Entenda o complexo universo das refeições servidas pela Sra. Austen
Jane Austen é um caso interessantíssimo na literatura mundial: uma mulher, em uma sociedade dominada por homens, que escreveu uma obra que tem sido lida e admirada por gerações inteiras desde o início do século 19.
É verdade que algumas vezes Jane Austen é considerada, em certos círculos intelectualistas, como uma escritora de romances puramente femininos, que retratam amores de forma equivalente a obras menos elaboradas, mais parecidas com o tipo de emoção fácil levada às telas da televisão brasileira ou mexicana.
Eu não concordo com essa visão. Como professor de sociologia, tenho uma visão absolutamente diferente. Na verdade, a obra de Austen tem servido de inspiração para a análise sociológica de situações sociais para autores tão diferentes entre si como o filósofo norueguês Jon Elster, e o sociólogo norte-americano Howard Becker, justamente pela riqueza e profundidade psicológicas dos seus personagens. Se é verdade que seus livros se referem a amores e casamentos, sua visão dos diferentes estados mentais referentes ao amor é absolutamente magnífica. Há também de se considerar a riqueza de detalhes na descrição das hierarquias sociais que informavam a sociedade inglesa em que viveu.
No entanto, não tomarei os pontos de vista de Elster e Becker para análise aqui neste artigo. Porém, como eles, tomarei Jane Austen para mostrar, mesmo que brevemente, como é possível entender sociologicamente certos fatos sociais, no caso, a relação entre comida (jantares) e hierarquias sociais na sociedade em que ela viveu.
Primeiro, a época em que Jane Austen viveu era ainda marcada por rígidas hierarquias. Uma sociedade já caracterizada pelo trabalho formalmente livre, mas com fronteiras bem marcadas de círculos sociais. Isto é, com círculos sociais relativamente fechados onde os encontros, casamentos, festas e jantares, são marcados ainda por normas de divisão cuidadosamente estabelecidas.
Tomemos, por exemplo, o caso de Emma, seu último romance. A heroína que dá título ao livro, como se sabe, a filha de um grande proprietário de terras, que, decidida a não casar para cuidar de seu velho pai, se dispõe a ser uma casamenteira. Ela tem como experimento de suas pretensões uma amiga que acontece de ser filha sem pai conhecido, o que significa, como Austen escreve, uma mancha em uma sociedade de hierarquia tão rígida quanto a Inglaterra oitocentista.
Emma é uma decepção como casamenteira, pois, ávida por casar a amiga, não presta atenção às palavras, atos e sinais emitidos pelos outros atores sociais. Sua definição do que a realidade é advém somente do seu desejo de que a realidade seja o que ela quer, ou na expressão inglesa consagrada na psicologia cognitiva, Emma concebia o mundo através de wishful thinking (algo como “pensamento desejante”).
Porém, isto é um tema bem explorado pelo filósofo Jon Elster e não me cabe entrar aqui em detalhes. Importa, para mim, explorar outro tópico. Emma faz com que sua amiga rejeite um primeiro pedido de casamento porque o pretendente não teria as condições sociais necessárias para fazê-la subir na hierarquia social. Emma, na verdade, quer casar sua amiga com o pároco da comunidade. Que o pároco seja ele próprio apaixonado por Emma — e não pela amiga dela — faz parte das intrigas bem tecidas por Jane Austen.
O pároco casa com outra e a vida segue na pequena comunidade. Austen retrata bem tanto as ocasiões sociais que permitem a integração das classes altas rurais na sua Inglaterra do século 19, bem como a psicologia social da heroína no sentido de conformação às rígidas normas sociais que regulam as hierarquias daquela sociedade.
Pois bem, a esposa do pároco, em uma reunião social, se oferece para ajudar Emma em uma possível viagem desta à cidade de Bath, no sentido de providenciar, entre outras coisas, acomodação na casa de uma sua amiga. Emma — eis a sutileza da observação de Austen — não pode deixar de fazer, em sua mente, uma série de considerações sobre a pertinência de aceitar a ajuda. Por um lado, do ponto de vista psicológico, ela ficaria refém da antipática esposa do pároco, em sentido estritamente pessoal, por outro, ela ficaria refém de alguém que estava situada abaixo dela, falando em termos de hierarquia social. Pois Emma, sendo filha de um grande proprietário rural, estava situada acima da esposa do pároco, filha de família recentemente enriquecida pelo comércio, nas formas de estratificação social que regia a Inglaterra nos inícios do século 19 de Jane Austen.
Porém, falemos também de comida e de jantares.
As novelas de Jane Austen estão recheadas de exemplos acerca de jantares — e também da gastronomia — da pequena nobreza rural da Inglaterra da época. Logo no capítulo terceiro de Emma, podemos encontrar um tal exemplo: o pai da heroína insiste para que Mrs. Bates, amiga de sua filha, prove algumas iguarias: frango picadinho e ostras, ovos cozidos no ponto certo e torta de maçã.
No entanto, para mim, um dos exemplos mais claros acerca do que está proposto no título deste texto encontra-se no capítulo vinte e um e diz respeito à filantropia praticada por Mr. Woodhouse, o pai de Emma. Austen expõe o costume de, ao se abater um animal, no caso um porco, se dar um pedaço para famílias mais pobres, mas consideradas como ‘apropriadas’ no sentido de que seria possível manter ‘relações sociais’ com elas. No caso deste evento, a família que Mr. Woodhouse tem em mente é uma família que, tendo pertencido à pequena nobreza rural, viu-se, por uma série de fatores, privada de seus bens. Este evento é interessante do ponto de vista sociológico acerca de hierarquias sociais porque mostra, primeiro, como a própria hierarquia daquela sociedade está estruturada e, segundo, um dos mecanismos sociais de manutenção de tal hierarquia, a doação de comida e o retorno em termos de amizade, de lealdade e de não questionamento da hierarquia.
CÁLCULOS COMPLEXOS
Há outro episódio que gostaria de expor como ilustração do meu ponto. Diz respeito a um jantar para o qual a heroína é convidada. Emma vive com seu pai em uma propriedade rural em Highbury, próxima a Londres. Como em toda área rural no século 19, os grandes eventos e divertimentos sociais são as visitas, sempre acompanhadas de chás e tortas, e os jantares, após os quais havia sempre alguém tocando piano (estamos falando de um tempo antes do advento da música gravada). As novelas de Jane Austen estão repletas destes jantares onde as pessoas se encontram, fazem e renovam amizades e, principalmente, encontram um(a) parceiro(a) para casar. No entanto, a organização destes jantares muitas vezes envolve complexos cálculos, tanto do ponto de vista de quem convidava quanto do de quem era convidado, acerca de etiquetas relativas às conexões e origens sociais de quem convidava e de quem era convidado, ou seja, seus lugares na hierarquia social da época de Austen.
O capítulo vinte e cinco de Emma está relacionado, em termos de situação social, ao episódio descrito acima sobre a relação entre Emma e a esposa do pároco da comunidade, e é um exemplo claro deste tipo da intricada etiqueta que regia a hierarquia social daquela época na Inglaterra. No caso, Emma é convidada por uma família para um jantar. O problema, como exposto por Austen, para a heroína, é o seguinte: ela deve ou não aceitar o convite? E por que a dúvida aparece? Por causa das origens sociais desta família que fez o convite. E Austen expõe de forma cristalina o que está na mente de Emma em termos, como diria Bourdieu, do seu habitus de classe. A família que pretende organizar o jantar e contar com a presença de Emma estava ligada ao pequeno comércio, ou seja, eram novos pequenos burgueses, uma fração de classe social ainda não completamente assimilada dentro dos códigos sociais da pequena nobreza inglesa do século 19. Mas, Emma a considera amigável e sem falsas pretensões, o que significa dizer que viviam sem procurar a companhia de pessoas acima deles na hierarquia social e dentro dos seus modestos recursos. Porém, com o passar do tempo, seu comércio deu-lhes retorno lucrativo e dentro da pequena comunidade de Highbury eles passaram a ser inferiores, em termos de riqueza, somente ao pai de Emma. Com isto, eles compraram uma casa muito maior e empregaram mais servidores. Eis o cenário em que se coloca o problema de Emma. A família de baixa origem social — o termo é da própria Austen — havia enriquecido e nesta condição procurava estabelecer contatos sociais com pessoas de status social mais alto, como Emma. Aceitar ou não aceitar, eis a questão, aparentemente fútil, sem a metafísica shakespeareana, que se coloca para a heroína. Aceitar significava ceder ao convite de uma família, apesar de agora rica, de origens sociais abaixo da posição de Emma na hieraquia social de seu tempo; significava também estabelecer concretamente relações sociais com pessoas que certamente, apesar de certos esforços, não dominavam os códigos de conduta requeridas por pessoas da classe social de Emma. Pessoas cujas tentativas para dominar estes códigos apareceriam de forma “falsa”. Como escreveu Bourdieu, ainda sem o habitus das classes altas completamente incorporado e ainda “carregando” certamente o velho habitus de suas baixas origens sociais.
Por outro lado, não aceitar poderia significar um insulto, uma falta da sensibilidade requerida por pessoas, como Emma, que ocupavam as posições mais altas na hieraquia social: certa generosidade para com as pessoas situadas nas escalas mais baixas desta hierarquia social. Significava também, para uma heroína tão mesquinha quanto Emma, a perda de uma oportunidade de encontrar pessoas, homens jovens, principalmente, com quem estabelecer bons diálogos, ou simplesmente de se divertir em lugar tão carente quanto a Highbury do início do século 19. Para finalizar, vale dizer que Emma resolve a questão com base em cálculos em que leva em conta as duas ordens de fatores.
A série de exemplos que levantei neste texto mostram como, na obra de Jane Austen, os amores e casamentos acontecem em cenários interessantes marcados por situações concretas — os jantares — e pelos intricados códigos sociais que regiam a hierarquia social da Inglaterra de Jane Austen, hierarquia esta em processo de mudança social decorrente do declínio da velha nobreza rural, baseada na exploração da terra, e a acessão da nova burguesia, com base no comércio.