somada a algumas histórias já bastaria pra pensar e pensar sobre nossa vida contemporânea e tão autossuficiente com fones de ouvidos full time, one man cars e embalagens pequeninhas de leite pra não azedar na geladeira solteira. A obra (não posso chamar romance, contos, novela, obrigado, Gonçalo) na simples proposição (muitas vezes vista no cinema) de curtas narrativas, cada uma com um personagem que vive seu pequeno périplo e, súbito, toca em outro (como em máquinas de motocontínuo) que segue sua própria micro jornada até tocar em outro, faz olhar com mais seriedade pro fator Kevin Bacon. Pra cidade. E pro mundo. Você não está sozinho, e não é porque o Obama pode ler meu texto enquanto escrevo, ou ver seus e-mails. É porque todos nos afetamos. A vida é ligação, mesmo involuntária, parece dizer Matteo perdeu o emprego.
Pensemos no trecho protagonizado por Diamond, onde se lê “Quem fazia aquilo? Será que naqueles andares do topo não se tinha a noção de que embaixo estava uma escola, agora praticamente soterrada?”. Mais do que explicitar a óbvia relação da greve de lixeiros (tão Brasil 2014) que gera montanhas de lixo crescentes porque outros seguem produzindo lixo, mais do que essa óbvia ligação entre vidas urbanas, creio que o texto conduz a algo mais amplo e central nos dias que correm: teu gesto individual e inconsequente sempre será coletivo e terá consequências. Por mais que se diga que vivemos o império do indivíduo, é preciso recordar: há mais de 7 bilhões de indivíduos querendo imperar. Não é um Matteo isolado quem perde o emprego; nem é o outro quem está soterrado no lixo. É alguém como eu e, muito provável, tenho parte nisso.
Perceber-nos assim, ligados, remete a uma ideia presente na parte ensaística do livro: hierarquizar cidades como em uma tabela periódica. Esta simples imagem e a mecânica de ligações, me faz ver cidades (ou sociedades) como elementos químicos. Mais do que isso, elementos instáveis, muito instáveis, porque resultados das nossas ligações, desde as mais sólidas (famílias, amigos) até as mais efêmeras (o sujeito em quem esbarrei — ou não — na rua). Cada contato gera os fios das ligações que dão existência ao que chamamos rotina, cidade, cotidiano. No limite, Matteo perdeu o emprego me traz a seguinte ideia: cada um de nós como pequeno elemento químico pairando na constituição desse corpo-cidade.
Há um momento que ilustra bem isso: no texto Goldstein e a tabela periódica, lê-se que o personagem Gottileb traz uma tabela periódica marcada em braile nas costas: “quando Gottileb se despia à frente de outras pessoas ninguém percebia o que ele tinha nas costas. O que era evidente para as mãos do cego Goldstein, [...] para os outros [...] não era verdadeiramente uma tatuagem pois não tinha desenhos, palavras ou traços”. Leio e penso em como, dependendo do que oferecemos, formamos com cada pessoa um elemento novo; e também sobre a volatilidade das nossas identidades. Apesar de o RG dizer que temos uma só identidade e, muitas vezes, sofrermos tentando acreditar ou encontrar tal unidade, é evidente que se é um no trabalho, outro em casa, no trânsito, no casamento. Variamos como o hidrogênio ou o oxigênio, de acordo com as ligações. E essas fórmulas que vamos compondo constituem lógicas que formam a matéria na qual vivemos.
A Arte Como Experimento
E então penso na cidade e nas relações sociais como ligações de elementos (mesmo o estar passivamente ao lado de alguém no ônibus); e penso depois na arte contemporânea, aliás, no fazer artístico em geral.
Explico.
Gonçalo tem feito aproximações com a arte contemporânea. Seu livro mais recente, Atlas do corpo e da imaginação, traz uma íntima parceria com Os Espacialistas (coletivo português de artistas/fotógrafos/arquitetos), em que reflexão, texto e visual dialogam, compõem objeto e significado. Creio que o mesmo se dá em Matteo. Vejo um livro feito (em especial se o leitor puder ler a edição lusa, que traz no miolo fotos conceituais como as da capa, produzidas pelos espacialistas Diogo Guimarães e Luis Baptista) não só de texto, mas de imagem, tabelas e conceitos. Porém em Matteo arrisco dizer que há mais do que uso não meramente ilustrativo de imagens e uma parceria com artistas. Em alguns trechos, vejo ensaios para performances artísticas. Cito o personagem Baumann que recolhe lixo (embalagens, cascas de fruta etc.), limpa, deixa-o como novo e recoloca, na surdina, de volta no mundo em prateleiras de supermercado. Também existe Kashine que espalha a palavra Não por livros, documentos, fachadas, nas costas de pessoas, onde houver espaço, gerando alterações e novas visões do mundo. Mesmo o já citado Gottileb com a tabela em braile nas costas remete à body art.
Pois estes personagens e suas intervenções me levam a propor: neste contexto em que somos elementos em constantes ligações (a maioria passiva ou inconsciente), o artista contemporâneo (performer, escritor, escultor) surge como aquele com consciência da sua-nossa condição elementar e das ligações e efeitos que exercemos sem parar uns sobre os outros. E, portador dessa carga específica, o artista interfere intencionalmente nas ligações, desestabiliza o processo químico da rotina, para que possamos perceber o processo. Fazer arte como experimento com as ideias e a rotina. Isso vale pra qualquer fazer artístico, não precisa ser obra ultraconceitual. O simples retirar-se, conscientemente, da lógica produtiva do horário comercial pra escrever uma ficção e tentar impô-la, ou oferecê-la, como alternativa pra ver o real, é refazer as próprias ligações. É tentar interferir nas ligações alheias. O artista, o escritor, visto como cientista de si mesmo, ou molécula-terrorista tentando implodir os elementos mais estáveis do corpo. Arte: interferência na lógica elementar das coisas, das ideias, da linguagem. Espécie de câncer que pode ser benigno no corpo chamado humanidade.
“Depois de tudo, continuavam humanos”
Falo em corpo chamado humanidade. Leio em Matteo “continuavam humanos”. E pergunto: o que é humano? Ou melhor, dou os créditos, Matteo perdeu o emprego pergunta muitas vezes: O que é ser humano? Pergunta, traz hipóteses e novas dúvidas.
Por vezes, o conjunto de histórias parece um bestiário de gentes. Cada qual com sua estranheza, do homem com copropraxia, aos marinheiros do barco da razão, passando pelo sujeito que recolhe e armazena baratas, todos são humanos. Mas eu, o leitor também humano, estranho todos eles, um a um, como o fofoqueiro na janela diagnosticando o modo como um caminha, a outra se veste, alguém masca chiclé. Estranho as formas de ser humano, como se eu fosse a medida.
Em paralelo com os diferentes modos de ser humano do livro, está a fortíssima imagem da capa (potencializada na edição portuguesa pela sequência interna), que exige atenção. Não apenas por ser porta de entrada da obra. Mas devido à parceria de Gonçalo com os artistas que a conceberam. É evidente que faz parte dos significados do livro. E é um manequim (Matteo) com uma bizarra e assustadora humanidade. Imagem-síntese que me põe em suspensão numa corda-bamba entre dois polos de humanidade: de um lado os personagens, gente esquisita, individualizada; do outro, o manequim tão gente.
E nessa corda bamba, indagando o que é ser humano, acabo notando a constante presença da ideia de ordem ao longo do livro, desde a aparição dos personagens em ordem alfabética, “Em Matteo[...]não há hesitações no itinerário da narrativa porque felizmente existe a ordem alfabética”, até o interesse de diversos personagens por formas de repetição, sistema, ou controle da vida. Um exemplo: Ashley corre todos os dias ao redor de uma rotunda de trânsito, “Enquanto estiver na rotunda não estou perdido, pelo menos não volto atrás”.
Quer dizer: será que, além da genética, continuar humano é, apesar de nossas estranhezas, manter o apego desesperado por uma ordem, um regramento que faça este ser racional, superior a todos os outros animais instintivos, poder seguir em frente e viver, vejam, sem pensar? “Qualquer repetição de um acto por mais absurdo que seja, rapidamente é absorvido: o excepcional transforma-se [...] em certas circunstâncias bastam dias para que o monstruoso e o informe se faça normalidade e hábito”, diz o livro. O absurdo, desde que esteja em uma ordem — reconhecida por mim, que fique claro — está bem. Apesar de toda a nossa estranheza interna (de perto, ninguém é normal) talvez estejamos próximos do manequim da capa do livro, vivendo a partir de modelos e como modelos, reproduzindo posturas, congelando comportamentos esperados, que fazem ir sempre pra frente como Ashley na rotunda, ou Sísifo no monte. Tudo em ordem.
Mas não.
Ninguém vai sair da leitura com uma definição no colo. Quando alcanço algo parecida com “domesticar com a suavidade aparente de um nome”, logo vem nova questão: quem define a confortável ordem? O alfabeto? Toda ordem é questão de fé, seja na lei, seja na religião, seja na ciência. A uma pessoa ignorante da ordem alfabética, esta ordem arbitrária passaria conforto, lógica? Creio que não. E então?
Assim como personagens de Matteo, as perguntas ligam a perguntas que ligam a perguntas.
Aliás, na outra obra de Gonçalo que citei, o Atlas do corpo e da imaginação, leio “o que nunca termina de ser respondido é o essencial”. Gonçalo, artista que é, nos põe em desconforto em Matteo. Lembra que “conhecer é isto: cartografar a desordem”, não é se apaziguar com certezas, não é “Estar atento às casas decimais apesar de estar rodeado do que é podre”.
Pois se disse que meu texto talvez não precisasse ser escrito, fecho afirmando queMatteo perdeu o empregoé texto que precisava ser escrito. Porque pede pra, mais do que ser lido, ser pensado, questionado.