Ilustração por Karina Freitas

 

São tempos difíceis para ser romântica. O mundo lá fora gritando urgências, decisões políticas da pessoa pública e privada, engole logo esse café que tem uma pilha de coisa pra resolver, chove lá fora e eu deixei a janela aberta, carteira de habilitação pra vencer, versos de autoajuda pintados no muro, faça isso, ame aquilo, odeie seu ódio, sinal fechado, e não abre, não abre, primeira marcha, um pé na embreagem e o outro no freio, não abre. É por isso que eu quero falar do Carnaval. Do Carnaval em Olinda e no Recife. Preciso conseguir lidar com o jogo das demandas e recusas do mundo e resgatar algum tipo de romantismo na humanidade.

 

Nas convulsivas ladeiras vou me benzer e me incriminar. Sagrado e profano no mesmo corpo em nome do caos tão subjugado às ordens e aos sistemas. Preciso da ladeira da Sé atulhada de gente para me lembrar que no meio dessa euforia de sobreviver, existe o arrebatamento de viver em euforia. Careço do pandemônio e de jogar tudo pro alto (confetes, serpentinas e animosidades) e deixar as coisas em suspenso. Mas entendam, não quero falar do Carnaval-solução, da válvula de escape. Pois Carnaval, ao menos esse que eu conheço, devia ser o caminho. É por onde nós precisávamos estar passando neste momento, todos os dias, todos os meses, todos os anos.

 

Há quem diga que o evento só é bom porque dura pouco e acontece apenas uma vez a cada ano. Pois eu proponho um debate sobre viver em folia pelo resto dos momentos que ainda cabem a 2014. Não quero com isso dizer que deveríamos todos esquecer das questões que precisam ser discutidas, dos problemas a serem resolvidos ou de abjurar tudo que sério. Pelo contrário. É de seriedade que falo.

 

Certa de que a sanidade está no devaneio e no delírio, sei que o Carnaval é esse jeito torto – ainda bem – de meditar no berro sobre ser mais sincero com as nossas próprias urgências e insurgências. O mundo pode esperar enquanto você dá um beijo de boca em causa própria. E no meio de uma multidão que, entre o Zé da Cachaça e a V. Ex.ª Sr. Dr., estão cheios desse tipo de demanda, há de se aprender algo com a energia positiva.

 

Posso assinar o compromisso em cartório: garanto que se todo esse mói de sete bilhões de pessoas se deixasse ser vencida pela catarse de estar junto na lama ou no lança-perfume pela simples razão de não precisar ter razão, teríamos menos muros, grades e varandas gourmet. E se elas entendessem que o Carnaval não precisa ser somente a fuga, mas sim um movimento social, uma ideia e ideologia, aí meus amigos, seríamos capazes até de resolver a Fome. E falo especificamente desse Carnaval de Olinda e do Recife, porque é nele que vejo acontecer o maior rolezinho em linhas curvas da América Latina. Identifico na bagunça da troça que se mistura ao baque virado que cruza com o frevo de bloco a ritualização de um caos produtivo, criativo e pulsante. É uma multidão de desejos à flor da pele. Os gregos escreveram e a gente esqueceu. Que o Caos sempre foi a primeira forma de consciência divina.

 

Fico pensando então na mulher que foi à praia, abriu os braços diante do mar e, nesse momento, morreu atingida por um raio. Podia ser o começo de um romance. Mas aconteceu este ano em Guarujá, São Paulo. Ela não tem nada a ver com o Carnaval. Mas tem tudo a ver. Poetizo sua morte. Existem muitos elementos bonitos na partida. Não tenho informações sobre como viveu seus trinta e poucos anos. Mas tendo em conta que ela abriu os braços justamente antes de falecer, vejo nessa dramaticidade uma redenção semelhante àquela de quando achamos que os três, quatro, cinco dias de gozo podem salvar nossa vida do tédio. Não salvam. É preciso abrir os braços diante do mar, da rua e até mesmo do cimento. Pirar coletivamente na praça ou no shopping. Sempre que for (im)possível. Ou melhor, estabelecer o desvario e a êxtase como prática diária. Ver o mundo através dessa fantasia para negociar a realidade sem dureza.

 

Faço minhas as palavras do diretor fictício que fala em nome do diretor real de Tatuagem. Um filme, essencialmente, sobre essa necessidade antropológica e política do Carnaval como um caminho e não apenas como um fim em si mesmo:

 

“A porta para o futuro foi escancarada por experiências contínuas. E quando todos os jovens estiverem velhos e todas as dores estiverem contidas, estamos no futuro. Estamos dando um rolê no futuro com aquilo que o ‘homenino’ vai ver e trazer até nós. Trazer as cicatrizes que caminharam até tão longe. Cicatrizes. Bola de cristal. Com quantos olhos vamos nos desvigiar depois de abolido o sexo? Pergunta o argonauta tonto e envelhecido. E só restará um símbolo que representará a igualdade. Paraíso. Paraíso. E a heráldica da pobreza terá sido varrida pra baixo das ideias mesquinhas, das divisões comuns.”

 

Pois então vou ali dar um rolê na confusão do presente porque, já diria o homenino sabido, desorganizando posso me organizar. Bandeira branca Olinda, eu peço que você me espere. Porque este ano tô chegando.