Resenha Ben Lerner Divulgacao novembro.20

 

Talvez pudesse resumir este Percurso livre médio, livro de poesia de Ben Lerner lançado pela Edições Jabuticaba, com uma única imagem: “Quero o papel com pouca/ Opacidade, o verso quase legível por trás”. Imagem sugestiva que aponta para um vaivém entre opacidade e transparência que parece caracterizar o livro, incluindo nisso uma gama inimaginável de opções que vão do translúcido ao semiopaco — das telas e câmeras que ocupam o ambiente do livro, passando pelas muitas referências ao vidro e seus reflexos: “Gosto de olhar/ Qualquer coisa pelo vidro, sobretudo/ Vidro”, “os predicados são de vidro”, “um campo verde visto/ Através desses óculos”, “Formas de sílica vítrea” etc. Até chegar a um jogo formal entre transparência e opacidade, que remete ao trabalho com a materialidade do poema (como no verso citado) e aos graus de legibilidade da linguagem.


Penso nas descrições feitas por Guilherme Wisnik, em Dentro do nevoeiro, em que ele chama a atenção para as formas difusas e translúcidas presentes na arquitetura e na arte hoje, muito afins ao modo de funcionamento da internet e da tecnologia em nuvem, em que existe um ambiente descentrado que pode ser percorrido de múltiplas formas. Percurso livre médio também não tem um centro e constrói um espaço poético difuso sem, contudo, deixar de fornecer ao leitor algumas maneiras de ler o livro. A primeira que me ocorre está logo no título, que traz um termo da Física para servir de filtro (ou lente) para a leitura.

“Percurso livre médio” (que precisei buscar na Wikipédia) designa a distância média percorrida por uma partícula de gás antes de colidir com outra partícula. A expressão também nomeia duas das quatro seções do livro. Ao lado dele, outro termo da Física dá nome às outras duas seções, “Elegias Doppler”. “Doppler” é o nome daquele efeito provocado pela sirene de uma ambulância passando, quando notamos que a frequência do som muda à medida que nos aproximamos ou nos distanciamos do barulho. Ambos os termos remetem ao deslocamento pelo espaço e permitem pensar em um tipo de movimento dos enunciados dentro do texto.

Sem recorrer a formas fixas tradicionais, mas criando duas formas próprias (uma para cada termo físico citado), que aparecem de modo bastante simétrico no todo do livro (e que poderiam fazer o leitor brasileiro lembrar de João Cabral, devido à mancha gráfica e ao uso da série), Percurso livre médio é feito a partir de técnicas de colagem e cut-up. E se, nestes recursos, estamos habituados a nos deter sobre o gesto de descontextualização dos elementos em jogo, o que salta aos olhos aqui é, antes, o efeito produzido: a leitura é quebrada, a sintaxe se rompe (“se abre”), os enunciados se interrompem e se chocam, um verso pode se combinar com outro que começa só adiante e, sobretudo, há muitos ecos e espelhamentos pelo percurso: às vezes um enunciado se repete com uma pequena diferença, mas temos no ouvido a memória da versão anterior e vamos criando outras conexões. A certa altura do livro, ele diz: “Quero que isto seja/ Inteiramente composto de beiras”. Uma superfície composta por beiras, acidentada, com enunciados quebrados e “versos escalonados”. Não importa tanto identificar de onde saíram os enunciados que vão se repetindo, até porque às vezes eles saem de dentro do próprio livro para retornar adiante, produzindo uma espécie de rima. E mesmo quando esses enunciados remetem a experiências específicas com seus sintagmas identificáveis — por exemplo, andar de avião (“Pertences podem ter se deslocado”), ou lidar com símbolos do mundo contemporâneo (“Acena pras câmeras”, “Já que o mundo está acabando”) —, mesmo nestes casos parece não importar tanto a origem do material, e sim o movimento que vai sendo criado e as formas de ler que ele produz.

Ao longe, um lago, o mundo acabando, a guerra, um você e um eu, uma gravação, Ari e Ben, um amigo que morreu, verde visão noturna, nuvens alinhadas com pouca opacidade, uma guinada para o fascismo, sinalizadores, beiras e vidros, palavras de amor, efeitos de superfície, superfícies refletoras. Uma melancolia atravessa este livro que se quer um poema de amor (como indica a dedicatória), mas não há hierarquias nem temas centrais, “O conteúdo se anuncia/ Pela desaparição, como fogos de artifício”. Quando entendemos ou percebemos, já não estamos mais ali, vemos somente um reflexo pelo vidro, uma sugestão, um atraso da imagem. A descrição que estou tentando fazer do livro não passa de paráfrase, é esta a sensação que temos diante de um grande poema, sensação de não ser possível dizer. Talvez seja necessário “esperar”, como no início do livro ele propõe, “Esperar é a resposta/ Que eu procurava”, esperar para ver o movimento acontecer, os pequenos atrasos, ecos e reflexos que vão capturando o leitor e nos fazendo ver o mundo por meio destes vidros e telas.

Mais conhecido por seus três romances (que já saíram aqui), Lerner publicou três livros de poemas (sendo este o segundo que sai no Brasil, depois de Ângulo de guinada, pela e-galáxia, com tradução de Ellen Maria) e o ensaio, divertido e apaixonado, Ódio pela poesia (publicado na revista Serrote #25), espécie de defesa da poesia que busca pensar a distância que há entre o poema e a ideia do poema. Circulando entre os gêneros e levando questões de um para perturbar o outro, Lerner dialoga diretamente com a tradição americana e com referências que muitas vezes não são familiares a nós, leitores brasileiros. Além de John Ashbery, citado por ele, e Louis Zukofsky (que aparece nominalmente neste livro), há os poetas da L=A=N=G=U=A=G=E e, indo mais longe um pouco, Gertrude Stein. Penso também nos ecos de um livro de Michael Palmer, traduzido por Régis Bonvicino, que foi bem importante para mim, Cadenciando um-ning, um samba para o outro (o poeta Ron Silliman comenta que Lerner não precisa tomar distância da influência de Palmer em sua obra, pois ele já nasceu com distância temporal suficiente).

Uma observação final, que pode ser lida lado a lado com a recente premiação do Nobel a Louise Glück, poeta americana ainda inédita em livro no Brasil. Cabe um imenso elogio à generosidade da Edições Jabuticaba e um agradecimento por ela estar publicando por aqui todos estes poetas (para citar apenas três que eram inéditas no Brasil, Anne Carson, Eileen Myles e Bernadette Mayer). Em um momento como este, precisamos mais do que nunca de filtros e lentes para expandir nossos discursos e tentar pensar o mundo em que estamos. O agradecimento se estende à tradutora Maria Cecília Brandi por trazer estas superfícies refletoras para perto de nós.

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