Que ele é um dos pintores brasileiros mais relevantes quem esteja bem-informado sobre a história da Arte, a partir dos anos 1960, não pode ignorar. A maioria certamente desconhece o escritor João Câmara. Ele lançou, há poucos meses, um livro de contos nada corriqueiro. Na verdade, de todo inusual. Pela publicação em si: foram duas edições: uma, de 2022, brochura (Rio de Janeiro: Topbooks); outra, de 2023, em dois volumes, de luxo (São Paulo, J.J. Carol); e pelo conteúdo: onde há desde histórias de ficção científica até composições dentro do realismo irônico de Machado de Assis e Laurence Sterne. O título: Lidando com o passado e outros lugares.
Se concentrarmos a leitura na edição popular – muito bem impressa e ilustrada até fartar o mais exigente dialético de texto/imagem –, o que vamos encontrar? 655 páginas da literatura em prosa das mais elaboradas no Brasil nos últimos anos. Com o paradoxo de que sendo um livro quase de estreia parece de obras completas.
Em João Câmara pode-se dizer que a habilidade para as letras e os ritmos – “sobretudo os inumeráveis”, como diria Manuel Bandeira – nasceu a par e passo ao seu gosto e habilidade para as cores e as formas. Apenas não ‘expôs’ em livro as palavras que vinha ‘desenhando’ e ‘pintando’. Ao contrário, ‘impôs-se’ a severidade do silêncio exigente. Basta ler os seus artigos, os pequenos ensaios sobre arte e os contos publicados na juventude em jornais para perceber, já naqueles momentos, o escritor. Ele, porém, preferiu dar-se a ver e a ler como autor de ficções décadas depois da sua consagração como pintor.
Foram muitas as exposições e os textos que exaltam o seu talento e a força de sua arte. Uma das mais ‘remotas’ apreciações é esta do crítico Frederico Morais, publicada no Diário de Notícias, do Rio de Janeiro (7-1-68), quando Câmara contava 24 anos de idade incompletos: “O jovem João Câmara Filho, que penetra, fundo, nas mais remotas tradições culturais do Brasil, mesmo o Brasil pré-cabralino, pré-colombiano e também tropical (em cuja obra, sobretudo, no seu tríptico, ressalta a violência da cor, a acuidade do desenho e o uso de uma matéria densa e grossa)...” Há outra ainda mais antiga, da coluna Diário Artístico, no Diario de Pernambuco, 18 de setembro de 1962. Quando ele conquistou o 1º prêmio no 21º salão do Museu do Estado de Pernambuco, pela pintura Sangue vertido II, o crítico Joel Pontes comentou: “Quero lembrar aos leitores que esse mesmo jovem artista consegue, em poucos dias, dois prêmios importantes: este, do Museu do Estado e o 1º prêmio de pintura do XI Festival de Arte de Belo Horizonte. 1962 é, portanto, o ano de seu ingresso vitorioso no grupo dos nossos artistas mais prestigiados pelos júris de concorrências.”
É por esse tempo que ele começa a colaborar no jornal Última Hora, no Recife, com textos sobre artes plásticas. E em programas na Rádio Universitária da Universidade Federal de Pernambuco. O impacto da sua pintura é tanta que, num comentário anônimo publicado no Diario de Pernambuco, houve quem não hesitasse nesta comparação: “João Câmara, apenas 24 anos, pintor maior, é hoje, uma figura tão importante da pintura brasileira quanto João Cabral de Melo Neto, na poesia”.
Uma das melhores sínteses – também associando-o a João Cabral – é a de Paulo Fernando Craveiro, “Um pintor só lâmina” (ver Diario de Pernambuco, 20 de julho de 1972): “Aqui está João Câmara Filho, cavaleiro paraibano/pernambucano da Ordem do Distorcionismo. Cenografista do monumental. Maestro do bestiário fantástico. Contestatário da arte encantatória. Um violento que é, entretanto, capaz de ‘falar do mistério no seio do próprio mistério’, condição essencial (segundo Kandinsky) para a elaboração da arte”.
Os elogios em torno de sua arte se mantiveram constantes, da estreia à maturidade. Ainda no começo da sua trajetória, dizia-se dele: “uma projeção filosófica de uma personalidade profundamente original e vigorosa”; e “a sensibilidade criativa está numa permanente unidade com a inteligência”.
A admiração pelo pintor ocorre quase com o de crítico de arte, atividade que inicia em 1962. No ano seguinte, afirmava Genilson Soares, no Diario de Pernambuco: “Estamos praticamente restritos a um só crítico de arte: que é João Câmara”. Ecoa Edmirson Catunda: “No Recife – excetuando João Câmara, que foge à crítica de província – não existem pessoas que critiquem o que fazemos”. Portanto, quando, em 1968, dá início à coluna “Arte e outras”, no Diario, já acumulava seis anos de exercício crítico. No tal 1968 do maio das rebeliões insolentes de Paris e do dezembro do AI-5 no Brasil, ele conclui o bacharelado em Psicologia Aplicada da Universidade Católica de Pernambuco.
Nesse mesmo ano, César Leal, referindo-se à pintura de João Câmara, sublinha a expressão “fantasia ditatorial ou produtiva”. Está no artigo “Um pintor e sua linguagem”, publicado no Diario de Pernambuco, em 11 de agosto de 1968:
“Mas o que é um pintor senão um poeta? Poetas são todos os grandes criadores, façam versos ou não. Uns se servem da pedra. Outros da cor. Outros da palavra. Todavia, palavras, sons, cores ou pedra são apenas materiais secundários com os quais trabalha o poeta, porque o importante mesmo é a imagem subjetiva das coisas no espírito. Assim, para expressar objetivamente tal imagem, o poeta – seja pintor, escultor, compositor ou poeta – recorre à cor, à pedra, aos sons, à palavra. Esses elementos são apenas signos através dos quais o artista revela a consciência dos homens a imagem que tem presente na alma, mas o quadro ou o poema podem existir independentemente das cores ou das palavras”.
Menos de um mês depois disso, no mesmo jornal (1º de setembro), em “As pinturas de João Câmara”, afirma Renato Carneiro Campos:
“Aceito que haja, em alguns quadros de João Câmara, doses de frieza e ironia, laboradas de sarcasmo, um diluído fogo de satanismo. aceito, ainda, existir até um não pequeno contingente de sadismo. mas, pergunto eu, estas chamadas antiqualidades não existiram em Brueghel e Goya? Não sobrevivem em Picasso e Salvador Dalí? Não existiram, saindo das artes plásticas, em Choderlos de Laclos, Marquês de Sade, Dostoiévski, Proust, Joyce e em Kafka? João Câmara é kafkianamente plástico. Está ligado também a remotas raízes ibéricas, a cores e luminosidades brasileiras, sem deixar de ser universal em sua visão do mundo”.
Não foram apenas César Leal e Renato Carneiro Campos os que estabeleceram paralelos entre a literatura e a arte de João Câmara. O próprio João Câmara fez isso, quando, em 30 de julho de 1973, no Diario de Pernambuco, afirmou:
“Meu tema (...) é a minha técnica. E o pintor lida com as cores como o escritor luta com as palavras. Na posse dos seus elementos de expressão, o artista está à procura de valores permanentes e universais, que alcancem o Homem em todos os tempos, através do milagre da Arte”.
Após décadas obtendo sucesso “através do milagre da Arte”, João Câmara resolve expor em livro sua arte literária. Especificamente o que, como contista, produziu ao longo do tempo. Alguns desses textos estão disseminados em jornais nos anos 1970 e 1980. Os mais recentes dos divulgados em periódicos datam do período (a partir de 1999) em que esteve o jornalista José Nêumanne Pinto à frente do Jornal da Tarde, de São Paulo. Fora do âmbito jornalístico, há algo dessa ficção já elaborada no livro Originais, modelos e réplicas.
A literatura nunca foi para ele um hobby, uma diversão de domingo. Pense-se na lira dos 20 anos ou na lira dos 70 anos, o fato é que nunca se tratou de algo romântico. Dos 20 aos 40, dos 50 aos 80, a literatura esteve e está presente como arte madura. No dia 12 deste janeiro de 2024, completa João Câmara 80 anos de idade. Tem em preparo uma grande exposição (a ser realizada no Recife no primeiro semestre) e um novo livro de contos: A caminho de Querétaro. Um momento especial para o público admirar o pintor que, contra viento y marea, como se diz em espanhol, ficou imune a modismos e facilidades. É pintor, e pintor de figuras; com isto, irmana-se a alguns dos maiores da arte ocidental. Dá para pensar num banquete onde ele estivesse com Van der Weyden, Dürer, Bosch, Brueghel, Velásquez, Tiziano e outros com excepcional talento para pintar. Ou, como melhor disse Aracy Amaral sobre Câmara: “É tão excepcionalmente pintor, que se sente bem à vontade propondo repertórios inesperados na combinação dos elementos que compõem a figura: o torso, as mãos, os pés, os braços. Uma retratística de espanto. Que longe de lisonjear o retratado o envolve em terror. A antiencomenda”.
Disposição similar de não ir com os demais nem trilhar sendas batidas parece nutrir o seu trabalho na “literatura de imaginação”. Conforme a bonita expressão repetida por Harold Bloom, ao escrever sobre contistas.
Como atitude vital e estética, nutre a literatura de João Câmara um senso de ostinato rigore. Não é por causa da demora em fazer-se conhecer como escritor que se deve considerá-lo como um dos casos mais singulares da literatura brasileira, e, sim, pela originalidade dos seus escritos. Ainda que, como se disse, sua dedicação à escrita esteja documentada desde o começo de sua trajetória como artista plástico, sua obra literária começou a ser divulgada em livro há pouco mais de duas décadas. Se considerarmos como ponto de referência Abishag – hóspede inevitável (Editora J. J. Carol, São Paulo, 2012).
Desde o título até o fim dessa narrativa, tem-se aquilo que alguns críticos, não de todo isentos de malícia, chamam de “escritor para escritores”.
Há algo de Mallarmé num livro que se mostra ao leitor como um projeto tão arquitetônico ou arquitetado. Sem importar o tema e a dicção escolhidos, integra aquele conjunto de obras que, se é permitida a velha analogia do corpo, são escritas mesmo com o cérebro. Concepção não dos humores, mas da geometrização do pensamento. Um tipo de livro que, sendo uma narrativa inteiriça, não se tece como uma prosa comum. É uma prosa que emana de rigor e vigor similares ao da poesia. Quer dizer: vertebrada e animada.
Exemplos ilustres dessa “família” são os Cadernos de Malte Laurids Brigge, de Rilke, e Monsieur Teste, de Valéry. O início deste é quase um sorriso – pejado de ironia sardônica – de uma Gioconda 100% feita de palavras: “A estupidez não é o meu forte”. Sim, João Câmara poderia usar como epígrafe para todos os seus textos de escritor de ficção, além dessa frase de Valéry, outra, igualmente autodefinidora. Aquela em que o próprio Valéry comentando o seu personagem Teste se refere aos “estranhos excessos de consciência de si”. Consciência/inteligência – valha a redundância – ativa, que vigia e vigia-se. Não à maneira da vigília dos Finnegan, mas de certos seres da mitologia. É a mitologia, por sinal, elemento essencial da sua escrita.
Se como pintor João Câmara Filho é um inventor de cenas, personagens e histórias, o que dizer do escritor? Que a escritura prolonga, complexifica, adensa determinados desassossegos pictóricos. Em suma, dois trabalhos mentais que, se mais fundamente apuramos, são um só. Que extrapolam suas dimensões e reconfiguram suas próprias fronteiras. Daí que, para perceber melhor essa obra literária, deva-se pensar nela no seu todo, que inclui as ilustrações e envolve o apuro gráfico/estético da edição.
Não se trata mais apenas de pensar de maneira estática em termos como “bidimensional”, “tridimensional” etc. E, sim, de testemunhar o nascimento das criaturas cujo corpo e alma são letras, numa cabala em que se diverte o autor ao pensar/sentir enquanto cria. Ao formular o texto também faz nascer o seu leitor, aquele de tipo baudelairiano: hipócrita, irmanado e igualado ao poeta/escritor.
Abishag funda sua morfologia (e nisto, como se disse, se aparenta ao Livre, de Mallarmé, mas aqui como prosa), mas de um modo irônico. Em que a explicação do projeto se apresenta como “bula de remédio”. Manual de instruções para leitores previamente instruídos e não para os muito distraídos. Daí o título escolhido pelo autor – Posologia, modo de usar:
“Estas folhas podem ser percorridas em suas letras maiores, através das imagens, até o fim.
“O breve tempo tomado ao leitor seria o caminho veloz no qual os eventos tendem a se comprimir sob o peso da idade.
“Nas letras menores há diversões e derrotas no percurso: manobras inúteis, talvez, para delongar o caminho e evitar seu termo.
“O leitor poderá ignorar o texto em letras menores, poderá deixá-lo para depois ou nele cair para safar-se da correnteza ligeira, vagando e divagando com o autor por um pouco mais de tempo.
“O autor, aliás, confessa que estas folhas de palavras e figuras querem ser uma comédia para idosos já crianças, tenham sido eles contemplados, punidos ou, apenas, alcançados pela velhice.”
Ninguém começará a verdadeiramente ler essa narrativa sem antes ter feito outra leitura: a da Bíblia. Especificamente o livro de I Reis, 1:1-4). Aí está a Abishag original.
João Câmara escreveu sua própria interpretação dessa notável personagem-metáfora bíblica, tanto em palavras quanto em linhas e cores. Podia ser sua Galateia. Alguém lembrará que a Galateia cipriota e cuja vida está resumida no décimo livro das Metamorfoses de Ovídio emanou de uma escultura. Continua, porém, válida a analogia, menos por esse aspecto de que arte ela brota, e, sim, porque representa talvez um dos primeiros exemplos de Realidade Aumentada. Explica-se: o rei Pigmalião, que desprezava as mulheres comuns, erigiu uma estátua – Galateia – e se apaixonou por sua própria criação. Por artes da deusa do amor, Afrodite, a frieza do mármore e do marfim foram metamorfoseadas no corpo de uma mulher perfeita. Coitado do Adonias, condenado à morte pelo irmão por desejar casar-se com a que fora concubina do seu pai, Davi – que, sinal, não chegou a “conhecê-la” - no sentido bíblico.
João Câmara tem antecessores importantes na fixação plástica e literária de Abishag. Ela está num quadro do seu conterrâneo Pedro Américo, e está presente na tragédia Saul, de Voltaire. Mas é, de novo, em Rilke, que podemos encontrar um paralelo com João Câmara. O texto dele, de 1905/06 tem em comum o título, que é, também, simplesmente, “Abishag”, e atmosfera erótica que nutre o poema do começo ao fim.
O conto que dá título ao livro, Lidando com o passado, começa com o contraste natureza/cultura. O viço de uma, o rápido decair da outra. Entre ou dentro de ambas, o bicho mais estranho e adoecido de quantos já existiram: o humano. Seria exagero imaginar numa composição a quatro mãos de Kafka e Orwell sobre o holocausto e os campos de concentração? Esse texto de João Câmara parece dizer que não. A palavra-chave da história, que praticamente traduz o título, é Vergangenheitsbewältigung. Significa “fazer frente ao passado”, ou seja, lidar com ele. Ou, de modo mais específico, o passado do Terceiro Reich. Se quisermos estender mais a metáfora: o momento em que o humano passou a sentir prazer com gestar sua desumanidade e amesquinhar-se abaixo dos vermes. Conto para ser lido e relido.
A Guerra paira, com suas “construções”, desconstruções, destruições. Com “as letras escalavradas”, com as “lascas de geometria angulosa”, com uma casa definida como “verruga idosa”.
Nesse conto, como em todos os do livro, há uma característica soberana: a do artifício. Nada sugere espontaneidade. Sob a forma em que está tecido Lidando com o passado (o conto em si) mencionado, parece dar razão àquela verdade proposta por Baudelaire: “Tudo aquilo que é belo e nobre é resultado da razão e do cálculo. O crime, no qual o animal humano extrai o gosto através do ventre materno, é originalmente natural. A virtude, pelo contrário, é artificial, sobrenatural. O mal se realiza sem esforço, naturalmente, por fatalidade; o bem é sempre produto de uma arte”.
Para percorrer de modo seguro – ou, melhor, obter um “mapa” dos mais de 40 contos do livro – é essencial ler o texto O lugar da palavra, de Weydson Barros Leal. Serve como guia prático, mas consegue mais: instigar o leitor a querer conhecer cada uma das histórias cuja sinopse e sentido ele ensaia, esboça, insinua, sugere, interpreta.
Para uma aproximação de um aspecto específico da literatura de João Câmara, uma outra fonte importante é o artigo Entre o dito e o visto: narratividade em Abishag, de João Câmara, das professoras Sherry Morgana Justino de Almeida e Amanda Mirella Simplício da Silva. Elas estudam um tópico que merece uma atenção óbvia no caso do livro de Câmara por ele ser um pintor. A do livro de ficção ilustrado. Na verdade, da imagem como elemento da narrativa, não como mera ilustração. Isso também pode ser investigado em outros autores, como Sebald (mencionado por Weydson Barros Leal) e Umberto Eco (especialmente em A misteriosa chama da rainha Loana, de 2004).
Literatura & Pintura, arte poética e pictórica estão de tal modo imbricadas na obra de João Câmara, que não limitam sua presença ao que escreveu como ficcionista. Basta lembrar que, por vários anos, a partir de 2006, ele trabalhou obras em grande formato baseadas em temas literários. Sem falar de uma obra muito anterior – de 1976. As litografias que produziu para o livro Seis cantos do Paraíso, de Dante Alighieri, traduzidos por Haroldo de Campos. Foi esse livro publicado pela Editora Fontana, do Rio de Janeiro. Por iniciativa do escritor e editor Gastão de Holanda. Na literatura, alguns dos melhores têm em si aquele crítico tão valorizado por Eliot e Pound. Em João Câmara, parecem existir dois. Ambos com vocação para ficcionalizar os enigmas do tempo e do espaço. Seja sob a forma de pintura, gravura, arte digital e textos literários. Estes pertencem àquela esfera da literatura como enigma e ludismo, presente em autores como Joyce e Cortázar.
Tal é a profusão de referências culturais e literárias nos seus contos que, juntamente, com o “cálculo” a conduzi-los, há uma profusão de leituras. A escrita de quem vê “como um danado”. Ao escritor João Câmara nunca falta aquela convicção também formulada por Fernando Pessoa: “Ainda é uma grande coisa a ironia”.
Mário Hélio é editor das revistas Pernambuco e Continente e escritor. Entre outras obras, autor de Casa-Grande e Senzala - O livro que dá razão ao Brasil mestiço e pleno de contradições (2013).