Por Fabiana Moraes
Michel Foucault acabara de escrever a História da sexualidade (Vol. 1) - A vontade de saber quando, em um mês de novembro de 1976, colocou os pés franceses na areia da praia do Pina. Na cabeça careca ainda circulavam palavras e coisas como presbiófilos, mulheres disparêunicas, ginecomastos, invertidos sexoestéticos, automonossexualistas. Acrescentou à lista de problemas/perversões cuidadosamente normatizadas algumas importantes imagens. 1 - Homem vendendo algodão doce; 2 - Garota expondo a Grande Bunda aos céus; 3 - Menino rolando na areia; 4 - Jovens beijando-se dentro d'água; 5 - Senhora fritando peixe; 6 - Rapaz moreno forte de short baixo, de "physionomie agréable" (no português atual simplifica-se para "gostoso").
Para um homem que nutria um imenso interesse pelo mundo que o rodeava, tratava-se de um pequeno espetáculo onde o corpo protagonizava a maioria das cenas – quando não, tornava-se destino maior do que era vendido em forma de doce, fritura, álcool. Foucault ali na Avenida Boa Viagem, tão longe do Collège de France, tão perto dos carrinhos de raspa-raspa, o olho ávido catalogando aquela novidade em signo plural que o cercava. O que se anunciava como mais uma exuberante visita ao país tropical, no entanto, não se confirmou: a praia ensolarada não era apenas o que Foucault esperava. "Ele disse que o colocamos em uma cage d'or. Acho que esperava um pouco mais de badalação", lembra Silke Weber, professora emérita da Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), uma das anfitriãs do francês no Recife. Silke conheceu Foucault em Paris, onde, ao lado do filósofo Roberto Machado, jantaram juntos. "Era um homem agradável."
A "gaiola de ouro" a qual o filósofo se referia era o Hotel do Sol, onde era comum a presença de franceses em visita a cidade. Apesar de não ser um local de luxo, o ambiente pareceu talvez asséptico demais, pouco popular demais, Zona Sul demais para um homem que já tinha boa noção do País no qual estava: aquela era sua quinta e última visita ao Brasil, onde pisou em 1965, 1973, 1974, 1975 e, como citado, em 1976. Foi o suficiente para entender que não éramos exatamente assépticos, pouco populares e muito menos uma nação Zona Sul. O Nordeste (Foucault visitou também Salvador) era, segundo ele escreveu ao companheiro Daniel Defert, o "verdadeiro Brasil".
Foucault estava acostumado a conciliar suas conferências a programas mais mundanos: não é segredo que o filósofo apreciava uma boa farra, que gostava dos centros das grandes cidades, da mistura, dos bares, dos lugares onde podia finalmente não ter que responder se era estuturalista, ou pós, ou um salvador, ou um traidor. É verdade que, se tivesse de responder, o faria: a paixão que demonstrava sob tiradas brilhantes ou grandes foras em suas conferências não o deixava quando sentava-se à mesa dos botecos.
Esteve em vários, principalmente no Rio de Janeiro, onde foi pela primeira vez em 1973, convidado pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/RJ). Já na primeira visita dirigiu-se à Lapa, para ele o bairro mais interessante da cidade. Tinha um amigo que morava por ali, Hamilton, em cujo apartamento, localizado em um prédio pobre, esteve algumas vezes. No Rio, esteve acompanhado por nomes importantes da intelectualidade brasileira: o filósofo Roberto Machado e o psicanalista Jurandir Freire Costa foram alguns deles. Com o companheiro Daniel Defert, aproveitou os dias aqui para conhecer, em par, a Amazônia e Belo Horizonte, onde ministrou conferências em 1973. Na ocasião, compareceu a uma recepção oferecida por Consuelo Albergaria, que o apresentou ao mundo acadêmico local. "Foi algo semelhante a uma provação, em que deveria ser polido com 'mulheres em longos trajes de noite'", escreveu um de seus biógrafos, David Macey. Naquela noite, um caladão Foucault, que tinha adquirido o gosto pela caipirinha, deve ter se entediado profundamente com brasileiros da elite esforçando-se para adquirir um toque francês – as bandejas de vol-au-vent nas mãos dos garçons não estavam ali por acaso, naturalmente.
Mas deixemos rapapés e abusos foucaultianos de lado e voltemos a nos hospedar no finado Hotel do Sol. A estada de Foucault no Recife deve-se em parte à competente ação dos militares brasileiros da década de 1970. Tudo começou em 1975, quando o professor do Collège de France esteve em São Paulo, dez anos depois da primeira visita à cidade, onde havia, na faculdade de Filosofia da USP, um "bom departamento francês de ultramar", segundo as jocosas palavras do próprio filósofo. Ele realizava, naquele mês de outubro, uma série de conferências sobre psiquiatria e antipsiquiatria no momento em que estudantes, professores e jornalistas começaram a ser presos em série. Foucault interrompeu seu curso na USP e, dois dias depois, o jornalista Vladimir Herzog era morto. O filósofo participou de protestos de estudantes (onde fez discurso) e foi, no dia 31, ao culto ecumênico na Praça da Sé, realizado em memória a Herzog e com forte presença dos militares, que tentavam impedir o acesso à catedral. A professora Heliana Conde (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), que está desenvolvendo a pesquisa Michel Foucault no Brasil: presença, efeitos e ressonâncias, afirma que Foucault acreditava que sua próxima vinda ao País seria barrada. Não foi, mas, em todo caso, o filósofo preferiu palestrar em cidades aparentemente menos visadas pelos militares. Decidiu por Belém, Salvador e Recife — talvez só tenha sabido depois que a capital de Pernambuco era sede do Comando Militar do Nordeste. O livre acesso ao Brasil, no entanto, era vigiado, como confirma recente descoberta da pesquisadora Maria Izabel Pitanga que, no Arquivo Nacional, encontrou um documento do Serviço Nacional de Informação (SNI) com o seguinte texto: "PMF [Paul-Michel Foucault] foi indicado por XXXX, chefe do Departamento de Filosofia da FFCHUSP como professor visitante, para proferir uma série de palestras e apresentar trabalhos naquela faculdade. Na assembleia universitária de 3 de outubro de 75, PMF pronunciou discurso sobre possíveis torturas sofridas por estudantes e professores da USP, ressaltando que a liberdade de expressão e de pesquisa são sinais da garantia da liberdade dos povos, além de prestar homenagens à USP por sua luta pela justiça. O nominado é considerado um dos maiores filósofos da atualidade e pertence à corrente antimarxista conhecida na França como Democrata Socialista. Foi manobrado a tomar posição contrária ao governo na assembleia de 23 de outubro na FAU por XXXXX e XXXX, conhecidas pela ação esquerdista na Faculdade" (o XXXXX funciona para manter em segredo o nome de pessoas ainda vivas).
Apesar de acessar livremente o País, a clara postura do francês contra o Regime Militar teve seus reflexos – aqui, sob forma de uma reunião que jamais aconteceu. Um jantar organizado por um casal local para dar as boas-vindas ao pensador-celebridade é o maior exemplo: a hora do encontro ia se aproximando e os convidados começaram a ligar informando, cada um com sua desculpa, que não poderiam comparecer. A anfitriã ligou para Silke Weber para compartilhar o constrangimento e informar que estava cancelando o jantar. O fato é que vários daqueles que bradavam o nome de Marx aos quatro ventos tiveram medo de se ver associados ao filósofo. Mais difícil admitir: a clara homossexualidade de Foucault também parecia causar certos melindres. Sobre tal questão — o preconceito que burramente eclipsou em alguns o fato de o senhor Michel ser um consistente pensador —, vale destacar uma matéria publicada na Folha de S. Paulo no momento em que o filósofo estava no Nordeste, cujo título é Foucault na Bahia, atrás de Eros: "Envolto num proposital anonimato, o 'maitre à faire' Michel Foucault desembarcou dias atrás em Salvador (...). E por lá continua, despreocupado, sem explicar os motivos reais (se é que existem) desta sua nova incursão ao Brasil. (...) As mais recentes escavações do 'arqueólogo do saber' estão agora voltadas para outra de suas curiosas teorias, a da diferenciação entre a arte erótica (tipicamente oriental) e a prática erótica (tipicamente ocidental). (....) Na Bahia, sabe-se, as coisas se passam de modo único e diferente. Iconoclasta nato, o francês Foucault não está deixando por menos em seu périplo baiano: a única companhia por ele julgada conveniente em seus momentos de relax tem sido um guapo rapaz, culto e belo, conhecido naquelas plagas como Paulete. Elementar, diria, para quem costuma afirmar ter um prazer quase erótico em sua 'artesania'". Foucault era, sem surpresas, uma persona non grata.
Ao mesmo tempo em que era rechaçado por comentários maldosos e fãs acovardados, Foucault era extremamente assediado por estudantes que queriam chegar mais perto para ouvir o integrante do Collège de France. Ele mesmo afirmou que nunca havia encontrado, na vida, tantos estudantes "ávidos em saber" como no Brasil (mesma opinião foi dita sobre a Tunísia). Havia, no entanto, uma não muito agradável questão: Marx era constantemente trazido à baila pelos intelectuais e estudantes que o procuravam, o que teria aborrecido profundamente o visitante. Um daqueles que cutucou o filósofo com o "Barbudo" durante o minicurso realizado no prédio do Centro de Filosofia e Ciências Humanas foi Gadiel Perrusi, hoje professor aposentado do Programa de Pós-Graduação em Sociologia. "Foucault disse que a trajetória cultural do mundo ocidental havia começado na Idade Média, no momento em que se instituiu a confissão católica. Eu pensei 'ai meu Deus do céu'... e perguntei, com muito cuidado, se nossa trajetória não havia começado com a acumulação primitiva do capital", conta. Foucault, que gostava de ter a última palavra, foi enfático. "Eu tenho o direito de criar a minha própria periodicidade." Ganhou mais fãs e mais opositores. Ao contrário da maioria daqueles que tentavam chegar perto da magnífica cabeça do senhor Michel, o professor não era um tributário da graça foucaultiana. "Ele era muito vaidoso e suscetível a qualquer crítica. Era palavroso demais."
Heliana Conde pontua que o filósofo nunca se disse antimarxista, embora, em um momento de raiva, cansado das mesmas perguntas repetitivas ouvidas em solo brasileiro, tenha exclamado: "Não conheço esse senhor!" (referia-se, claro, a Marx). "Os focos das criticas de Foucault eram a 'comunistologia' — obediência dos intelectuais aos ditames dos partidos comunistas — e o 'marxismo acadêmico' — para o qual só poderia dizer-se marxista aquele que citasse infinitamente Marx, enquanto o próprio Foucault, que o utilizava, fosse visto como não marxista ou antimarxista. Embora Foucault sempre tenha dito que era impossível, no presente, "ser historiador sem ser marxista." Havia, no entanto, vácuos consideráveis entre os pensamentos dos dois hits acadêmicos, diz a pesquisadora. "Foucault rejeitava que se metesse dialética em tudo, acolhendo outras formas de transformação que não a negação; contestava o determinismo em última instância pelo econômico, embora não rejeitasse a correlação do econômico com outras instâncias; abominava o 'marxismo humanista', a seu ver nada marxista, aliás."
Distanciamentos intelectuais à parte, Gadiel Perrusi foi um cavalheiro e levou o filósofo para uma série de locais, procurando entretê-lo, tarefa que compartilhou com Silke Weber e Maud Fragoso, autora do livro Mulheres encarceradas. A pesquisadora ficou preocupada quando todos começaram a se afastar do autor de Vigiar e punir com medo de levar um beliscão da ditadura. "O que diabos íamos fazer com Foucault aqui?" Foi uma espécie de Amazing Race intelectual, onde não faltou atração turística para dar conta do tempo livre do respeitado senhor: Perrusi o acompanhou a Igarassu, onde visitaram a Igreja de São Cosme e Damião, e ao Convento de Santo Antônio e ao Engenho São João, em Itamaracá. Segundo Perrusi, o intelectual, depois de várias explicações sobre o funcionamento do engenho, não disse uma única palavra no fim da visita. "Eu não tive qualquer importância nessa passagem dele por aqui, fui apenas seu chofer." Com Silke, ainda acompanhou Foucault a antiga Casa de Detenção do Recife, atual Casa da Cultura. O espaço era de especial interesse, já que, como conta o professor aposentado, o projeto arquitetônico é de origem francesa, quase cópia das antigas prisões gaulesas. Mais: o projeto de Mamede Ferreira (1850) segue o modelo extensamente estudado por Foucault e seus tantos seguidores, o panóptico de Jeremy Bentham em 1785, onde vários indivíduos em cárcere podiam ser observados por uma única pessoa instalada em uma torre. Havia um prédio com a mesma ideia em Paris, o Hospital Lariboisière, de 1839, que o filósofo já conhecia bem. "Ele ficou muito interessado na construção, fez várias perguntas", lembra Silke.
Foucault ainda foi visto em Olinda, passeou pelo Alto da Sé, onde viu os músicos, os vendedores de artesanato, as tapioqueiras que décadas depois foram convidadas a sair do local. Dali ele também viu as duas cidades irmãs mais uma vez, novamente, como sempre, ensolaradas — e mais uma vez, novamente, como sempre, povoadas pelas frituras e pelo álcool, pela roupa curta ou quase inexistente, pelo suor e a pele exposta. Nunca mais voltou ao Nordeste, nem ao Brasil. Morreu oito anos depois, sem conhecer, no Recife, os bares de beira de calçada do Centro, cheios no final de expediente, os turistas que passeavam pela feirinha de Boa Viagem em busca de sexo e juventude, os tatuadores que sentavam-se — tentadores para uns, ameaçadores para outros — ao longo da Rua da Aurora. Morreu no dia 25 de junho de 1984, sabendo que Recife e seu entorno não eram apenas aquele sol, os engenhos, a Casa de Detenção, a Grande Bunda, o peixe frito, o jantar que não aconteceu. Sabia que a cidade também era viva no escuro — que era viva, exuberante, complexa e suada no escuro. Agora está ali, noite e dia, enterrado na região de Ródano-Alpes (Cemitério do Vendeuvre). Agora é ele a atração turística.
Fabiana Moraes é jornalista e doutora em sociologia. Informações de artigos também realizados ao lado de Heliana Conde, pelas professoras Luzia Margareth Rago (Universidade Estadual de Campinas/Unicamp) e Adriana Maria Brandão Penzim (PUC/MG)