1. EU TEÇO A LINHA QUE TE ASSUSTA
Este texto tem formato de polvo e movimenta-se como um: oito braços fortes, com ventosas, dispostos em volta da boca; quando atacado, o molusco marinho apresenta como mecanismos de defesa as suas glândulas de tinta, a camuflagem e a autotomia (automutilação) dos braços. Com os membros tão perto da boca, entende-se que a força ronda todo alimento — a fome sempre tão próxima à guerra, enquanto o que sustenta convive lado a lado com tudo o que é luta e tudo o que é morte. Em cada tentáculo desse polvo-escrito, estará uma possível história do monstro como corpo ativo de nossa cultura. De acordo com China Miéville[nota 1], a narrativa de todas as sociedades até então existentes é a história dos monstros, e o homem traz consigo a monstruosidade como o sonho da razão. Sem monstro, não há pensamento, não há marca do tempo. O monstro não é a patologia, mas o diagnóstico e a glória.
Assim, a narrativa dos seres híbridos é também a genealogia da metamorfose. O monstro é resultado de uma equação que saiu do controle. Um corpo que se solta porque obedece, sobretudo, ao tempo. Só o divino, a representação de Deus, pode sustentar o mesmo corpo até a morte. É preciso ser monstro para seguir vivo; ser monstro nos torna mortais. Desde a figura mitológica de Licáon — grande rei da Arcádia transformado em lobisomem por Zeus — passando pelos poemas de Ovídio, a Medusa, o clássico de Mary Shelley, King Kong e os vampiros modernos, percebe-se que o monstro encontra na metamorfose a sua prisão e a sua liberdade. A monstruosidade faz parte da nossa construção identitária, de reconhecimento do seu corpo como sendo seu: o monstro que sou me olha no espelho. Mas, quando nos permitimos olhar de volta para ele?
Em Metamorphosis and identity, Caroline Walker Bynum traça algumas relações entre essas duas palavras com tantos tentáculos teóricos quanto um polvo. Ao longo do livro, a historiadora explora uma espécie de obsessão do Ocidente com o processo natural de mudanças do corpo e da personalidade. Bynum analisa por que tantos filósofos, historiadores e religiosos foram interessados, desde o século XII, em observar o processo metamórfico individual. Em vários dos escritos medievais, a palavra “metamorfose” aparece como variação de mutatio, transformatio, diversitas, alteritas. Mas, para além das combinações de espécies e transmutação de substâncias e partes do corpo, a metamorfose também surge como uma palavra que define as oscilações do curso moral de cada sujeito. A transgressão do caráter que pode alterar e te levar à condição de fera. Quando Licáon oferece as entranhas do seu filho a Zeus, o Senhor do Olimpo decide que é hora de tirá-lo da condição de homem e operar o castigo da metamorfose.
A história dos monstros permanece ativa e contínua em nosso contexto cultural por séculos, permeando as fantasias com imagens estranhas, sutis, misteriosas, muito ambíguas em suas definições. Tem-se o monstro como glória e transgressão, mas tem-se também a sua figura como representação do maléfico, do que nos causa horror e perigo. Aqui, é importante que o texto-polvo jogue um jato de tinta para os seus leitores menos atentos: Nestes monstros[nota 2], entende-se que o “mal” existe e com ele se convive. O mal que nos cerca como sujeito desejante, os nossos “demônios” e peculiaridades, deles não vai adiantar fuga ou luta. Tudo o que nos coloca no inferno precisa ser encarado e olhado de volta. Tudo o que o outro aponta como monstruoso em nós deve ser questionado: é maléfico, aos olhos alheios, por que difere do hegemônico? Por que amedronta o status quo vigente? Ou por que não faz parte do grupo cultural majoritariamente patriarcal, branco, heterossexual? O mal é visível, em muitos momentos, porque foi nomeado como “minoria selvagem”; porque do ponto de vista de raça, gênero e classe social, é considerado com baixo (ou nenhum) valor de vida. O mal do monstro é também um incômodo na estrutura de poder.
No ensaio intitulado Monstros como metáfora do mal[nota 3], o pesquisador Julio Jeha analisa a imprecisão em definir o que é o “mal”, ao longo dos séculos. De acordo com Jeha, as metáforas mais comuns utilizadas para definir o mal, pelos escritores, são os crimes, o pecado e a monstruosidade. Ele afirma: “Quando o mal é transposto para a esfera legal, atribuímos-lhe o caráter de transgressão das leis sociais; quando o mal aparece no domínio religioso, o reconhecemos como uma quebra das leis divinas, e quando ele ocorre no reino estético ou moral, damos-lhe o nome de monstro ou monstruosidade”. Dessa maneira, o indivíduo que se encontra sob a esfera do mal está vivendo à parte, longe da realidade de dominação hierárquica e, portanto, pautado fora da organização política de um “estado oficial” das coisas — como, por exemplo, no enredo de Nosferatu (1922), no qual a peste só acaba quando o vampiro entra em colapso: ou seja, o mal precisa ser vencido para que a roda social volte a girar na direção da saúde e da abundância.
Esse corpo metamórfico e sinistro, então, torna-se figura distante da sabedoria e dos mecanismos civilizatórios. Cada vez mais isolado do pensamento cartesiano e do que chamamos de “normalidade”, o monstro transforma-se em uma figura limítrofe: está sempre entre a história de como se tornou agente do terror e as contingências de sua existência no laço social (doenças, castigos, desgraças e morte). O monstro, muitas vezes, é significado de lição punitiva para aqueles que pensam em transgredir ou aliar-se ao “mal”, ao submundo dos não-humanos. Nesse aspecto, os contos de fada funcionam como constantes introduções narrativas, para nós, aos dolorosos destinos dos monstros — e de outros seres de índole “duvidosa”, como as bruxas — e as suas funções disruptivas na sociedade.
No cenário iniciático das histórias infantis, destaco, especificamente, a figura do lobo. Para além da simplificada representação do destruidor de lares presente em Os três porquinhos e Chapeuzinho vermelho, o lobo — também os lobisomens, como na lenda de Licáon — são figuras que, de acordo com Caroline Bynum, distorcem e represam a ideia de metamorfose, visto que, muitas vezes, colocam uma alma “racional” no corpo animalesco. Assim, escolhi um trecho de A companhia dos lobos[nota 4], conto da escritora inglesa Angela Carter (1940-1992), no qual toda a estrutura de medo e abuso presente em Chapeuzinho vermelho é revertida a partir de outras possíveis tensões postas em evidência pelas atitudes do personagem monstruoso: “Aquele prolongado uivo vibrante, com sua ressonância medonha, tem uma tristeza inerente, como se as bestas quisessem ser menos bestiais, se ao menos soubessem como, e nunca parassem de lamentar sua condição. Há uma vasta melancolia nos cânticos dos lobos, uma melancolia infinita como a floresta; sem fim como essas inacabáveis noites de inverno e ainda essa tristeza pavorosa, esse lamento, desejos irremediáveis, jamais comoverá, pois nenhuma frase sugere salvação; essa graça não pode vir ao lobo pelo seu próprio desespero, apenas por meio de algum mediador externo, que, às vezes, o animal olhará como se estivesse acolhendo a faca que o executará”.
Aqui, a questão do monstro aparece no corpo (uivo), na consequência da atitude desse corpo (ressonância medonha) e no lamento de uma condição bestial: a tristeza inerente de quem está preso na melancolia infinita de ser animalesco e reconhecer o seu próprio desespero sem salvação aparente. O trecho demonstra o aspecto de solidão extrema no exercício da monstruosidade e coloca o lamento externalizado como uma figuração visível-invisível que corta a noite. O parágrafo de Carter é, principalmente, construção de imagem do monstro por meio de sua voz. Ou seja, pelo som e espaço descrito, nada fica muito definido, mas se torna visto por nós.
“Não há imagem sem imaginação, forma sem formação, Bild sem Bildung”, escreve Georges Didi-Huberman em Falenas (1998) e, ato contínuo, participo de sua formulação: não há monstro sem imagem, forma monstruosa sem formação. A cultura — as artes visuais, o cinema, a literatura, e mesmo as canções — é responsável pelas representações figurativas que são repertório, em nossa memória, do que nos assusta ou nos convida ao desejo proibido. Desde os mitos gregos, a sociedade recebe uma tempestade de possibilidades imagéticas das maneiras como o monstro dialoga com o mundo: como ele age, destrói, ama, grunhe, alimenta e some. Assim, compreender a relação entre a monstruosidade e as suas imagens faz parte do sonho da razão de que fala Miéville. Eu vejo o monstro e seus rastros para que, enfim, possa chegar ao momento de encará-lo.
2. O MONSTRO ESCAPA, O MONSTRO HABITA
Quando Didi-Huberman analisa o comportamento das falenas[nota 5] e observa, a partir da dinâmica das borboletas noturnas, relações entre a imagem e o real, uma espécie de trilho, dentro do campo dos estudos da imagem, pode ser mapeada entre as frestas do que nos parece invisível. Com a referência às falenas, Didi-Huberman constrói o impulsionamento do desejo por meio do que (não) se vê. Nada é tão real quanto o que escapa e, assim, opera-se um tipo de pulsão do mundo. Do mesmo modo, pode-se pensar a imagem do monstro contida no instante exato entre um bater das asas de borboleta. O monstro escapa e volta, escapa e volta… no eterno retorno de suas quebras de leis.
Sobre a metamorfose dos insetos, o teórico escreve “Temos muitas vezes a impressão de que, também numa metamorfose, o essencial nos falta, o essencial da duração, da mudança, da plasticidade e do desdobramento das formas”. Não se tem acesso aos pormenores do processo evolutivo iniciado na larva e concluído nas cores deslumbrantes de uma borboleta. Algo de mistério permanece e não vai ser possível compreender enquanto buscarmos uma impressão de totalidade no processo. Mais à frente, ele sentencia: “As borboletas, sem dúvida, o paradigma ideal para a imagem pregnante por excelência, a imagem simétrica. Mas também nos mostram que toda simetria está à espera do acontecimento que, de um golpe, a deslocará”. E, conclui, por fim, que a questão está na maneira como “a desmesura se resolve na simetria. Desmesura cuja o destino se chama consumação: a uma só vez o luxo (esplendor desperdiçado…) e a destruição (…até a ruína)”.
Entre o luxo e a destruição, encontra-se as possíveis imagens dos monstros. Fora de qualquer tipo de harmonia, as criaturas — sejam elas as naturais, enfeitiçadas ou mesmo as que foram criadas “manualmente” pelo homem, como em Frankenstein (1818) — são os corpos que podem passar pelos castelos, laboratórios, florestas, cavernas, arranha-céus e labirintos (a ver, por exemplo, o Minotauro do conto A casa de Astérion, de Jorge Luis Borges). Assim como na vida das borboletas, nem sempre acompanhamos de perto a metamorfose dos monstros, mas podemos rastrear os seus caminhos, os espaços que ocupam e as ações que escolhem tomar.
Dentro do contexto de jogo oscilante dessa consumação simétrica, reflito sobre o trabalho de algumas pintoras surrealistas e suas relações com a literatura hispano-americana contemporânea — o intuito é capturar os instantes que não vemos de imediato, mas que estão sempre ali, na frente de nossos olhos, pairando como as falenas. Pensar na vertente surrealista, quando se trata de monstruosidade, nos deixa em um lugar menos óbvio, desprovido da representação direta de algo horroroso, que nos causa nojo ou repulsa, principalmente, do ponto de vista estético. Proponho construir, então, uma imagem do monstro que se afaste dos grandes seres mágicos, mitológicos, propositalmente feios em suas aparências, e aproxime-se dos corpos híbridos, pouco definidos em categorias exatas. Observar, por fim, um corpo anárquico, difuso, carregado de ausências; a imagem do monstro sempre presa aos enigmas da metamorfose.
Na produção visual de Leonora Carrington (1917–2011) e Remedios Varo (1908–1963), podemos encontrar tipos de representações soturnas que nos mostram chaves híbridas entre monstro, animal e mulher. Ambas as artistas fazem parte do grupo de mulheres surrealistas que produziu bastante, no México, nos anos 1940 e 1950. Carrington era de origem inglesa; Varo, espanhola; porém, foi no território latino-americano, junto a outros nomes como Frida Kahlo (1907-1954), que encontraram uma linguagem em comum: a língua do universo surrealista trabalhada em temáticas como a casa, o corpo e a família. Também em seus escritos e diários as impressões de um corpo confinado e longe do laço social — Carrington foi internada em um manicômio e escreveu sobre a vivência no texto intitulado Down below[nota 6] — surgem em meio às passagens oníricas, com o monstro da loucura institucional à espreita.
Em um dos seus quadros, intitulado Três mulheres com corvos (1951), Carrington desenha, com a predominância do preto e do marrom, essa reunião de monstros ao redor de uma mesa de madeira na qual alimentos básicos estão presentes: peixe, batatas e leite. Um dos seres tem um corpo com traços femininos; outros dois têm pássaros na cabeça. A imagem parece o retrato de um sótão ou casa antes abandonada, agora cheia de monstros em confabulação ao redor de escassa comida. Algo parece estar sendo preparado ou conversado em segredo e assim também acontece em muitas pinturas de Varo, como por exemplo, na Criação de aves (1957). Na imagem, vemos esse ser híbrido que lembra uma coruja, sentada em espaço pequeno, ao que parece, localizado no topo de uma torre. Ela está, literalmente, criando pássaro com ajuda de uma máquina com aspecto alquimista. O monstro pode também, enfim, ser cientista da natureza e aproximar-se da sabedoria mágica do mundo.
Ambos os quadros dialogam com a produção literária latino-americana, seja no aspecto do realismo fantástico, seja nas influências góticas e imagéticas nas obras de escritoras como a uruguaia Marosa di Giorgio (1932-2004) e a argentina Silvina Ocampo (1903-1993). Nesse recorte, os monstros estão camuflados também em ambientes privados (casas, quartos, jardins) e aparecem com características nebulosas e em formatos que aludem a animais como raposas e lebres. Para a nossa construção da imagem do monstro faz-se necessário esse colapso que resulta em não entendermos exatamente o que estamos visualizando e, mesmo assim, acreditar em nossa imaginação. E, sobretudo, acreditar na ausência.
Escreve Marosa di Giorgio, em um dos fragmentos de Los papeles salvajes (1971): “O diabo bailava sobre os limões de fogo azul, bailava entre o perfume, sobre a folhagem, e sobre as flores, as frésias. Eu me ocultei junto à parede, assombrada ante aquele pássaro gigante, esse homem com garra e asa, cujo rosto desconhecido parecia o de meu pai, o de meus amigos e inimigos”.[nota 7] Quando cita a presença do diabo, Di Giorgio nos coloca em largo campo de interpretação. Do diabo clássico com tridente ao monstro de tantas cabeças, ou à representação pura, simples e patriarcal do monstro como sinônimo de violência iminente. Ela continua: “Eu me imaginava cada vez mais menina. Ele bailava e no baile caçava dálias, rosas e as engolia como se fossem almas”. O diabo é, assim como o monstro do quadro de Varo, alguém responsável por montar e desmontar a natureza. O monstro, neste ponto, é a imagem da autonomia quase soberana, distanciando-se da tristeza contínua dos lobos de Carter, por exemplo.
Ocampo trata da temática monstruosa e metamórfica no conto intitulado Sábanas de tierra (1987). Nele, um jardineiro transforma-se em planta; a mudança vai sendo narrada ao longo do texto, até que o homem acaba por prender sua mão na terra e não consegue mais soltar. A terra o engole para efetuar a metamorfose e o monstro “homem-planta” é esquecido após todos os seus sentidos serem tragados pelo reino vegetal. Se no quadro de Carrington temos o segredo ainda sendo conjurado pelo grupo de monstros-pássaros, no conto de Ocampo o segredo some junto com a metamorfose, o homem solitário se junta à totalidade da terra para prova.
A partir dos elementos surrealistas, fantásticos e góticos, a imagem do monstro se mostra desde a possibilidade de dança até a criação de novas espécies e a metamorfose completa em uma nova matéria. Assim, a consumação, o golpe de descolamento sofrido pela simetria como visto em Didi-Huberman, transformam os monstros, nesse contexto, em protagonistas das frestas do mundo que conhecemos e de um outro, criado por eles. Por fim, a imagem do monstro está ligada aos corpos indefinidos, associados a um movimento contínuo de presença e ausência. Nascidos longe do King Kong ou dos vampiros das séries adolescentes, esses monstros preocupam-se em nos avisar que o desejo e o silêncio correm em silêncio, lado a lado, prontos para nos engolir.
O texto-polvo se automutila neste ponto para surgir um tentáculo que se direciona a outros monstros menos palpáveis, menos visíveis. Monstros que são difíceis de capturar não importa quantas vezes as falenas batam as asas. Durante os últimos meses, tornou-se árduo pensar com os olhos quando estamos lutando contra algo que se camufla com mais astúcia do que todos os tipos de moluscos marinhos.
3. O MONSTRO E A COMUNIDADE
Aprender a conviver com o outro sob o signo da doença é encarar todos os tipos de monstros, mesmo aqueles que nem podemos delinear corpo, espaço ou ação. É permanecer com a impossibilidade de olhar de volta ao espelho e ver. Não enxergamos nada, mas sentimos tudo: desde o medo da morte até os sintomas de um vírus que nos parece indomável e com um tipo de metamorfose sem controle. Estamos tão perplexos entre o pânico e a indiferença que não deu tempo de a infecção sorrateira de covid-19 virar sinônimo de criatividade ou boemia, como a tuberculose[nota 8]. No que diz respeito à questão de nosso cotidiano como uma comunidade e agentes políticos, o vírus faz parte de um sistema no qual a definição de monstro é constantemente manipulada.
O conceito de comunidade foi definido por teóricos como Jean-Luc Nancy (comunidade inoperada) e Maurice Blanchot (comunidade inconfessável) por um viés filosófico no qual a comunidade seria um espaço de troca abstrato, com vias de experiência que não necessariamente passam pelo corpo exposto à violência do Estado, por exemplo. Porém, para pensar a monstruosidade, decidi por abordar o conceito pelos textos de Roberto Esposito. Neles, o teórico italiano aproxima a communitas do biopolítico e da ideia de que uma comunidade, nesses termos, só acontece por meio de projetos de immunitas (imunização). Esposito trabalha com a premissa de que a imunização é uma proteção negativa da vida; ou seja, a sua vida será protegida de maneira que sempre exista algo que a ameace. O monstro, nesse momento, é o puro mal que aparece em forma de doenças, de violência de direitos humanos, de falta de estrutura no âmbito de segurança nacional e de saúde, entre outras situações nas quais a comunidade permaneça em situação de alerta constante.
Na communitas, não existe um espaço que seja acolhedor para o sujeito, mas sim troca de cumplicidade pela ausência. Esposito afirma que as comunidades estão contidas no sistema da imunização (immunitas), no qual existe um pressuposto da existência do mal que se deve enfrentar sempre. Assim, o horror é o reproduzido de forma controlada. Pode-se interpretar o contínuo traumático que ronda as escritas da América Latina, em especial durante as ditaturas militares e o pós-ditatorial — a ver, produções de Roberto Bolaño (1953-2003), Ricardo Piglia (1941-2017) e Julio Cortázar (1914-1984), entre outros —, como rodas da engrenagem dessa comunidade que depende do que é precário, mal adaptado e violento, para que se erga e acabe por continuar a obedecer às regras do capital social, cultural, econômico.
Também agora, nos nossos dias, o cenário está construído para produção cultural e literária que tente abarcar uma fileira extensa de maléficos. Para além da questão extrema de saúde pública, o nosso campo simbólico foi invadido pelos monstros políticos de um governo de extrema-direita, para o qual algumas vidas valem mais do que outras. A necropolítica do governo bolsonarista, aliada ao vírus, deixou a monstruosidade em sua face mais hegemônica e simplista: a face do mal que se mostra todos os dias como ameaça não só de desvios morais, mas de desvios assassinos perante o contrato social.
No contexto de aproximações entre o humano e a ideia de corpo presente ativo no laço social, de acordo com Esposito, quanto mais o sujeito se sente ferido e exposto à sua própria alteridade, mais ele se sente obrigado a ter uma rede de proteção que seja capaz de imunizá-lo. Ou seja, essa lógica do discurso faz com que o sujeito se sinta inclinado à construção de um equilíbrio artificial que o condicione a balancear o desequilíbrio natural que o colocou em estado de “além si mesmo”. Na literatura, tem-se o exemplo de Estrela distante (1996), romance de Bolaño no qual tanto o poeta assassino Carlos Wieder quanto outros personagens estão implicados na sequência da comunidade que os deixa desestruturados — seja no âmbito político, corpóreo, intelectual ou afetivo. No nosso dia a dia, em dinâmicas impostas pelo isolamento social, estamos aprendendo como construir esse tipo de rede de proteção da maneira mais segura e honesta possível. Porém, a immunitas nos alerta: todo e qualquer movimento nosso já está previsto pelo sistema, pois, para Esposito, a busca pela imunização traz consigo conjuntos de ação nos quais existe a quebra da continuidade da vida comum.
Necessita-se, então, de um freio, uma disciplina que corte também a subjetividade, forma de violência que se justifica dentro do contexto comunitário em si. Quando buscamos por nossa rede de proteção, é porque o sistema da communitas está funcionando a pleno vapor, e já fomos violentados pelas contingências do “monstro primeiro”, neste caso, um vírus com mapeamento genético pouco conhecido. Assim, dentro da estrutura política contemporânea, o monstro não é mais soberano porque criativo ou detentor de segredos antigos, mas sim porque leva consigo uma potência de vazio que sobrevive em diálogo com o sistema imunitário: dessa maneira, ele nos incita a comportamentos de autodestruição e nos coloca na corda bamba entre o medo de ser infectado e a vontade de arriscar algum tipo de atitude pouco segura.
Como em Estrela distante, o nosso céu também irá se livrar, mesmo que momentaneamente, das apresentações absurdas e violentas da nossa ameaça mais direta. Seja diante do vírus ou do piloto-fotógrafo nazista Carlos Wieder, existe uma força primária que continua zumbindo mesmo perante os monstros da communitas. Essa vibração fica muito próxima do que podemos chamar de “instinto de sobrevivência” e traz consigo o signo da animalidade: uma zona de cruzamento de signos que interfere no tecido político, questionando o fazer viver da sociedade. O animal como monstro surge, na cultura, para contestar os corpos e seus afetos, nos colocando, mais uma vez, diante da pergunta: quando nos permitimos olhar de volta para o monstro? E, para além do espelho: quando nos permitimos olhar para uma vida pouco reconhecível e legível socialmente diante da comunidade?
4. ATAQUE E DEFESA
O último jato de tinta deste polvo surge para lembrar que o monstro e os animais estão relacionados em alguns aspectos dentro da questão biopolítica, mas, destaco, em especial, o fato de que essas representações não-humanas, monstruosas e bárbaras não são consideradas pessoas e, por isso, não merecem a preservação da vida. Como visto ao longo do texto, corpos híbridos entre o humano e o animal surgem a todo instante para ilustrar a monstruosidade já nas primeiras lendas mitológicas. Baseado nos escritos do teórico argentino Gabriel Giorgi em Formas comuns: Animalidade, literatura e biopolítica (2014), pode-se pensar no animal como um elemento que causa tensão na esfera natureza-cultura e, por meio dele, de seus corpos selvagens, novos ordenamentos de territórios são possíveis.
Giorgi afirma: “Muitas tradições culturais na América Latina haviam inscrito, de modos recorrentes, o animal como o outro sistemático do humano; as imagens da vida animal traçaram ali o horizonte móvel de onde provinham o selvagem, o bárbaro e o indisciplinado, e onde o animal nomeava um fundo ameaçador dos corpos que as frágeis civilidades da região mal podiam — quando podiam — conter; tradições, enfim, que haviam associado o animal com uma falha constitutiva (cultural, racial, histórica), que atravessa as nações pós-coloniais e que demarcava o perímetro de sua pobre civilização, sempre tão assediada”. Ao longo do livro, ele cita alguns escritores latino-americanos (Manuel Puig, Clarice Lispector, Guimarães Rosa) para pensar o aspecto animal na produção literária a partir dos anos 1960. O que livros como O beijo da mulher-aranha (1976) refletem, de acordo com Giorgi, faz parte de um contínuo de distinção entre o reino dos instintos e a ordem civilizatória.
Dessa maneira, pensar o monstro sob a chave do animal o coloca, em definitivo, no lugar da vulnerabilidade. Aqui, há a inversão dos papéis que vimos no tópico três, e quem se torna o monstro são os corpos considerados mais fracos e divergentes dentro do contexto da lei hegemônica do Estado. Entre o vírus e as políticas públicas genocidas, todas as representações de monstro que vimos ficam em perigo porque fazem alusão ao limite, quase indistinto, da vida íntima do sujeito e do corpo animal pulsante. Para que outros territórios sejam possíveis, os monstros estão em constante insegurança em sua pele e são várias as possibilidades de coerção institucionalizada. Ou seja, os corpos animalescos estão sempre em posição de ataque e defesa e, em última instância, a monstruosidade não pode existir porque a expansão anticolonial vai avançar em desmedida e isso não interessa ao sistema comunitário contemporâneo.
Em entrevista à plataforma de pornô desviante Ediyporn[nota 9], Timboiá Igbalé — colaboradora do selo Monstruosas, da iniciativa antiespecista Dhuzati e da plataforma de agitação política Distro Dysca — comenta sobre o impulso que reverbera em todos os sujeitos considerados monstros ou animais pelo Estado: “Se a monstruosidade ameaça tanto a humanidade ela guarda alguma potência. Se a supremacia branca animalizou a dissidência sexual, os povos indígenas e a população negra é porque ela objetiva controlar estes corpos para serem engrenagem de sua maquinaria. Quando a branquitude transforma a insurgência destas pessoas ou individues com enfermidades ou patologias em monstruosidade, ela deseja aniquilar e exterminar propagando e educando que este modelo não cabe no mundo que ela projetou […].” Assim, volta-se à ideia de que o monstro não é patologia, mas sim diagnóstico; ser monstro é alcançar a glória de girar em seu próprio eixo para criar pedagogias distantes do que é normalizado dentro do horizonte político e cultural. Não existe o “novo normal”, mas o monstro sim, existe, e continuará conosco como forma de confronto, nos convidando ao combate para outros modos de vida.
Do animal ao vivente, a metamorfose monstruosa nos ensina, enfim, que estamos olhando de maneira delimitada para as imagens que nos cercam: precisamos colocar outros espelhos ao nosso redor — não porque temos a ânsia em capturar e encarar todos os monstros que nos rondam, mas porque com um único espelho a visão engana os nossos olhos, faz com que a ausência não tenha oportunidade de ser também refletida. Estar com monstro é a coragem de deixar a falta existir mesmo sabendo que ela nunca irá se mostrar. O monstro nos faz ter vontade de correr de olhos fechados porque quando abrimos espaço para o seu corpo animalesco e híbrido, aceitamos: o que nós vemos e o que nos olha não será correspondente.
Este texto termina com quatro tentáculos no desejo de que cada um deles multiplique-se e, na sua repetição, formem esse polvo que tudo come e por tudo luta. Ao longo dos séculos, os monstros estão no ponto de partida de (muitas) guerras e clamam para que os humanos se juntem a eles. O polvo conjurado nos parágrafos anteriores é também a materialização de um convite para que possamos afiar as nossas armas e encontrar a monstruosidade nos campos de batalha. Quando observamos um polvo em movimento, não sabemos muito bem se ele está dançando, prestes a morrer, desistindo de uma parte de seu corpo ou apenas indo em direção aos corais do outro lado do oceano. Porém, se escolhermos acompanhá-lo mesmo assim, talvez a nossa metamorfose inicie e a liberdade em não saber como será o nosso próximo corpo tomará conta de nós. Tornar-se monstro está na confiança de que, muito em breve, poderemos desbravar os mares menos medrosos e mais estranhos do que nunca.
NOTAS
[nota 1] O trecho original: “The history of all hitherto-existing societies is the history of monsters. Homo sapiens is a bringer-forth of monsters as reason’s dream. They are not pathologies but symptoms, diagnoses, glories, games, and terrors.” Disponível em conjunctions.com/print/article/china-mieville-c59
[nota 2] Nesse trecho, por ora, não se trata do monstro como inimigo ou das ameaças concretas que nos rondam em tempos de pandemia e de governos de extrema-direita — esse monstro nos ataca todos os dias e ele se enfrenta; entra-se em guerra para que seja factível construir tipos diferentes de comunidades, como veremos, em seguida, no tópico três e quatro.
[nota 3] O ensaio faz parte do livro Monstros e monstruosidade na literatura, da Editora UFMG (2007).
[nota 4] A tradução utilizada foi a de Walter Vieira de Barros e Sinara de Oliveira Branco, ambos da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Disponível em periodicos.unb.br/index.php/belasinfieis/article/view/12572
[nota 5] Falena é uma borboleta noturna que se consome na luz, espécie de mariposa. [nota 6] Em 1940, Leonora Carrington esteve internada na cidade espanhola de Santander e ficou amarrada em uma cama durante vários dias, destinada a diversas situações de extrema vulnerabilidade e violência manicomial.
[nota 7] Tradução de Jussara Salazar. Disponível em: marosa-di-giorgio.blogspot.com
[nota 8] Susan Sontag faz uma extensa análise das representações da tuberculose na cultura em Doença como metáfora — Aids e suas metáforas (2007).
[nota 9] A entrevista completa está disponível em ediyporn.com/posts_diversos/69-anticolonial.