Janio Santos sobre foto de divulgação

 

Hay golpes en la vida, tan fuertes… ¡Yo no sé!

Golpes como del odio de Dios

(César Vallejo)

 

No dia 14 de maio de 2011a escritora colombiana Piedad Bonnett (Medellín, 1951) recebeu um desses golpes aos quais César Vallejo faz alusão em seu poema “Heraldos Negros”. Aos 28 anos, Daniel Segura Bonnett, seu filho, lançou-se ao vazio do quinto andar do prédio onde morava em Nova Iorque.

 

“Renata, minha filha mais velha, me deu a notícia por telefone duas horas depois, com quatro palavras, das quais a primeira, pronunciada com voz vacilante, consciente do horror que desataria do outro lado, foi, está claro, mamá. As três restantes davam conta, sem rodeios nem piedosas mentiras, do fato, do dado simples e raso de que alguém infinitamente amado se foi para sempre, não voltará a olhar-nos nem a sorrir-nos”, narra a escritora em Lo que no tiene nombre (2013, inédito no Brasil).

 

Mamá, Daniel se mató”, anunciou a voz do outro lado da linha. Era o início de um processo de luto que culminaria na publicação de um relato que é um testemunho, uma declaração de amor e uma tentativa de responder às perguntas que, “como borboletas enlouquecidas voando em círculos”, pairavam sobre a cabeça da poeta (prêmio Casa de América de 2011) desde aquele telefonema.

 

“Tomei a decisão de escrever esse livro dois meses depois da morte do Daniel”, me escreve Piedad, de Bogotá, onde mora. “Senti medo, mas soube que uma vez que essa ideia passou pela minha cabeça já não havia mais volta. Eu estava condenada a contar”. Em dez meses construiu uma prosa poético, tão bela quanto triste, onde conta o calvário pelo qual ela e o filho passaram na tentativa de tratá-lo de uma doença mental. Durante dez anos o pintor Daniel Bonnett, entre altos e baixos, crises e momentos de “vida normal”, conviveu com a esquizofrenia, até que decidiu colocar fim à angústia. Foi vencido pelas vozes e visões que o acompanharam por anos e anos. “Intuí que nossa luta e nossa derrota traziam elementos de força universal que interessariam e comoveriam a muitos leitores”, explica a escritora.

 

As borboletas em forma de pergunta carregavam questões sobre os últimos minutos de vida do filho: foi uma decisão tomada de impulso ou meticulosamente planejada? O que sentiu no instante final? Sofreu muito? Em quem pensou? Em seu livro, Piedad também se pergunta sobre as razões que a levaram a narrar aquela perda. “Porque contando minha história talvez conte muitas outras. Porque apesar de tudo, da minha confusão e meu desalento, ainda tenho fé nas palavras (...) Mas, sobretudo, porque, como escreve (Juan José) Millás, a escritura abre e cauteriza ao mesmo tempo as feridas”, escreve Piedad nas últimas páginas de seu livro.

 

Por que contar essa história? Por que transformar a dor pessoal em literatura? Essas indagações o escritor e jornalista Francisco Goldman (Boston, 1954) também teve que responder. Seu argumento é simples e irrefutável. Se fosse alpinista, desafiaria a morte escalando o Everest; mas como é escritor, narrar é sua ferramenta para processar o vivido e sofrido.

 

No caso de Goldman, o golpe como do ódio de Deus veio do mar, em forma de onda. No dia 24 de julho de 2007, aos 30 anos, sua esposa, a jovem escritora mexicana Aura Estada fraturou a coluna numa praia do Pacífico, e morreu um dia depois num hospital da Cidade do México. Quando a conheceu, o filho de uma guatemalteca com um estadunidense descobriu que havia chegado aos 50 anos sem nunca ter amado. Veio a paixão, o casamento e os planos de uma vida em conjunto. Até uma absurda onda colocar fim a tudo. “Cada segundo que passa no relógio, tudo o que faço ou vejo ou penso, tudo isso, se compõe de cinzas e fragmentos calcinados, são as ruínas do futuro. A vida que íamos ter, o bebê que íamos ter, os anos que passaríamos juntos, como se essa vida tivesse acontecido há milhares de anos, numa cidade secreta”, escreve em Say Her Name (2011, inédito no Brasil). Embora repita que seu luto foi feito nas terapias e reforce que escrever não lhe trouxe nenhum alívio (“escrevi num absoluto estado de loucura”), Goldman passou três anos revivendo e escrevendo sua história de amor e de perda. “Ou escrevia ou me entregava ao abismo”, resume.

 

O processo de luto de Francisco Goldman foi longo e doloroso. O escritor foi diagnosticado com graves transtornos mentais, alucinações e depressão. Durante meses esteve entregue, alcoolizado e flertando com a morte. Até que despertou em um hospital, sem saber muito bem de onde vinha os ferimentos que trazia. Decidiu que, em memória da ex-mulher, iria viver com dignidade. “Senti que tinha que fazer algo belo para a Aura, ela era muito exigente”, relata. Além da busca por explicações, seu livro é também um tributo ao ser amado, com quem mantinha uma relação amorosa e literária. “Quero minha amiga de volta, pensei, falávamos através de sinais e formávamos uma grande equipe. Talvez eu esteja farto de que as pessoas não entendam como é tudo isso, ainda que não desejo a ninguém ter que vivê-lo. Apaguei o cigarro da Aura e acendi outro. Não a soltes, se a tens. Não a soltes, pensei, esse é meu conselho para todos os vivos. Aspirá-la, coloca teu nariz em seus cabelos, aspirá-la profundamente. Diz seu nome. Sempre será seu nome. Nem sequer a morte pode arrebatá-lo. O mesmo nome, tanto viva quanto morta, para sempre. Aura Estrada”, anota no capítulo que dá nome a seu livro. No ano passado entrevistei Goldman e uma das últimas perguntas que lhe fiz foi se já se sentia “recuperado”, se sentia que seu processo de luto havia chegado ao fim. Sua resposta foi uma das coisas mais devastadoras que escutei na vida: “O amor que tive com Aura é parte de mim. Estou tranquilo agora, bem, mas ainda há momentos horríveis, desses em que, de repente, lembro-me da chegada da onda, da morte, e estou cheio de incredulidade. Não pode ser, não é possível. O corpo se enche de adrenalina, e você chora. Isso pode acontecer a qualquer momento, e isso também fará parte de você, para sempre.” A morte de Aura Estrada, assim como o amor que construíram, é algo impossível de ser apagado da vida de Francisco Goldman. Foi o que ficou para mim daquela entrevista.

 

“Como não tive filhos, o mais importante que aconteceu na minha vida foram meus mortos, e com isso me refiro à morte dos meus seres queridos”. São as palavras iniciais de La ridícula idea de no volver a verte (2013, inédito no Brasil), da espanhola Rosa Montero (Madri, 1963). O livro, como os anteriormente citados, é um híbrido entre o testemunho e o romance; um relato onde se entrecruzam o diário da polaca Marie Curie, uma brilhante e revolucionária cientista do início do século passado (duas vezes prêmio Nobel, de Física e de Química), com as reflexões da escritora espanhola. Em comum ambas tiveram que enfrentar a perda de seus companheiros de décadas. Curie narrou seu processo de dor num diário escrito durante um ano. Montero partiu do texto íntimo da cientista para criar seu relato, que termina por ser uma homenagem a essa genial mulher que há um século enfrentou preconceitos e desconfianças; ao mesmo tempo, é um texto permeado pelo reflexo de – e pela reflexão sobre — uma perda. “Os humanos não sabemos o que fazer com a morte. Grande impensável manejável cruel horrível. Assim que, como não sabemos o que fazer, fabricamos túmulos, dólmens, necrópoles megalíticas, pirâmides, sarcófagos, panteões, túmulos coletivos, túmulos individuais, sepulturas, monumentos memoriais, lápides, criptas, nichos, ossuários, solenes cemitérios. O tempo, o dinheiro, o esforço e o espaço invertidos em construir para os mortos teria podido melhorar bastante a vida dos vivos. Ainda que, se pensarmos bem, o que importa? Esses vivos não eram mais do que projeto de cadáveres.”

 

Não sabemos, nunca saberemos o que fazer quando perdemos alguém que era parte de nós. Ao reconstruir uma vida que já não existe os literatos travam uma batalha não contra a morte, que é invencível, mas contra o esquecimento. Piedad Bonnett conversou com amigos e namoradas de Daniel porque queria conhecer melhor o filho, queria retratá-lo bem. Goldman quis recuperar a infância de Aura, a parte da vida da amada que não pôde conhecer. Montero também se preocupou com quem foi seu marido antes de que o fosse. “Desde que morreu (Pablo Lezcano) não só tenho saudade da sua presença, seguir vivendo com ele e vê-lo envelhecer, senão também sinto falta de seu passado. As muitas vivências que eu não conheci”, escreve.

 

Além de querer saber quem foi a criança Aura Estrada, Goldman também se perguntou sobre o possível futuro de sua amada. “Era meu destino entrar na sua vida quando o fiz ou me enfiei onde não devia e torci seu caminho predestinado?” Aura deveria se casar com alguém mais ou menos da sua idade (tinham quase 25 anos de diferença), de repente um colega da universidade ou o rapaz que sempre a olhava no restaurante, se pergunta Goldman. Terá sido ele a onda que matou Aura, questiona-se. Um dia, no “primeiro outono depois da morte de Aura”, o escritor saiu para dar um passeio, parou para esperar que um semáforo abrisse e viu uma senhora bastante velha do outro lado da calçada. De repente, o peso do mundo caiu sobre sua cabeça. “Era a típica anciã com os cabelos brancos e bem penteados. Estava um pouco encurvada e a expressão pálida do rosto era doce e suave (...) A ideia foi como uma bomba silenciosa: Aura nunca chegaria a saber o que significa ser velha, nunca chegaria a ver a vida em retrospectiva. Pensei no injusto daquilo e na adorável e satisfeita velhinha que, com toda certeza, Aura estava destinada a ser”.

 

Nos relatos aqui citados fala-se dos cheiros, das imagens e das situações cotidianas que funcionam como detonador para destapar as lembranças e demonstrar que, como escreveu Mario Benedetti certa vez, o esquecimento está cheio de memória. “Quando morre alguém com quem conviveu muito tempo, você não só fica tocado de uma maneira indelével, senão também o mundo inteiro fica tingido, manchado, marcado por um mapa de lugares e costumes que servem de disparador para a evocação, amiúde com resultados tão devastadores como o estourar de uma bomba”, anota Rosa Montero. “E assim um dia você está vendo com toda tranquilidade uma revista vira uma página e zás, dá de frente com a fotografia de uma das maravilhosas igrejas de madeiras medievais da Noruega, sim, aquelas incríveis construções rematadas por dragões que mais parecem saídas de um passado viking que cristão. E você esteve ali com ele naquela viagem deliciosa”.

 

O esquecimento é fundamental para sobreviver à perda. Ninguém suporta recordar a todo momento quem já não está, é peso demasiado grande para ser carregado por muito tempo. Uma das funções da memória é esquecer, dizem os psiquiatras. Um processo de luto bem sucedido — se é que se pode falar em sucesso, em certo e errado nesses casos — é aquele em que as lembranças do ser que se foi não são demasiado constantes e, quando aparecem, não vêm acompanhadas de angustia, dor e vazio. Francisco Goldman conta que uma das receitas que melhor serviram para tentar cruzar a penumbra foi a de um humilde mexicano que lhe recomendou “uma certa resignação” diante do ocorrido. Muitas vezes a vida é incompreensível. Aceitar pode ser a saída para superar, como explica Rosa Montero. “Já digo que a recuperação não existe: não é possível voltar a ser quem eras. Existe a reinvenção, e não é má coisa. Com sorte, pode ser que consiga se reinventar melhor do que antes. A fim de contas, agora você sabe mais”.

 

A ridícula ideia

Encontrar alguma coerência, alguma explicação, parece ser esse um dos — talvez o principal — motivos que levam alguém a escrever sobre a dor que enfrenta. Goldman e Bonnett contam que devoraram dezenas de manuais, ensaios e romances que falavam da morte. “Mas como é possível que não esteja? Essa pessoa que tanto espaço ocupava no mundo, onde se meteu? O cérebro não pode compreender essa desaparição para sempre. E que demônios é sempre? É um conceito que não é humano (...) Não vê-lo nunca mais é uma piada de mau gosto, uma ideia ridícula”, escreve Rosa Montero. Piedad Bonnett também sentiu-se inundada de descrença. “A sensação, abrumadora, é de estranheza, de incredulidade. Posso ser eu essa pessoa que viaja para enterrar um filho? Sim, Piedad. É um fato. Aconteceu. E nunca palavras tão precisas soaram tão irreais.” Goldman é ainda mais direto, mas não menos lacerante. “Tudo isso está de verdade acontecendo, meu amor? De verdade estou de volta ao Brooklyn sem você?”

 

Os manuais sobre o luto explicam que essa reação, essa incredulidade diante do ocorrido, são os sintomas da primeira fase do processo desencadeado por uma perda: a negação. O ser querido deixa de existir, mas o mundo segue girando, constatou Piedad Bonnett. “Teu filho morreu e deves fazer as malas e viajar até onde está seu cadáver”. E tomar decisões como se doar ou não os órgãos, e o que fazer com o corpo. A opção que a colombiana e a família fizeram foi pela cremação porque, como disse Javier Marías — e o cita Bonnett —, “não há nada mais triste que um túmulo que não recebe visitas”. As cinzas foram lançadas num parque em Nova Iorque. Os rituais são necessários, explica Rosa Montero: “Sim, há que fazer algo com a morte. Há que fazer algo com os mortos. Há que colocar-lhes flores. E falar com eles. E dizer que os amamos e que sempre foram amados. Melhor dizer ao vivo; mas, se não, também podes dizer depois. Podes gritar para o mundo. Podes escrever um livro como este”. Escrever um livro para vomitar o que se sente. “Por fim tive a oportunidade de tocar com meus lábios a linda orelha de Aura para agradecê-la pelos anos mais felizes da minha vida e para dizer que nunca deixaria de amá-la. (...) Beijei sua bochecha que já era como argila fresca. Meus soluços devem ter sido ouvidos por todo o hospital”, anota Goldman.

 

O que fazer quando um desses golpes que “abrem vales escuros nos mais ferozes rostos e nos lombos mais fortes”, como escreveu Vallejo, nos atinge? A receita dos literatos é a literatura. Ler e escrever sobre o incompreensível, desafiar o indizível, e produzir arte. Apesar da dor, encontrar beleza na morte. Fazer da perda algo mais do que a angústia, o desespero, a simples crueldade. “Eu sempre soube que a dor era capaz de engendrar enorme beleza”, me diz Piedad, “e que a arte sempre se alimentou dela. Foi o que eu quis fazer”, acrescenta. “Os humanos nos defendemos da dor sem sentido adornando-a com a sensatez da beleza”, escreve Rosa Montero em seu livro. Uma beleza trêmula, completa a escritora. “Como uma velha borboleta batendo lentamente umas asas que se desfazem no ar”.