Corria o ano da graça de 1990. Uma católica fervorosa leva a neta de cinco anos pela mão até a Capela de Nossa Senhora de Fátima, encravada no Colégio Nóbrega, fundado pelos jesuítas no centro do Recife. A criança tinha cabelos presos em formato de trança e vestia a melhor peça disponível do guarda-roupa, um conjunto rosa e branco de crochê, com estampa de losangos. A tarefa da menina, naquele domingo de manhã, era um batismo de fogo: ler uma passagem da Bíblia bem no meio da missa, em uma igreja lotada. O nervosismo, misturado ao orgulho em comandar um dos microfones do altar, a fizeram descuidar da leitura, desrespeitar a cadência do texto, atropelar pausas. Ainda assim, o fim da celebração reservou apertos de bochecha das senhorinhas mais empolgadas, elogios do padre e uma avó satisfeita.
Essa é minha primeira lembrança da Bíblia católica, cercada de excitação e expectativa, embora não consiga recordar uma palavra sequer do que fora lido. Mas a impressão de estar com algo solene, interessante, em mãos foi sendo soterrada por anos de aulas enfadonhas de religião e abandonada de vez após a primeira eucaristia, época em que minha turma de catecismo tinha de decorar as parábolas do Novo testamento. E não faltam exemplos de pessoas que se esquivam de consultar as assim chamadas Sagradas Escrituras ao não professarem, seja qual for a razão, as religiões que as adotam. Mesmo entre aqueles que se mantêm ligados ao catolicismo, ao protestantismo ou ao judaísmo, não são todos os que se dispõem a interpretar a Bíblia além de seu papel cristalizado como bastião de moralidade ou objeto de estudo da teologia.
No entanto, houve, e ainda há, leitores que intuíram o potencial de interpretação dessa obra como um produto de engenho e arte, feito por pessoas recuadas no tempo, mas com um domínio das faculdades narrativas que sobrevive à tradução para qualquer idioma. Alguns desses leitores tornaram-se escritores, e muito da arte ocidental em geral é tributária, direta ou indiretamente, do conteúdo presente na Bíblia, mesmo que seja para negá-la como símbolo de fé. Ou pode-se ir ainda mais longe, como fez José Saramago (1922-2010) em entrevista à agência portuguesa de notícias Lusa na época do lançamento de seu último livro, Caim. “A Bíblia é um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana”. Ao mesmo tempo, o escritor pontuou que ela “tinha coisas admiráveis do ponto de vista literário”, em referência ao Cântico dos cânticos e aos Salmos.
Esta última afirmação de Saramago, um dos ateus mais empedernidos já vistos na literatura, pode ser entendida como uma provocação e, ao mesmo tempo, como um lembrete para os leitores de hoje, pois isso significa que podemos pôr os olhos nas Escrituras e lançar mão de ferramentas inicialmente criadas para interpretar textos literários. Em outras palavras, para lê-las, é possível deixar de lado o arcabouço religioso, obtendo prazer na fruição da narrativa. Uma das pistas para isso é ter a disposição de olhar de forma desapaixonada para a própria etimologia da palavra ta bíblia, que significa “os livros”, sem conotação sagrada a priori.
Segundo a Sociedade Bíblica Unida, há traduções da Bíblia em 2.527 idiomas, dos 6.500 estimados ao redor do mundo. A tiragem é estimada, de forma conservadora, em 2,5 bilhões de exemplares. Só que os escritos bíblicos não são um todo monolítico, mas se espraiam por várias versões, sendo três delas as mais conhecidas. A primeira a aparecer foi a hebraica, chamada de Tanakh. Essa é a matriz do Antigo testamento cristão e está subdividida em outras três unidades: Torah, também chamada de Pentateuco, ou Lei, cujo conteúdo inclui Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio; Nevi’im, ou Profetas, e Ketuvim, ou Escritos. Não estão incluídos aqui os sete livros chamados de deuterocanônicos, que foram considerados apócrifos pelo judaísmo, mas adotados pelo catolicismo a partir dos Padres da Igreja. A versão católica, por sinal, é a mais extensa e inclui 73 livros no total, juntando o Antigo e o Novo testamento. Já a versão protestante, a última a surgir, tem 66 partes, resultado da soma da Bíblia hebraica com o Novo testamento.
POR QUE ler a BÍBLIA COMO LITERATURA?
O poeta e pintor William Blake dizia, ainda no século 18, que a Bíblia era o Grande Código. Em outras palavras, a arte ocidental não poderia ser compreendida sem levá-la em consideração, embora os dogmas cristãos tenham conduzido a leitura da Bíblia, por séculos, a um campo essencialmente teológico, onde as técnicas de interpretação, ou exegese, tinham a primazia para a compreensão dos textos. Do lado judaico, a Midrash (investigação, em hebraico) ia além do simples comentário, chegando a sugerir formas de preencher lacunas da narrativa bíblica. Só em meados do século 20 o instrumental da teoria literária passou a ser aplicado às Escrituras. Um dos precursores dessa ênfase nas formas do dizer presentes nesse livro foi a obra Mimesis (1946), de Erich Auerbach, que trazia em seu primeiro capítulo uma comparação entre o retorno de Ulisses, na Odisseia de Homero, com a tentativa de sacrifício de Isaac por Abraão, no Gênesis, classificando o estilo bíblico como “abrupto e enigmático”.
Mas foi a partir da publicação, em 1981, dos livros O código dos códigos, de Northrop Frye (cujo título foi emprestado do já citado Blake), e A arte da narrativa bíblica, de Robert Alter, que os estudos literários desse livro tomaram maior impulso. Este último defende que “a compreensão religiosa da Bíblia adquire profundidade e sutileza justamente por estar ligada aos mais sofisticados recursos de prosa de ficção”. Nela, o estudioso identificou cenas-padrão, técnicas de repetição e a importância da omissão de certos dados na construção dos personagens. E a prosa, escolhida pelos compiladores hebreus de forma preferencial, não estava lá ao acaso — era uma forma de afastamento das culturas e tradições politeístas dos povos vizinhos do Oriente Próximo, que escolhiam a poesia para retratar suas epopeias e mitos fundadores. Mas isso não significa que as formas poéticas não tivessem vez no texto bíblico, vide os Salmos.
O hebraico dito clássico, no qual a Bíblia foi redigida, possuía escrita exclusivamente consonantal, com poucas palavras ou vocábulos. Além disso, os textos primitivos, escritos em rolos de pergaminho, não permitiam intervalos, separações ou pontuações entre as palavras como as conhecemos hoje. No entanto, este é um idioma de extrema riqueza semântica, com jogos de som e sentido que inevitavelmente se perderam nas traduções católicas e protestantes, mesmo nas mais reverenciadas, que tiveram grande importância em moldar as línguas de chegada, como as versões de Martinho Lutero para o alemão (1534) — a primeira em língua vernácula — e a King James Version (1611), para o inglês.
Um exemplo disso pode ser tirado a partir da criação de Adão, tomando a tradução do poeta Haroldo de Campos, um dos pioneiros no Brasil em abordar a Bíblia como literatura. Em hebraico, Adom significa originalmente “espécie humana”, ou “ser humano”, sem jamais ser individualizada em nome próprio. Etimologicamente, esse vocábulo provém de adamah, que significa terra, chão, terreno. Em Gênesis 2.7, a Edição pastoral da Bíblia Sagrada, publicada pela Editora Paulus, anota: “Então Javé Deus modelou o homem com a argila do solo, soprou-lhe nas narinas um sopro de vida, e o homem tornou-se um ser vivente”. Na transcriação da Bíblia feita por Campos e presente no livro Éden — Um tríptico bíblico, essa passagem transformou-se em “E afigurou O-Nome-Deus o homem/pó da terra-húmus”. Nesta última, manteve-se o caráter sintético do idioma hebraico e a relação semântica entre homem/húmus — aquele que veio da terra e a ela voltará.
Há outras pérolas, como o Livro de Jonas, em um estilo parabólico que lembra várias das histórias posteriores do Novo testamento. Em três páginas, vemos a história de um profeta exortado por Javé a ir a Nínive, capital da Assíria e inimiga do povo de Israel, para dar a notícia de que ela será destruída se seus habitantes não se arrependerem de seus pecados. Jonas tenta fugir da tarefa, mas é alcançado e engolido por uma baleia, passando três dias e três noites no ventre do animal. Quando Deus se compadece com o esforço da cidade em obedecer a Suas leis, o profeta se revolta, e recebe a seguinte resposta: “Está certo você ficar irritado deste jeito?” (Jn. 4.4). “Aqui, Deus chateia um judeu e salva pessoas pagãs. Se isso não é ironia, eu não sei mais o que ironia significa. Acho que falta a nós um pouco de humor na hora de ler a Bíblia, pois a tradição atrapalha a nossa compreensão dela”, aponta o doutor em literatura Diego Carreiro, que também traduziu fragmentos de livros bíblicos.
No entanto, para alguns estudiosos, a interpretação literária desse material bíblico precisa de atenção especial. Para o teólogo Cássio Murilo Dias da Silva, doutor em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma e autor do livro Leia a Bíblia como literatura, jamais se deve esquecer que as Escrituras são uma obra “amadurecida, escrita, corrigida e modificada em um longo período de tempo — cerca de mil anos para o Antigo testamento; cinquenta ou mais anos para o Novo”. São autores diferentes, com ideologias diferentes, em ambientes culturais e sociais diferentes, com idiomas diferentes (hebraico, aramaico e grego), com dialetos diferentes e contaminação de outras línguas, com habilidades literárias diferentes. “No mesmo texto, encontraremos diversas técnicas de expressão. Além do mais, os autores bíblicos nem sempre eram rigorosos em usar uma ou outra técnica de composição. Nem tudo é narrativa, nem tudo é poesia, nem tudo é linguagem figurada”.
O professor do departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Anco Márcio Tenório Vieira, vai além e estabelece uma distinção considerada, a seu ver, essencial: a Bíblia pode, sim, ser lida com um olhar literário, mas não foi concebida para tal. Afinal, ela não foi escrita por um único autor, com planejamento prévio e tendo o intuito de expor uma verdade que se explica no próprio texto, embora autores como Northrop Frye sustentem que, apesar disso, há uma coerência interna, com conteúdo organizado em começo, meio e fim, desde a criação do mundo (Gênesis) até o fim dos tempos (Apocalipse). “Podemos dizer que alguns dos seus livros são fabulatórios, são narrativas míticas, mas isso não implica em um pacto ficcional, isto é, em um pacto de fingimento entre quem escreve e quem lê”, aponta o professor.
Para compreender essa afirmação, bastaria lembrar que ainda há pessoas para as quais a Bíblia é vista apenas como verdade revelada: as palavras contidas nela são compreendidas ipsis litteris. “No entanto, não podemos esquecer que essa compilação é de uma época em que o escrever passava pelo domínio da retórica. O que nós costumamos chamar de qualidade literária da obra é, na verdade, a qualidade retórica da obra; ou o que Aristóteles chamava de ornamentos da obra. Neste ponto, ela é constituída por textos do mais alto valor retórico. A qualidade retórica dos textos que ali estão ajuntados está no mesmo nível dos melhores textos produzidos pelos gregos e latinos”, completa.
Entre esses escritos, contam-se, notavelmente, Jó e Eclesiastes, com sua alta carga fabular e filosófica. O primeiro personagem ousa debater com o próprio Deus, que manda a ele o maior número possível de desgraças. A frase “debaixo do sol não há nenhuma novidade” (Ecl 1-9) é pessimista de forma apenas aparente, segundo Frye, pois o personagem principal, Qohélet, ou O-Que-Sabe, “não é um pessimista aborrecido e cansado da vida: é um vigoroso realista (...) Como nada é certo ou permanente no mundo, nada é real ou irreal, o segredo da sabedoria é o distanciamento sem fuga”.
Apesar de se diferenciar estilisticamente dos povos vizinhos, os israelitas, evidentemente, não ficaram completamente impermeáveis aos empréstimos narrativos disponíveis nos séculos antes de Cristo. “Alguns exemplos são os Salmos 19 e 104, que copiam hinos do Antigo Egito e do Oriente Médio, aplicando a Deus os atributos das divindades solares Shamash e Rá; há outros “Jós” tanto no Egito (poema “Diálogo do desesperado com sua alma”, entre 2190 e 2040 a.C.), quanto na Babilônia (poema “Eu quero celebrar o Senhor da sabedoria”, cerca de 2000 a.C.) e na Grécia (o Prometeu acorrentado de Ésquilo, cerca de 460 a.C.); sem falar no código legal do Deuteronômio, muito devedor do Código do rei Hamurabi, da Babilônia (1810-1750 a.C.)”, lembra Cássio Dias.
Por Hallina Beltrão
BÍBLIA & LITERATURA – UM PEQUENO RECORTE
“Grandes ficcionistas sempre foram leitores da Bíblia”, crava Flávio Moreira da Costa, escritor, tradutor e organizador de diversas antologias, incluindo Os melhores contos bíblicos. Do argentino Jorge Luis Borges ao americano William Faulkner, passando pelo checo Franz Kafka, a lista de nomes canônicos da literatura ocidental que usaram as Escrituras como matriz chega a ser exaustiva, e chama a atenção pela heterogeneidade de estilos. “A riqueza de linguagem e o encantamento ficcional, no sentido de criação de mundos, condensa a história e as dores do ser humano, os sonhos e os pesadelos na nossa humanidade. Por isso atrai os escritores”, emenda.
E foi como escritor que Costa tratou o autor do Apocalipse de João. Um trecho significativo desse livro abre a coletânea Os melhores contos fantásticos, também organizada por ele e publicada em 2006. “O critério de seleção é o mesmo, seja qual for a antologia: qualidade e representatividade literárias do texto escolhido e sua adequação ao tema proposto”. O tratamento dado ao último livro da Bíblia é, na verdade, um reconhecimento a um gênero literário — batizado de apocalíptico — que floresceu no judaísmo entre 200 a.C. e 200 d.C.. Eram tempos de crise, culminando com o domínio romano na região, e a mensagem tinha de ser velada, abusando de tropos e alegorias. “Esse gênero não apenas introduziu uma nova concepção de história nas religiões ocidentais, como também foi capital para o desenvolvimento da tradição visionária da literatura e do misticismo nessa região”, escreve Bernard McGuinn, responsável pelo capítulo reservado ao Apocalipse no Guia literário da Bíblia, organizado por Robert Alter e Frank Kermode.
Já a trama da rivalidade entre irmãos, presente duplamente no Gênesis com Caim versus Abel, além de Esaú e Jacó, rebate na literatura nacional em obras como Dois irmãos (2000), romance do amazonense Milton Hatoum. Na trama, os gêmeos de ascendência libanesa Yaqub (Jacó, em árabe) e Omar se odeiam desde a infância porque, assim como na Bíblia, há a preferência da mãe, Zana, por um filho, em detrimento do outro. Ainda jovens, passam a desejar a mesma mulher e levam essa disputa para o resto da vida, atraindo circunstâncias infelizes para si e para a família. “Havia dois livros sagrados na minha casa durante a minha juventude: o Alcorão, porque meu pai era muçulmano, e a Bíblia, porque minha mãe era católica. Decorei algumas coisas para a primeira comunhão e depois li as Escrituras cristãs com um olhar de leitor voltado para as narrativas tradicionais, vindas da oralidade. O Alcorão e a Bíblia, os dois grandes clássicos das religiões, são dois textos poéticos, que, na verdade, se desdobram em muitos outros. Os mitos viajam tanto quanto os livros. A história dos irmãos rivais está entre os egípcios e os ameríndios”.
A narrativa construída por Hatoum é assumidamente devedora de uma abordagem mais antiga da mesma história bíblica, feita por outro escritor brasileiro há pouco mais de 100 anos. Machado de Assis, em Esaú e Jacó, seu penúltimo livro, se servia do mesmo núcleo central: dois irmãos gêmeos de temperamentos opostos, que se odeiam e chegam a disputar o amor de uma mesma mulher. Porém, no trabalho do autor de Dom Casmurro, há uma referência bíblica a mais: uma adivinha profetizou, durante a infância deles, que ambos seriam grandes, mas inimigos. Esta é uma clara referência à passagem do Gênesis em que Rebeca, mãe de Esaú e Jacó, faz uma consulta a Javé: “Em seu ventre há duas nações, dois povos se separam em suas entranhas” (Gen. 25-23). Na história passada no Rio de Janeiro, a raiva vista em privado passou também para a esfera pública. Deputados por partidos políticos de esferas opostas, os gêmeos terminaram com o mesmo impulso de se destruírem mutuamente.
Se o judaísmo, o catolicismo e o protestantismo se encarregaram de enfeixar os antigos livros bíblicos em formas e ordens diferentes, esse processo foi continuado para fins catequéticos, dando origem a várias seletas de narrativas do Antigo e do Novo testamento. Uma delas, chamada de Histórias sagradas, chegou às mãos de Ronaldo Correia de Brito ainda na infância, no sertão dos Inhamuns. Foi aos sete anos, orgulhoso em contar a história de José do Egito em voz alta para a família, que o escritor e médico cearense radicado no Recife teve o primeiro contato com a leitura. “Essa foi a matriz da minha linguagem como escritor. Para mim, não havia nenhuma diferença entre a narrativa bíblica e outras. Sempre a considerei como parte da mitologia judaica e me impressiona como esse livro consegue possuir vários estilos e figuras de linguagem”. Por sinal, a história de sofrimento e redenção de José faz parte das referências buscadas para a trama de seu novo livro, Estive lá Fora, com lançamento previsto para setembro pela Alfaguara.
As referências à Bíblia se espalham pela obra do escritor e podem ser vistas, por exemplo, em seu terceiro livro de contos, O Livro dos homens, de 2005. Nele, Correia de Brito batiza uma de suas narrativas de “Qohélet”, com citações diretas à tradução feita por Haroldo de Campos. Mas foi em Galileia, lançado em 2008 e vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura do ano seguinte, que a influência das Escrituras cristãs foi potencializada a ponto de se tornar central para a leitura. No universo rural e árido do sertão, o autor situa a história de Adonias, Davi e Ismael, primos que voltam ao Sertão dos Inhamuns, terra de origem da família Rego Castro, por causa do avô moribundo. A reunião familiar resultante da proximidade da morte do patriarca trará consequências diversas, na maior parte indesejadas, para cada um dos parentes e das pessoas ligadas a eles.
Na Galileia ficcional de Correia de Brito, todos os personagens têm nomes bíblicos, como Salomão, Elias, Natã, Tobias, Esaú, Jacó. Embora o narrador seja Adonias, a caracterização de seu primo Davi foi cercada de um cuidado que se reflete já a partir da escolha do nome. “Ao longo da história, esse rei foi visto por muitos sob um ângulo favorável, mas eu queria mostrar que não era bem assim. O personagem homônimo criado por mim tem um pouco de maldade”. A reencenação de um episódio ao Davi bíblico (2 Samuel 12, 13-23) dá origem a um dos momentos mais pungentes do romance: a morte do filho caçula de Raimundo Caetano, Benjamin, com sete anos, apesar das súplicas do pai a Deus para que a criança não morra. “Eu pensava que o Altíssimo se compadeceria dos meus sofrimentos e não levaria meu filho. Agora que o menino está morto, de que vale meu jejum?”. O comportamento é tomado como insensibilidade pela esposa, cujo ódio surdo termina de arruinar a vida conjugal de ambos.
Segundo Robert Alter, Davi é o personagem mais bem delineado do Antigo testamento. Inicialmente um jovem ousado e capaz de gestos de bravura, ele se desvia dos princípios defendidos pelo Deus do seu povo para se transformar em um homem atormentado, envolvido em matrimônios violentos e fragilizado após a perda de quatro de seus filhos. Quando a Bíblia narra os tropeços de Davi, ela lembra os seus leitores de que o ser humano é complexo o suficiente para ser capaz tanto de grandes feitos quanto das piores torpezas, independentemente de qualquer crença religiosa. Esse reconhecimento está nas palavras finais do seu estuado Arte da narrativa bíblica. “Os escritores hebreus tinham um prazer indisfarçável em traçar com destreza esses personagens e ações tão vívidos, e com isto criaram uma fonte de deleite para cem gerações de leitores. (...) As figuras humanas que se movem por essa paisagem parecem mais belas e cheias de vida do que nossas ideias preconcebidas permitem imaginar”.