“[...] meus olhos me seguiram até mim, me tocaram
como um lugar, uma outra vida, terra. Eles dizem que esse lugar
não existe, então, minha língua é mítica. Eu estava aqui
antes.”
(dionne brand)
há um giro paradigmático irreversível em curso na literatura de autoria negra/lgbtqi+, um giro de proporções cosmológicas; y ainda que de raiz revanchista, de frutos emancipatórios. frente às expectativas/estereótipos coloniais de que o teor dessas obras se ativesse, formalmente, com relação ao seu sistema expressivo e de conteúdo, a um caráter denuncista/reativo, a produção que avalancha a década de 10 do século XXI se apresenta cada vez mais anuncista/criativa, montando, desde as autoras várias que a têm escrito, lugares possíveis frente ao impossível colonial, seu silenciamento racista heterocisnormativo, sua limitação poética. creio que vá ainda muito além: revoga assunções maniqueístas da própria oposição entre utópico/distópico ao misturar em si um pedaço de cada y assentar-chão no dizer, inventar lugares [topias, tropos] pelo que é enunciado, pelo que se diz. por isso estou pensando, nesse ensaio, poesia de autoria lésbica negra como diz/topias, então. essa produção tem superado a estreita definição do que pudesse ser poesia de autoria negra lgbtqi+, há até não muito tempo postulada quase que exclusivamente por elites dominantes de pensamento/teoria/crítica, amarrando tal produção aos paradigmas da trilogia dor/denúncia/resistência como condição de inteligibilidade e pertencimento. penso que, de alguma forma, questionar tal ordenamento temático/formal questiona a colonialidade em si. y ao recusarmos o lugar estreito que ela define pra nós, também a deslocamos de seu pretenso centralismo canônico. por outro lado, se há alguma verdade na assunção de que “o que não é falado nem existe”, me interessa perguntar: será então que algo pode ser materializado a partir do que se diz? com relação à poética lésbica negra, há materialização de lugares específicos pelos seus enunciados? que tipo de feitura faria aquilo que é dito nessa poesia? em busca de impossibilidades rompidas, escape drapetomaníaco aos estereótipos da mirada colonial, re-yinventação de nossas/novas histórias, nesse ensaio bem apaixonado investigo, a partir da reinauguração mitológica de lesbiandade negra que dionne brand sugere com o poema X de hard against the soul [nota 1], outros três poemas feitos por autoras lésbicas negras brasileiras: Correnteza, de cidinha da silva, e os poemas pérola marrom e Rio, de nina ferreira, pra esboçar uma cartografia dos territórios que nossas palavras fazem existir em declaração mítica, antes y depois, especialmente depois, saravá depois, do aqui colonial.
X
Então é simples assim. Eu senti o desordinário romance de
mulheres que amam mulheres pela primeira vez. Ele explodiu na
minha boca. Alguém disse essa é sua primeira amante, você
nunca vai querer deixá-la. Eu tinha na mente que eu
seria uma mulher velha contigo. Mas talvez eu
sempre tenha tido na mente apenas ser uma mulher velha,
escurecendo, em algum lugar com outra mulher velha,
então, eu decidi que era você quando você me achou naquele
apartamento tomando whisky de café da manhã. Quando eu vim
de volta de Granada e fiquei louca por dois anos, aquela
vez quando eu podia ouvir qualquer coisa e minha pele
ardia como um nervo e os muros eram como papel
e meus olhos não podiam fechar. Eu de repente senti você
no final do meu quarto esperando. Eu vi suas costas curvadas
contra essa cidade que habitamos como guerillas, eu esfreguei minha
mão, consciente, contra sua barriga macia, despertando.
Uma vez eu vi essa mulher num outro poema, sentada,
jogando água na cabeça dela na pele de uma praia
afastada enquanto ela se ia até seu centenário. Vendo ela,
nenhuma parte de mim ficou confortável consigo mesma. Eu a invejei,
tão velha e assentada, um certo hábito lavado de seus
olhos. Eu devo tê-la reconhecido. Eu sei que eu assisti a
ela ao longo da beira das ondas prometendo a mim mesma, uma mulher
velha está livre. Nos meus nervos algo como
desembaraçando, e ela era um lugar para ir, creia-me,
contra rajadas de masculinidade mas naquele então, ela era
masculina, mulher velha, pássaro velho de soslaio na
asa da água sobre a cabeça dela, jurando sobre a respiração
dela. Eu tinha ideia de que ela seria graciosa em mim
e ela poderia ter sido se eu não tivesse ouvido você
rindo em outro tempo e levantado minha cabeça do charme
seco dela.
Você talhou o mundo aberto para mim. Alguém disse essa
é sua primeira amante você nunca vai querer deixá-la. Meus
lábios não podem mais dizer mulher velha escurecendo, ela
é a paz de uma outra vida que não aconteceu e
não poderia acontecer em minha carne e não era paz mas
voo adentro mulher velha, prece, aos santos de minha
ancestria, as mulheres que levando cuia e balde
batiam seus peitos em pedra descamando prole e
sorriso. Eu sei desde aquilo que uma mulher velha, escurecendo,
se arranca de limbo a limbo, se drena branca,
correndo, pele rota e crua como uma bola de luz brilhante,
voando, até mulher velha. Eu só agora sei que meu
anseio por essa mulher velha era anseio para deixar a
mirada aprisionada dos homens.
É verdade, você passa os anos depois dos trinta questionando
a sugestão de que você tem sido uma imbecil,
ouvindo finalmente todas as palavras que te atravessavam como ar,
como tanta diversão, ou todas as palavras que devem ter
existido enquanto você estava ouvindo outras. O que
eu ia querer com essa sentença que você diz largando
pra lá... e de novo às vezes você era enganada,
poemas postos deliberadamente no seu caminho. Às onze, a
estrofe de um vestido amarelo me sentou de pernas cruzadas no meu
sexo. Era a festa de aniversário abrupta de um menino. Um vestido
amarelo pra um tomboy, a punhalada ritual da feminilidade pega
na cintura. Ela tá que nem um menino de vestido, minha irmã
maior diz, uma correção lírica e feminina de uma
tia atenta, não diga isso, ela está ótima e linda.
Ótima e linda, dum jeito que te lasca, pra que nunca,
até que é quase tão tarde que não importa você agarrar
uma parte, algo faltante como uma asa, algum
fragmento do seu eu real.
Mulher velha, aquele era o fragmento que eu peguei no
seu olho, aquele era o olhar por que me apaixonei, o pedaço
de você que você guardou, o seu pedaço deixado, a lésbica,
a inviolável, sentada numa praia em um tempo que não
ouviu seu nome ou então teria te afogado dentro do
mar, ou você, ouviria aquele nome e você mesma andaria
voluntariamente para o azul emudecedor. Em vez disso você sentou e eu
vi seu olhar e persegui um olho até ele chegar ao
final de si mesmo e então eu vi o outro,
o fragmento ardente.
Alguém disse essa é sua primeira amante, você nunca vai
querer deixá-la. Há santos dessa ancestria
também que eles mesmos riem como periguetes no
prazer de suas pernas e carinham seus sexos em espelhos.
Eu me tornei eu mesma. Uma mulher que olha
para uma mulher e diz, aqui, eu achei você,
nisso, eu estou enegrecendo do meu jeito. Você talhou o
mundo cru. Foi como se uma outra vida explodisse na minha
cara, brilhando, tão fácil a frente de uma asa
tocando a beira, tão fácil eu vi meu próprio corpo, ou
seja, meus olhos me seguiram até mim mesma, tocaram mim mesma
como um lugar, uma outra vida, terra. Dizem que esse lugar
não existe, então, minha língua é mítica. Eu estava aqui
antes.
esse é o poema X da coletânea hard against the soul, que traduzi como “duro contra a alma”, da sapatão negra canadense dionne brand. comecei a traduzi-la nos anos finais do meu doutoramento em estudos da tradução na universidade federal de santa catarina (onde estudei de 2011 a 2014). os poemas dessa coletânea específica, a qual está em No language is neutral (1998), livro composto por três conjuntos de poemas, me cativaram por terem sido o primeiro texto que li, em minha vida, abordando lesbiandade, negritude y mar num contínuo metafórico próprio. sua escrita tanto em prosa quanto em poesia dedica um olhar poético investigativo, curativo e reflexivo às histórias da diáspora, sua forja, os mecanismos de criação (econômicos, políticos, culturais, os constrangimentos coloniais, a linguagem) que a elaboram. vejo esse poema específico como terreiro fértil sobre o qual lanço aqui minhas bases de enunciação como sementes, em busca de algumas perguntas, & as possíveis respostas que podem frutificar: como a produção poética de autoria negra na diáspora, especialmente aquela feita por dissidentes sexuais, com ênfase em lésbicas negras, tem criado espaço pra ocupar o mundo a partir da palavra? mais: que espaços temos criado com nossas palavras-de-ocupar mundos que trazem, em sua gênese, planos sólidos pra nossa inexistência? parto de uma percepção do racismo colonial como um projeto de silenciamento (alcance simbólico), y também morte (alcance físico). se existe um panorama histórico, cultural, político, econômico, mas também relacional, psíquico, a definir que algumas existências não podem ocupar lugar no mundo a não ser dentro de uma noção muito estreita, constrangida y coercitiva de extermínio, parece que o que conseguimos dizer cria sim outros lugares para que possamos ocupar e então existir, assim nos desobrigando (minimamente que seja) da constante resistência dos cativos. tenho pensado na importância de compartilhar essa impressão com outras pessoas: porque a mirada colonial é tão viciante y imperativa, funciona tão adequadamente, que ela convence a quase todo mundo de que realmente não podemos ocupar outros lugares senão esses predefinidos. como ocupar um lugar que é de inexistência, de morte? qual é o tipo de malabarismo subjetivo que temos que fazer pra realizar essa tarefa, se é que conseguimos realizá-la? nossa produção literária indicia isso? muitas de nós somos levadas a acreditar que é próprio das existências negras o lugar da morte, e/ou inexistência, e/ou silenciamento, ainda mais drasticamente no que concerne a algumas existências negras, aquelas sexual-dissidentes y/ou desertoras de gênero, ou lgbtqi+. o que tem significado, pra nossa literatura, lidar com essa grande expectativa social de que não podemos sair do lugar da morte, do sofrimento, da denúncia? por um lado, não é que possamos simplesmente ignorar todos os processos de opressão que constantemente nos açoitam. muito menos que não possamos jamais refletir ou pensar sobre esse episódio derradeiro natural às vidas que fazem jornada da matéria. o que me aresta é a sensação de que nada mais nos caiba: como se a gente só pudesse falar de sofrimento y morte, como se o tempo todo tivéssemos que temê-la ou declará-lo, o tempo todo nos prepararmos pra sua indesejada e inevitável chegada, enfrentarmos seu inexorável fardo. mais: me causa um tanto de incômodo parecer que toda nossa produção estética, especialmente a poética — a que estudo mais, por ser poeta — toda vez que tenta desorbitar essa condição, toda vez que ousa falar de qualquer lugar outro ou propor novas abordagens, corre o risco de ser ininteligível, de não ser sequer compreendida ou considerada enquanto produção negra, “negra mesmo”, “lésbica mesmo”. assim, tenho compartilhado um conjunto de ferramentas interpretativas de discursos, construído na leitura de alguns poemas específicos, pra ver se formas novas ou questionadoras da mirada colonial se espalham mais, pra que aprendamos coletivamente novas miradas pra significar essa produção. miradas que não estejam mais tão contaminadas pelo ordenamento genocida e epistemicida da colonialidade racista. quero falar aqui sobre alguns poemas, começando por esse de dionne brand, porque para mim é ele quem inaugura a percepção da língua mítica das lésbicas negras especialmente na poesia. o mesmo poema que sugere ter sido dito a lesbiandade negra não existir enquanto lugar é esse que diz que uma mulher negra olha outra e enegresce do seu jeito, na recusa de “rajadas de masculinidade”. se esse lugar não existia, então a língua dela é mítica: cria esse lugar como terra numa narrativa fundacional fantástica — no sentido de propor algo absurdo frente ao projeto colonial de nossa inexistência: reconhecermo-nos y falarmo-nos. há outros projetos de inauguração mítica da lesbiandade negra fundados por outras poetas lésbicas negras quais são os espaços, temas, as imagens, as metáforas, quais são os versos, como organizamos estrofes? essas aqui ferramentas de leitura y intelecção, importantes y simples, podem mostrar outras formas de estar no mundo, primeiro, y também, ainda, formas de reconhecer o estar de outras pessoas no mundo, enfaticamente estares subjugados à inexistência pelo silenciamento: “disseram que esse lugar não existe”. no poema Correnteza, da mineira cidinha da silva, 53 anos, que lugar é esse que sua língua cria? destaco que Canções de amor e dengo é seu único livro de poesia, uma ilha em meio a muitas publicações em prosa. cidinha costuma dizer que cometeu esses poemas.
CORRENTEZA
Quando ela quer
Quer com a força de uma queda d’água
Incontestável, indomável, irresistível
Mergulho
No abismo de água doce
E um vazio com gosto de mel
Toma conta de tudo
a literatura de cidinha da silva aborda diversos aspectos da orixalidade no brasil. em seu poema, a água é um espaço de inauguração do mundo: o lugar que seu poema cria é a água. me aproximo dele para me lembrar da água como o começo do mundo, assim como Oxum, relacionada aos começos da vida, Orixá (uma tradução ancestral pra “deusa”) da água doce. o mergulho nesse abismo de água doce que parece forjado pela força incoercível do querer dela, força de cachoeira, traz um vazio melífluo onipresente. Oxum também é reconhecida como uma Orixá extremamente cuidadora, “toma conta de tudo”, mas a forma com que o poema se inicia declarando sua força de queda d’água sugere um deslocamento inicial das noções coloniais (con)sagradas que atrelam feminino a cuidado e a delicadeza. é nítida a referência que conjuga entrega (aos reinos de Oxum) e cuidado, doce como mel, outro dos elementos que ela rege y/ou representa, além das águas doces. essa coexistência de doçura e força também é um furo nos sistemas interpretativos coloniais binaristas que atribuem às subjetividades negras femininas o lugar incessante da dureza. é imprescindível compartilhar aqui um itan, mito ou história fundacional própria da cultura iorubana, em que Oxum mesma corre até o rio y mergulha nas águas doces pra escapar da fúria de Oyá após um término conturbado do caso que tiveram e estabelece ali, assim, seu reinado. mergulhar o abismo / água doce, experimentar a fundura, pode simbolizar então um avesso das expectativas heterocisnormativas de servidão afetiva e sexual dos corpos tidos como mulheres ao desejo dos homens, y ainda significando ocupar o vazio, receber o vazio, o lugar da representação que não existe, com a promessa de que uma doçura melíflua há de tomar conta de tudo, e de alguma forma garantir que há uma recompensa de vida importante pela ousadia da jornada: na poesia erótica lésbica, é constante o uso de metáforas de água para simbolizar prazer y gozo sexual do sexo entre mulheres. tanto por essa referência clássica quanto pela alusão ao itan citado, “Oxum seduz Iansã”, leio Correnteza como um poema que articula o escape à mirada aprisionada dos homens, à inexistência colonial programada pra gente, pela enunciação da água como lugar que permite todos esses níveis de ocupação/subjetivação: de repouso a gozo. Oxum é também considerada a mãe das cabeças que não falam ainda, a mãe das crianças y cabeças muito jovens: a mãe de antes da palavra expressa. nesse curto poema, num outro nível interpretativo é latente o convite a pensarmos a substância da água como substância inaugural da palavra. se lembramos que a água, pra muitas culturas y visões de mundo (inclusive a astrologia) é associada às emoções, ao que se sente y ao saber o que se sente, à senciência portanto, essa abertura do poema me encaminha à proposta feita por audre lorde, também lésbica negra, de um pensar a poesia como parte de um processo de produção teórica que é suscitado pelo reconhecimento dos sentimentos: “Os patriarcas brancos nos disseram: penso, logo existo. A mãe Negra dentro de nós – a poeta – sussurra em nossos sonhos: eu sinto, portanto eu posso ser livre. Poesia cunha a linguagem para expressar e empenhar essa demanda revolucionária, a implementação daquela liberdade.” (no ensaio poesia não é um luxo, que traduzi em minha tese de doutorado). esse olhar pra dentro, organizar, entender, propor um processo expressivo poético a partir disso pode ter significação própria pros povos na/da diáspora. y Oxum, Orixá tão amada, aquela mesma que cuida dos Orís, das cabeças de quem ainda não aprendeu a falar, é ainda o rio, paço livre por onde as emoções fluem, correm. sua superfície permite a reflexão, mas além disso Oxum carrega um espelho. uma parte importante do exercício de estabelecimento e manutenção do racismo colonial é definir o que pode ser dito sobre as pessoas, mas especialmente sobre as pessoas subalternizadas, racializadas como negras. esse ordenamento interpretativo costuma definir que a Orixá carrega esse espelho por ser vaidosa. vaidade tem sido considerada tanto como característica fútil, desimportante, quanto como típica do feminino. assim, essa interpretação que atribuiu o espelho, o Abebe segurado por Oxum como necessariamente um símbolo de vaidade propõe um desmantelamento de quão profundo pode ser o significado do autoconhecimento representado numa deusa que é o rio, sua água, nascente, um manancial a partir do qual possamos nos compreender e propor nossa expressividade. seu espelho, o qual me parece nitidamente reforçar a talha subjetiva que permite domínio sobre o processo de reflexão, de autoconhecimento (inconstante nas águas do rio a depender de sua agitação, seu movimento), é tratado pelo racismo colonial como algo fútil. como femininamente fútil. é isso que a mirada colonial faz: criar estereótipos que negativam traços culturais, a despeito de sua importância efetiva. inexistir. narrativas hegemônicas que contaminam inclusive as nossas. nada muito novo, no entanto, se lembramos que esse é um indício do funcionamento esperado da mirada colonial: criar sentidos rasos, definir de fora o outro que subalterniza, racializa. esse é seu âmbito de especialização e é a partir daí que tal mirada executa seus projetos de aniquilação simbólica. por isso escolhi poemas sobre a água, por isso comecei com o poema em que dionne brand desenha o retrato de uma lésbica negra que observa uma mulher negra velha molhando a cabeça na água do mar. me interessa muito ressaltar de que forma o eu poético se expressou encantado, profundamente deslumbrado com essa imagem, a ponto de desdobrar-se em uma autocompreensão que alcança até a compreensão da presença de uma cônjuge que, alheia ao deslumbramento, não assiste aquela que assiste a velha, como sugere o contraste entre os versos “[...] Eu tinha ideia de que ela seria graciosa em mim / e ela poderia ter sido se eu não tivesse ouvido você / rindo em outro tempo e levantado minha cabeça do charme / seco dela. [...]” e “Uma vez eu vi essa mulher num outro poema, sentada, / jogando água na cabeça dela na pele de uma praia / afastada enquanto ela se ia até seu centenário. Vendo ela, / nenhuma parte de mim ficou confortável consigo mesma.”, criando um jogo de espelhos e reconhecimentos complexos. até o processo de projeção do próprio envelhecimento surge no espelho dessa presença impactante, negra velha que lava os cabelos nas águas salgadas do mar; e também é nesse espelho refletida a própria infância que, versos adiante, vai surgir em uma rememoração da obrigatoriedade de usar vestido, “roupa de menina”. o lugar que não existe, sugerido no final do poema, é o lugar em que uma menina negra não pode se vestir como quer, nem uma mulher negra amar outra mulher negra até envelhecerem juntas. mas um lugar outro efetivamente é construído ao longo do poema, significativamente entre os versos “e ela era um lugar para ir” e “dizem que esse lugar não existe”. o espelho reflete as pares e refrata a mirada externa, invisibilizadora, que não reconhece essas subjetividades; a mirada que alega não existir o lugar que em sua própria experiência material essas três personagens emblemáticas do poema o são. é a língua da poeta que as cria como um lugar, terra. daí seu caráter mitológico, fundacional. a própria água ser tratada aqui como espelho vai contra todas as admoestações que séculos de proibicionismo narcisista consolidaram em imaginários hidrófobos que são, muitas vezes, correspondentes a subjetividades a que o auto-olhar é interditado. em seus versos, o poema de dionne brand me sussurra a água como metáfora-chave à leitura de obras de lésbicas negras a partir dessa conjuração entre reflexão > mergulho > autocompreensão > expressividade, um movimento com ciclos de introspecção e extroversão expressiva. acolho suas águas na elaboração dessa argumentação em que nossa palavra cria novos lugares para que estejamos fora do plano ressecado, estéril, refratário da colonialidade. nossas palavras nos permitem existir além do confinamento das perspectivas subjetivas e/ou literárias que tal mirada ordena. nos poemas Rio e pérola marrom, de nina ferreira, poeta brasiliense, 30 anos, as alusões à água que começam no título (mesmo que muitas vezes quase esqueçamos pérola como um machucado que a concha abraça, tão dominado está nosso imaginário pelo joalheirismo do capital) ganham mais volume. pérola marrom, poema homônimo do livro de mesmo título (2018), tem sido um dos que mais tenho trabalhado em palestras e ensaios; nele, nina escreveu sobre a morte de luana barbosa, assassinada pela polícia de ribeirão preto, sp, em 13 de abril de 2016 enquanto voltava da escola de seu filho. mas diferentemente do que pode parecer ser a temática central de um poema que é nitidamente sobre lesbocídio, a sagacidade da poeta está em recusar-se a reduzir-se pelo tripé colonial de intelecção da subjetividade e/ou literatura negra: dor, denúncia, resistência. mesmo que se espere de nossa literatura fincar-se nesse eixo paradigmático; mesmo que escrever sobre aquele tripé seja praticamente condição para que um conjunto de poemas seja compreendido como “literatura negra mesmo”. está nítido para mim que essa expectativa de adequação a tais perspectivas é um lugar muito importante à manutenção da mirada colonial, pois é ela que, profundamente sádica, deseja nos manter num plano restrito de existência, quer nos atar a narrativas poucas sobre os povos escravizados, nos subsumir aos estereótipos de samba, bunda, sexo; um projeto epistêmico porque produz conhecimentos sobre nós. e é um projeto epistemicida, porque depende que muitas formas de produzir símbolos e imaginários sejam contidas essas interpretações hegemônicas, pra que poucas ideias/vozes/corpos sejam compreendidos como produtores culturais, de imaginário, de literatura, de arte, enfim. esse projeto tão comum, alastrado e tão funcional se assenta num pensamento central à colonialidade: de que não podemos pensar. só podemos pensar, aliás, em esquemas de fuga, só podemos elaborar respostas, resistência, ou o que se relaciona diretamente com a matriz do racismo, cistema que espera que só existamos em função de servi-lo. e pra isso temos que morrer, que ser escravizados, ser não-sujeito, ser não-pensante, não podemos ter soberania imaginária, tampouco definir os termos de nossa produção artística, intelectual, simbólica. querem impedir que exerçamos o direito ao pensamento livre. em minha leitura do poema pérola marrom, me interessa mostrar em qual extensão estamos ainda tangenciadas pela dor porque ela é real. o racismo é um sistema físico de sofrimento, injustiça, dominação, coerção. assassinato. constrangimento. inacesso. então, em muitas medidas, ainda temos e teremos por algum tempo que lidar com a raiva, com a dor, com a angústia, com o medo. viver numa sociedade que não é feita para habitarmos como sujeitos, a não ser em lugares muito determinados para manutenção dos próprios estratagemas de opressão exercida sobre nós. me encanta olhar nesse grupo de poemas que as poetas estamos habitando dois mundos, “tipo equilibrista”. um pé no lado da restrição, da violência, do sofrimento, da aniquilação imposta pelo mundo branco supremacista e seus sistemas de valores artísticos, culturais; outro pé, ou mesmo o plexo, o coração, plantados ali no outro lado, nas nuvens daquilo que pode vir a ser, na “saudade do futuro”, como nina ferreira menciona em a neblina meu orí, também presente no livro. pérola marrom é um desses poemas entre dois mundos ao abordar tanto um lesbocídio quanto a responsabilidade de viver com alegria que o eu-lírico assume para si:
PÉROLA MARROM
na verdade
todo esse tempo
eu tenho atravessado uma linha de constrangimento,
tipo equilibrista:
cum ferro e madeira na mão e
uma pérola impronunciável
dentro da boca.
[essa pérola com certeza é escura, talvez mais pra tinta dos meus olhos, uma vez disseram:
“impossível ver sua pupila longe do sol”]
& sei
que meu corpo é equilibrado, sei
que é alongado sei
que é forte, embora flácido
[fortaleza distinta mas que guenta cada miligrama do chumbo olhar de desprezo guenta
não ser aquele que é demoradamente admirado guenta
o terror da chacina dura contra cada variação de tom da sua cor escura guenta
pouco afago
&
também sustenta lustrosa responsa:
brincar capoeira com as criança, ter o axé d’orixá que é árvore sagrada e
cantar.]
não que eu quisesse ser outro ou
outra
mas eu li
sobre o que fizeram co’a luana,
sapatão como eu, mais escura que eu
e pensei: não quero
sair de casa hoje.
e feito minha mente fosse
máquina fotográfica,
câmera full hd
eu me lembrei
do medo que eu sinto às onze no centro…
do meu constrangimento implantado
feito chip que eles botam nos pássaros
[com certeza eles sabem]
do pavor de que um homem armado,
honrado,
fardado
me veja como uma ofensa
à sua forma
e me olhe tanto
que eu suma me
grite tanto que
eu fique muda que
ele me faça
mal.
não que eu quisesse ser outra, outro:
cá dentro do meu ori,
tem um par de olhos ensolarados y
uma paramenta marrom
que canta,
diz
que é de axé que eu seja feliz
& luana também.
não só no orun,
mas aqui
[em todo lugar].
sua grande referência explícita à agua é mesmo o título, ainda que eu veja o poema como muito pertencente ao sistema de propor espelhos, possibilidades de mirada, reflexão, definidos pela enunciação da lesbiandade negra inclusive como recusa em ser outro, outra (sugerindo aqui um potente não-binarismo que ecoa o pressuposto de lesbiandade de monique wittig: as lésbicas não são mulheres). já Rio é um poema lésbico que dança perto dos sentidos esperados mais tradicionalmente do que se entende por poesia lésbica, e está cheio de ressonâncias aquáticas: sendo um poema pra uma amante ou sobre uma amante, entendendo a lesbiandade como duas, como par, a partir de desejo afetivo-sexual. Rio vem antes de pérola marrom, no livro. me parece que sua articulação assim próxima esboça um movimento de maré, alta/fora > baixa/dentro: primeiro, um poema incontestavelmente lésbico porque obviamente sobre lesbocídio. depois, um poema sobre romance lésbico, igualmente incontestável. mas dois poemas muito distintos, no sentido de qual projeção de negritude lésbica ou lesbiandade negra projetam. ressalto esse movimento de pensar dentro-e-fora que a organização dos poemas mas no livro me suscita, enquanto recordo ainda de uma metodologia política difundida especialmente via feminismos no mantra “o pessoal é político”, pra esboçar que pode haver um nível interessante de sustentação das nuances de diferença entre “político-e-pessoal” (sendo aqui, talvez, diferenças relativas a racialização e orientação sexual que contestam as narrativas tradicionais sobre o sujeito do feminismo). creio haver naquele movimento de organização do poema a sugestão de um contínuo espacial de esperança. pois pérola marrom finaliza demandando o direito de que uma lésbica negra seja feliz não só depois que morre, não só no plano imaterial; mas “aqui / [em todo lugar]”. até porque essa promessa de agruras na matéria e regojizo na desencarnação tem muito que ver com uma lógica católica evitada ostensivamente pelas metáforas e referências que bebem nas religiões de matriz afro-brasileira na obra de nina. pra algumas dessas religiões, a morte não é o lugar terrível do fim e não é a única ocasião em que é possível viver a felicidade. o projeto de bem-viver é central à subjetivação e constituição no mundo pra muitas pessoas adeptas dessas religiões, portanto, e é em larga medida a essa oposição que o poema alude, também. em Rio, a oposição é entre a eu-lírico e a amante:
RIO
essa barragem vibrando água
onde
cientificamente fica o meu plexo solar
{eu}
podia desabar e desmanchar
desaguar pro afluente dar
de enchente
bastaria
um relâmpago de você
{e não seria triste, nem um fruto podre do amor romântico,
mas a declaração mais honesta de como desatar a tecnologia
das bordas, de como misturar peles e órbitas –
anteriormente organizadas em mapa natal, ciclos
anuais e sinastria}
essa barragem
você bem soube aquele dia
era a promessa de um rio
{mágico,
níger,
âmbar,
benfazejo e fundo,
preto}
e nesse rio
os peixes
brilhariam como flashes
na mesma rapidez irrefletida do vento
só pra te ver deitar
te receber
e à sua
pele suas
manchas seus
cílios
{mas você não sabia nadar}
assim como na poética de dionne brand, a água é metáfora da amplitude da negritude lésbica do sujeito enunciador do poema, contida, no entanto, como barragem frente à impossibilidade do romance: pois se uma é rio, enchente, desejo de transbordamento, enquanto a outra não sabe nadar. é pungente a subjetivação da voz poética enquanto água escura, ancestral (o rio é níger), curativa – que a amante recusa, da qual a amante evade, sequer pode compreender.
o mergulho efetivado na correnteza de cidinha da silva é aqui promessa partida. o plano complexo que esse poema define, em extensão à responsabilidade de ser feliz que encerra pérola marrom, se finca na própria complexidade dos projetos de vida, felicidade e afeto que nós, sujeitas da diáspora sexual dissidente, experimentamos em toda sua amplitude. me pareceu um desfecho justo explicitar, com Rio, essa fuga a estereótipos também típicos da poética lésbica, inclusive a de autoria negra, que se criam em contraposição à hiper-tragedização de nossas histórias: a articulação entre felicidade e romance como condição de existência. em Rio, nina ferreira parece sugerir que nossos corações não precisam ficar parados em curva de rio nenhum, pois sipá seja da nossa natureza o fluir, derramar, próprio da natureza das águas: y não há barragem que dê conta.
NOTA
[nota 1]. uso minhas próprias traduções de ensaios y poemas, disponíveis em meu blog (traduzidas.wordpress.com).
REFERÊNCIAS
BRAND, dionne. “hard against the soul”. In: BRAND, dionne. no language is neutral. toronto: mcclelland & stewart, 1998.
FERREIRA, nina. pérola marrom. brasília: padê, 2018.
SILVA, cidinha da. canções de amor e dengo. são paulo: me parió revolução, 2016.
* pra querida natália borges polesso, com afeto y agradecimento por me inspirar a pensar nossas geografias alien.