“me provo na linguagem em que comprovo
O peso dos meus mortos” -
Alejandra Pizarnik
Oscar não era um daqueles caras dominicanos populares, que se davam bem com as mulheres, o garoto de ouro do colégio ou o filho de imigrantes que soube driblar o triste folclore do exílio. Excessivamente gordo, portava uma cabeleira estranha e, para piorar, era um tremendo nerd do gueto no fim do mundo (leia-se os subúrbios para imigrantes de Nova Iorque). Ainda assim, o escritor Junot Díaz, 44 anos, nascido em Santo Domingo, na República Dominicana, frisa que Oscar é herói, o “nosso herói”, logo na primeira linha do romance A fantástica vida breve de Oscar Wao, ganhador do Prêmio Pullitzer de Ficção em 2008.
O livro traz a descrição pormenorizada de uma solidão abismal, e assim tão anônima e ironicamente banal em todos os seus gestos, que a única forma de prosseguir em frente é creditarmos os fatos à existência de fukú — maldição (pelo jeito!) africana que cruzou o oceano, vitimou destinos, que possivelmente matou Kennedy e que as famílias, até aquelas das mais isoladas republiquetas latino-americanas, juram sofrer suas consequências até nos correntes tempos de wi-fi e McOndo.
Para Oscar, fukú era tão concreto quanto a ficção científica que o resgatava da sua existência miserável ou quanto os quilos de gordura que consumia para se manter ereto. Ainda que isolado.E inútil.
“Seja lá de onde viesse e como fosse chamado, comenta-se que a chegada dos europeus à Hispaniola desencadeou o fukú no mundo e, desde então, estamos todos na merda. Pode ser que Santo Domingo tenha sido o porto de entrada, o Quilômetro Zero da Praga, mas agora, cientes ou não, somos todos sua cria. O fukú não é coisa do passado, nem história fantasiosa, que já não assusta. No tempo dos meus pais, era real à beça, algo que gente simples levava fé. A gente conhecia alguém que havia sido devorado por um fukú. Ele pairava no ar”, descreve Díaz, como se estivesse narrando uma reportagem especial da National Geographic.
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Uma das primeiras lições de qualquer estudante de literatura latino-americana reside em compreender a diferença entre fantástico e realismo maravilhoso. O primeiro, mais ligado à tradição europeia, designa um pacto ficcional com o leitor: as personagens demonstram tanto espanto quanto nós diante do inverossímil dos fatos. Somos cúmplices de que aquilo ali jamais poderia ter ocorrido.
O realismo maravilhoso respira de forma diversa. O real maravilhoso não firma o pacto do impossível com o leitor. Rejeita o “era uma vez” das fábulas. Segundo o escritor Alejo Carpentier: “Pois bem, eu falo em real maravilhoso quando me refiro a certos fatos que aconteceram na América, a certas características da paisagem, a certos elementos que têm alimentado minha obra. (....) Quando, na verdade, a única coisa que se deveria lembrar da definição dos dicionários é o que se refere ao extraordinário. O extraordinário não é necessariamente belo ou bonito”
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Junot Díaz está longe de ser catalogado como um escritor de realismo maravilhoso, se pensarmos estritamente na definição exportada, e consagrada, por Gabriel García Márquez e seus imitadores menos talentosos. Nem mesmo é um datilógrafo de fantasias, como Isabel Allende e seus espíritos adestrados. Também não é um detrator dessa geração canônica, como foi um dia o parricida escritor chileno Alberto Fuguet, que nos anos 1990 pregou a necessidade de incendiar todo e qualquer lastro de mágica, urbanizando a América Latina e suas aldeias seculares e suas matriarcas assombrosas.
Díaz é mais sutil ao se sentir, e ao ser catalogado, como estrangeiro: sabe que existe um absurdo na sua condição, sabe que o sotaque é uma carga difícil de carregar sobre as costas. O sotaque reveste e condena quem o enverga pelas ruas de uma grande cidade do fim ou do começo do mundo. É o indício de que em algum momento ocorrera uma quebra, que algo fora partido. O sotaque é fukú. Estar longe de casa, e sozinho, é fukú. E o amor não correspondido nessas condições sócio-políticas e geográficas, obviamente, fukú.
Oscar, como exemplo de grande amaldiçoado, morria de medo de morrer virgem, de ser o único cara dominicano que nunca sentiu a pele de uma mulher contra a sua pele. Era um estrangeiro até em relação ao afeto do que entendia por seu povo.
Estrangeiro e emocionalmente desamparado, Oscar guardava, mas não escondia, sob seu corpo – corpo esse sempre em expansão – a chaga do isolamento de quem não tem qualquer figura paterna (pai-físico e pai-pátria) para guiá-lo pela mão.
“Oscar não conseguia fazer amizade de jeito nenhum, era lesado demais, tímido demais e (se é que se pode acreditar nos garotos do bairro dele) esquisitão demais (tinha o hábito de usar palavras difíceis, aprendidas um dia antes). Já não se aproximava das meninas porque, na melhor das hipóteses, elas o ignoravam e, na pior, soltavam gritinhos e o chamavam de gordo asqueroso! Esqueceu o perrito e o orgulho que sentia quando as mulheres da família o chamavam de hombre”, relata Díaz, cruel, mas ainda assim com ternura pelo seu herói. Pelo nosso herói.
Realismo maravilhoso hoje talvez queira dizer: “não estou mais em casa”. Mas há casa?
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A definição lexical de maravilhoso facilita a conceituação do realismo maravilhoso, baseada na não contradição com o natural. “Maravilhoso é o ‘extraordinário’, o ‘insólito’, o que escapa ao curso ordinário das coisas e do humano. Maravilhoso é o que contém a maravilha, do latim mirabilia, ou seja ‘coisas admiráveis’ (belas ou execráveis, boas ou horríveis), contrapostas à naturalia”, aponta Irlemar Chiampi. O tom maravilhoso de Macondo, em Cem anos de solidão, remete à imagem utópica com que os colonizadores espanhóis enxergaram o Novo Mundo. A significação eufórica da América para o homem europeu, que vai desde o espetacular impacto do Descobrimento até pelo menos os fins do século XVIII, fez-se pela incorporação de mitos e lendas dos testemunhos narrados dos primeiros viajantes. “São frequentes nos cronistas expressões como ‘encantamento’, ‘sonho’, ‘maravilha’, ‘não sei como contar’, ‘faltam-me palavras’ que bem denotam o assombro natural diante do desconhecido”, continua Chiampi.
O Novo Mundo converteu-se, desde o tempo de Cristovão Colombo, em um universo mágico, de caráter fortemente utópico. Inicialmente, a literatura desenvolvida nesse novo território começou como noticiário do que seriam essas terras supostamente mágicas, que precisavam confirmar os desejos dos colonizadores. “A nova terra é somente redescoberta com olhos literários, para a imaginação dos europeus, através do paisagismo abusivo, que se conformava apenas em renovar as impressões de uma geografia diferente. De uma a outra expedição, assinalava Ezequiel Estrada, ‘a realidade do solo cobrindo a realidade da utopia’. Os primeiros testemunhos encontram-se nas crônicas oficiais e notícias de viajantes, incapazes de interpretar os sucessos que participavam”, aponta Bella Josef.
A América seria então um Continente que se desenvolveria atrelado a uma suposição: será que Cristovão Colombo sabia para aonde estava indo ou teria sido guiado por seres mágicos que habitavam os mares?
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Residente nos Estados Unidos, Junot Díaz é um dos escritores mais importantes da atualidade e também um dos mais lentos (se pensarmos em ternos da produção em massa exigida pelas editoras): em menos de duas décadas de produção, “apenas” o romance A fantástica vida breve de Oscar Wao e os contos de Afogado e É assim que você a perde (indicado ao National Book Award), todos lançados no Brasil pela Editora Record.
Em suas entrevistas, Díaz faz questão de destacar que sua literatura é fomentada pela traição, uma traição tão constante que reveste de som e fúria os corpos dos seus personagens como só fukú seria capaz. “A quantidade de ‘cuernos’ que as pessoas da República Dominicana põem umas nas outras é uma coisa fora do controle. Cresci num bairro em que todos traíam, e nós, crianças, sabíamos disso, embora houvesse um silêncio a respeito”, relatou numa entrevista publicada ano passado na Folha de São Paulo.
Por essa fala, é possível perceber uma clara característica da narrativa de Díaz: os fatos, até os mais corriqueiros, são tratados de forma exagerada. Até a traição conjugal soa como um deus decaído. Em seus relatos, temos a impressão de que a realidade, a qualquer momento, vai romper com o verossímil e tornar-se insólita. Mas isso nunca ocorre. A realidade é, por essência, insólita, mas não a ponto de nos deixar incrédulos diante dos seus rumos.
Na Fantástica vida breve de Oscar Wao, uma passagem em especial ilustra essa característica de Díaz. Trata-se do momento em que uma personagem — no início da adolescência e no final de um verão de desilusões — descobre o seu corpo como uma arma de Poder. A chegada da puberdade é tratada da mesma forma com que os autores do Boom narravam as cenas mais irreais de suas obras:
“Beli, que vinha esperando por algo exatamente como seu corpo a vida inteira, mal podia conter a satisfação diante do que sabia agora, diante da indiscutível concretização da sua desejabilidade, que lhe conferia, de certa forma, um Poder. Como descobrir por acidente Um Anel, achar a Pedra da Eternidade do mago Shazam ou encontrar a espaçonave caída do Lanterna Verde! Hypatía Blicia Cabral, por fim, adquiriu poder e muita autoconfiança. Começou a andar com os ombros retos e a usar as roupas mais apertadas que tinha. Dios mío, dizia La Inca sempre que a garota saía. Por que Deus tinha que lhe dar esse fardo, logo neste país”.
Talvez realismo maravilhoso também seja descobrir o corpo. O corpo como fantasma, como projeção de fantasias. O corpo como contrato social e geográfico.
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Tudo o que a América Latina ofereceu de forma mais original e fecunda a partir da década de 1950 (quando a expressão Terceiro Mundo começou a ser utilizada por demógrafos e geógrafos franceses num claro eufemismo para substituir “países pobres”) está ligado às esquerdas revolucionárias e à ideia de um Terceiro Mundo em prol da independência e da negação do imperialismo.
Disso, fatalmente, fazem parte o realismo maravilhoso, as músicas de protesto, a estética da fome e os fortes ecos da revolução cubana. No entanto, a década de 1980 viu nascer uma séria crise de identidade cultural, ao mesmo tempo em que as ditaduras iniciadas nos anos 1960/1970 começaram a perder força. Não só essa linha cultural cessa de funcionar e quase que totalmente de existir, como já não servem tão bem os parâmetros através dos quais se analisava a sociedade e a cultura latino-americanas.
A partir dos anos 1990, com a abertura política, a discussão em torno de como deveria ser a postura de um intelectual latino-americano ganhou força e resiste até hoje. No final dessa década, o colombiano Santiago Gamboa, ao participar de um congresso de escritores em Barcelona, fez questão de abrir o seu discurso de forma assombrada com a declaração: “Não sou um exilado”. Uma fala, surpreendentemente, talvez menos política do que estética.
Gamboa podia não ser um exilado político, mas se sentia um exilado cultural: um escritor que se achava “interrompido”, com seus direitos de escrita negados. Sentia-se obrigado a carregar um clichê.
Estudar a obra de um escritor latino-americano, hoje, consiste também em perfilar uma série de questionamentos, tais como: Que novas configurações de tempo e espaço abrigam a criação hispano-americana? Que trocas locais persistem entre os narradores, quando a interlocução global parece ser dominante? Néstor García Canclini apontou que “ser latino-americano” é uma condição que estaria sofrendo um processo de mudança no começo do século XXI, quando, ao mesmo tempo que os Estados nacionais são diminuídos, ampliam-se a s vozes que intervêm no debate. Isso acontece enquanto uma parte importante dos estudos e das teorizações sobre as modernidades do Continente continuam centradas em duas especificidades: “periférica” e “tardia”.
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Críticos costumam apontar a linguagem bem particular da obra de Junot Díaz, escrita que mistura o inglês com expressões locais da República Dominicana e o espanhol. Costuma ser tratado, de forma apressada (acredito), como um escritor de spanglish, como se suas histórias (ou seus personagens) diagnosticassem um idioma falho e submisso às regras de uma nova pátria. O falante de spanglish não tem o domínio de sua nova terra, permanece preso ao local de partida. Um eterno exilado. Ele não escolhe as palavras, e sim é escolhido por elas.
Minha impressão diante dos livros de Díaz é diversa. A questão talvez não seja de dependência diante de uma palavra que há de chegar ou de uma língua que falha. Percebo muito mais a necessidade de enfatizar um lugar próprio, estranho e singular, não mais em casa, mas também nem tão estrangeiro assim. É possível dizer “Díos mio” e “hip hop” numa mesma escala evolutiva, sem conflitos.
O estranhamento em Díaz, para além da linguagem, aparece muito mais em se tratando das demandas do corpo: um corpo em expansão; um corpo como arma política e sexual; um corpo doente, que falha e trai. Todos seus livros são marcados por chagas. Em Afogado, um garoto passa a vida se escondendo por trás de uma máscara devido a um problema ocorrido durante seu parto. É tratado com o medo e atração que envolver qualquer corpo estranho, qualquer corpo “imigrante”. Em É assim que você a perde, o latin-lover tatuado vê suas forças serem deterioradas com o avanço de um câncer silencioso. Torna-se um estrangeiro perante a identidade que escolhera para si.
A mesma doença acompanha a mãe de Oscar Wao por todo o romance, como o único desfecho provável para uma existência de humilhação e desterro, típica de sua geração de imigrantes. A descoberta do câncer em A fantástica vida breve de Oscar Wao é relatada como a descrição de um acidente geográfico antes invisível na imensidão do mapa, justificando assim, talvez, a condição de perplexa deriva dos seus personagens:
“Ela está parada diante do espelho do armário, nua da cintura para cima, o sutiã enrolado ao redor da barriga como uma vela arriada, a cicatriz nas costas tão vasta e inconsolável quanto o oceano. Você quer voltar a ler, fingir que não chegou a ouvir, mas já é tarde demais. Os olhos dela, grandes e esfumaçados como os que você terá um dia, encontram os seus. Ven acá, ordena ela. A mãe franze o cenho por causa do que vê num dos seios. Os peitos são imensidões. Uma das maravilhas do mundo.(...)
Está sentindo isso?, pergunta ela, com o familiar tom de voz áspero.
No início, tudo o que você mais sente é o calor da pele e a densidade do tecido, semelhante à de um pão que nunca parou de crescer. Ela guia os seus dedos no busto... Mãe e filha nunca antes tão próximas, a mais nova ouvindo a própria respiração.
Está sentindo isto?
Ela se vira em sua direção. Coño, muchacha, para de me olhar e sente”.
Talvez realismo maravilhoso hoje seja encontrar as palavras possíveis, ainda que inexistentes, para apontar algo antes jamais imaginado num mapa.
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A geração de novos e novíssimos autores latino-americanos parece disposta a marcar seu próprio espaço. Inevitavelmente, esse espaço aponta para uma relação diferente com a realidade e com as formas de que dispõe o autor para descrever o espaço e tempo que lhe são contemporâneos.
Apesar desses depoimentos “pacificadores”, a tradição da literatura latino-americana é a de polemizar sua cultura híbrida, de erguer manifestos, de recordar que o novo só é novo ao recobrar o que havia de novo no velho e esgotado. Os autores hispano-americanos sempre buscaram formas de demarcar/denunciar um histórico de dependência ou mesmo de contar, de formas diversas, temáticas aparentemente desgastadas, como regionalismos míticos ou depoimento de exilados. O que Santiago Gamboa fez ao se negar exilado foi uma espécie de manifesto contra a perspectiva de que há lugares “marcados” no cenário literário, que precisam ser ocupados.
A problemática desses lugares a serem ocupados foi destacada por Angel Rama, num acurado mapeamento de como os sistemas de dependência se integram também às esferas culturais: “Toda cultura possui seus estratos dominantes e dominados, sendo que vêm dos primeiros os parâmetros de normalização para a sociedade, de modo que sua ação condutora se manifesta nos diversos graus de aceitação entre estratos inferiores, que, com traços curiosos, revelam que não se trata de uma simples recepção, mas de uma elaboração transformadora, ou até mesmo opositora”).
O crítico uruguaio continua sua análise destacando que, na medida em que as classes superiores procedem à sua modernidade, essa se transfunde como norma, através da pirâmide social, gerando parciais incorporações, parciais recusas, que delatam as necessidades internas de outros estratos em suas necessidades de sobrevivência e progresso.
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Os três livros de Junot Díaz— apesar da diversidade de narradores atravessando as histórias, como se os personagens estivessem desesperados por sua hora de, enfim, falar —têm ao menos uma voz em comum: Yunior, geralmente tratado como um possível alter ego do autor — no último conto de É assim que você a perde, Guia amoroso do traidor, Yunior, assim como Díaz, é um professor universitário da região metropolitana de Boston.
Talvez Yunior seja não o alter ego de Díaz, para além de quaisquer coincidências biográficas; mas a voz narradora – a voz constante, necessariamente familiar — que precisa dar unidade a uma só e grande História (a História como o homem; a História como o alter ego): o destino dos que precisam conviver com o fato de que toda adaptação é provisória, de que todo lugar ou corpo a ser ocupado trai, falha e precisa ser substituído. Em algum momento o sotaque irá soar como traição e será hora de se adaptar novamente.
Realismo maravilhoso, hoje, talvez consista em se sentir em casa. Definitivamente em casa.