LouiseGluck reproducao out.20

 

“Júlio, o Nobel é da Louise Glück”, anunciou logo cedo meu WhatsApp. Era mensagem de uma amiga atinada com o mundo dos livros. A mesma que, uns quinze anos atrás, me pediu que indicasse uma obra para a coluna “Vale traduzir”, da tristemente finada revista Entrelivros, e recebeu um texto apaixonado, meu, sobre Louise (foto) — sim, eu a chamo pelo prenome.

Trinta segundos depois, o WhatsApp apitou de novo. Agora era um amigo, que me lembrava das conversas que tivemos sobre ela, sei lá há quanto tempo. E assim continuou por mais quatro ou cinco pessoas que liam a notícia e me escreviam. Confesso que gostei, me senti um pouco mais próximo dessa poeta inacreditável que leio há quase três décadas, que adoro e que nunca teve livro seu traduzido no Brasil.

Lembro quando e como conheci a poesia de Louise. Era 1993 e eu visitava Nova York pela primeira vez. Na St. Mark, livraria do sul de Manhattan, percorria as prateleiras de poesia e, por um daqueles motivos que anos depois você ainda tenta descobrir qual foi e não consegue, bati o olho num volume fino de The wild iris, publicado no ano anterior. De pé, diante das estantes, me pus a ler página a página, verso a verso. Foi uma vertigem, um encantamento, uma paixão simultaneamente intelectual e irracional. Foi o começo de tudo.

Levei o livro para o hotel e reli e reli e reli. No dia seguinte voltei a São Paulo e procurei traduções. Em vão. Restava importar outros livros, esperar outras viagens. Felizmente não demorei a conseguir a edição da Ecco, que reúne seus quatro primeiros livros: Firstborn (1968), The house on marshland (1975), Descending figures (1980) e The triumph of Achilles (1985). Em todos, a combinação contínua de mitologia, psicanálise, metáforas simultaneamente cruas e enviesadas, intimismo. A revisitação de um romantismo complexo, a reinvenção pessoal da natureza como um mundo ambíguo que nos abraça e nos afasta, a violência dos sentimentos filtrados pela ainda mais violenta razão.

O livro que me abalou definitivamente, porém, só saiu em 2006: Averno. Meu exemplar tão rabiscado está a meu lado, na mesa, enquanto escrevo esse texto, acelerado e emocionado, menos de uma hora depois da notícia do prêmio. Já o percorri tantas vezes, já fotografei tantos de seus poemas para espalhá-los pelas redes sociais, já usei uma estrofe linda e dilacerante como epígrafe de um livro que escrevi há dez anos. Não resisto e a reproduzo aqui, com a sensação de que ela sintetiza quase tudo que vivo, quase tudo que vivemos:

I lived in the present, which was
that part of the future you could see.
The past floated above my head,
like the sun and moon, visible but never reachable.

Cogito traduzi-lo, desisto. Sei que agora será traduzido e publicado no Brasil, junto com os demais poemas que compõem o sequencial e arrebatador lamento de Perséfone, que migra na noite, vaga, revê os mitos que a cercam e os que ela professa; compreende-se enquanto percorre, extática, um trajeto cujos início e fim são secundários: o caminho — qualquer caminho — importa, afinal, pelo desenho que traça de nós mesmos.

Averno nunca deixou de ser meu livro preferido de Louise. Mas três volumes anteriores a ele — Meadowlands (1997), Vita Nova (1999) e The seven ages (2001) — e dois posteriores — A village life (2009) e Faithful and virtuous night (2014) — são igualmente extraordinários. Faithful, inclusive, me fez reviver a cena de 1993. A mesma cidade, outra livraria, início de 2019 e eu de pé, lendo, diante da prateleira.

Todos os anos, nas vésperas do anúncio do Nobel, me sinto ansioso e, ao mesmo tempo, tento desprezar o resultado que ainda desconheço — sei que a Academia mais erra do que acerta. Assim dormi ontem à noite. Para hoje acordar com a notícia — obrigado, Joselia Aguiar! — de que minha poeta favorita está nas manchetes do mundo todo e que, em breve, estará também nas livrarias brasileiras e de tantos outros países que ainda a desconhecem. A notícia de que muita gente, pelo mundo afora, vai poder ler a mais incrível, maravilhosa e sensacional poeta que já li.

 

* Júlio Pimentel Pinto é professor de História da USP e autor, entre outros, de Uma memória do mundo e A leitura e seus lugares.

SFbBox by casino froutakia