Por volta dos 14 anos, Frederico Menezes começou a perceber fenômenos estranhos. Quando sua família, de tradição espírita, o levava para os centros, ele sentia um cheiro incomum e, ao perguntar se mais alguém o estava sentindo, a resposta era negativa. Era uma espécie de fragrância floral. O adolescente não sabia ainda, mas esse era o primeiro sintoma do dom da mediunidade que ele viria a descobrir. Um dom que, segundo o espiritismo, todos nós temos. Sim, em níveis diferentes, a religião considera que todos sofremos influências de espíritos. A sensação de uma presença espiritual invisível, a visão de uma mensagem durante o sono, cheiros, sons. “Mesmo sem perceber, você pode ter contato com espíritos. Algumas vezes, por exemplo, temos pensamentos e sensações que não são nossas. Isso já é um tipo de mediunidade”, explica o autor espírita Carlos Pereira. Apesar de todos possuírem o dom, para ser um médium é preciso muito mais: além de seguir a doutrina e a disciplina religiosa, o estudo e a orientação de nomes mais experientes são fundamentais. Dos milhares de lançamentos anuais da literatura espírita, grande parte envolve o tipo mais comum de mediunidade, a psicografia. O crescimento anual das vendas de obras, que já impressiona, deve ser ainda maior neste ano, graças à divulgação da religião em Chico Xavier o filme e em Escrito nas estrelas, mais uma novela a abordar a temática. Os fenômenos mediúnicos são um dos principais atrativos dos centros espíritas, e, mesmo que sejam encarados com curiosidade ou descrença, são vistos com extrema normalidade pelos seguidores da doutrina. No espiritismo, segundo Frederico Menezes, “não existe o sobrenatural”. “Antes de psicografar, eu já havia encontrado com ele durante o sono e desenvolvido a proposta de fazer um trabalho”, explica Carlos Pereira. O espírito que o visitou em sonhos era o de ninguém menos que o do ex-arcebispo de Olinda e Recife Dom Hélder Câmara. O médium conta que a parceria já rendeu dois livros, No coração de Deus e Novas utopias, e gerou um blog (www.domdapaz.blogspot.com). Carlos cresceu em uma casa que seguia a religião espírita. Assim, logo que foi alfabetizado, passou a ler livros sobre o tema. “Até os 30 anos, no entanto, eu nunca tinha desenvolvido nenhuma habilidade mediúnica”, conta o psicógrafo, hoje com 44 anos. Nessa época, além do dom da psicografia, também passou a ter psicofonia, capacidade de permitir que um espírito discurse por meio de sua voz. Antes de estabelecer contato com Dom Hélder, Carlos conta que alguns de seus companheiros videntes – pessoas capazes de ver espíritos – perguntavam, durante palestras e sessões, o que o padre fazia ao lado dele. “E eu sei lá”, dizia o médium, “perguntem a ele”. “Na verdade, os espíritos procuram um médium pela afinidade”, explica Carlos. Como não podia deixar de ser, psicografar uma figura tão importante para os católicos causaria polêmicas. “Dom Hélder me preparou para as críticas”, disse o médium, “mas confesso que não recebi muitas”. Como a prova de que não buscava ofender a Igreja Católica, ele destaca que, além de doar metade dos direitos do livro para o Instituto Dom Hélder Câmara (a outra metade foi para um centro espírita), dois autores ligados ao catolicismo, o teólogo Inácio Strieder e a historiadora Jordana Gonçalves Leão, assinam prefácios na obra. Uma simples pesquisa na internet, no entanto, é capaz de revelar algumas reações. De fato, a quantidade de católicos que reclamam é pequena – talvez pelo fato da obra circular em ambientes espíritas –, mas eles apontam tratar-se de uma psicografia falsa. Há também ressalvas no meio espírita. Em fóruns, é possível ver seguidores da religião estranhando o fato de Dom Hélder ter se manifestado para um médium ainda inexperiente, sem trabalhos anteriores. A cerimônia Junto com outras pessoas, Frederico Menezes ocupa sua cadeira. A sala tem as paredes limpas, e, excetuando-se a mesa e os assentos, não há mais nenhum móvel. Todos começam a se concentrar. Frederico pede a Deus para que tudo ocorra bem e que a sessão seja inspirada. Então, fica em completo silêncio e passa a se concentrar. Primeiro, ele sente uma energia tomando conta do seu corpo lentamente. É um bom sinal. Às vezes, o médium começa logo a ouvir uma voz ditando frases. Quando se aprofunda nesse estado, Frederico começa a sentir pequenos choques no braço, indicando que está pronto para começar a escrita. Em alguns segundos, sua mão começa a se movimentar sozinha. Pronto, é o que falta para o início da psicografia. Foram dez livros escritos assim, além das três obras com pensamentos e palavras próprias. Aos 50 anos, Frederico Menezes é um médium respeitado, chamado constantemente para apresentar-se e lecionar cursos em outros estados – e com um público cativo. “Já fiz palestra até em um supermercado, chamado pelo dono. Na verdade, acho que só falta fazer discursos em cemitérios mesmo”, brinca. A carreira de Frederico como médium começou há 29 anos. Junto com o perfume de flores que ele sentia nos centros espíritas, havia outros indicativos da sua capacidade de se comunicar com os mortos. “A primeira vez que eu vi um espírito foi quando minha mãe desencarnou”, conta. A família de Frederico tem uma longa relação com a religião. Seus avós maternos criaram o primeiro centro espírita do Cabo de Santo Agostinho, o Amantes da verdade. Perseguida por fanáticos católicos, a instituição passou a ser apedrejada e teve que fechar. Tanto Frederico como o pai herdaram a iniciativa de criar novos centros: os dois já fundaram três no Cabo e imediações. “Meu primeiro contato com espiritismo foi aos 12 anos. Eu sempre acreditei em Deus, mas não entendia como um Deus bom havia criado algo tão ruim como o inferno”, explica Frederico. A obra que o conquistou foi Nosso lar, do espírito André Luiz – que depois assumiu ser o médico Carlos Chagas –, psicografada por Chico Xavier. “Ele falava da vida após a morte, sobre como os espíritos se organizam em sociedade a partir de cidades no mundo espiritual”. Aprofundando-se nos estudos, Frederico chegou ao Livro dos espíritos, de Allan Kardec. Considerada a espinha dorsal da doutrina, a obra é dividida em tópicos, com 1019 questões e suas respostas. “A primeira pergunta, ‘Que é Deus?’, me chamou logo a atenção. Não era uma forma antropomorfa de ver Deus”, diz o médium. “É uma obra profundamente dialética, baseando-se em réplicas e tréplicas dos espíritos caso as respostas deixassem alguma dúvida”, argumenta Frederico. O diferencial da doutrina, para ele, é o fato de basear-se em, não importa quão contraditória a expressão pareça, uma “fé racionalista”. “Eu venho de uma estrutura familiar sólida, não iria me satisfazer com respostas bobas. O espiritismo me contentou tanto intelectualmente como acordou meu coração para a solidariedade”, ressalta. Para Frederico, é um fator importante que os espíritas tenham uma maior formação. “Eu vi recentemente uma pesquisa que dizia que os espíritas têm maior tempo de estudo e são os que mais compram livros em comparação com outras religiões”, aponta. Ainda segundo o médium, o espiritismo é aberto ao contato de pessoas de outras religiões que, por exemplo, queiram informações sobre um parente morto. Mal escuta o nome de Zíbia Gasparetto, Carollyna Santos, que trabalha na Federação Espírita Pernambucana, logo corta: “Ela não é uma autora espírita”. A amargura de Carollyna se explica facilmente, pois, ao contrário de outros médiuns, Zíbia não abre mão dos direitos autorais das obras que psicografa. Frederico Menezes não chega ao extremo de apontar como não espíritas os autores que não doam os lucros para uma entidade. “Cada médium, cada pessoa vai responder por suas ações”, relativiza, sem deixar de alertar: “Mas é um perigo. O mundo espiritual não vê isso bem”. Apesar de enxergar a psicografia como uma “parceria”, ele explica que quem leva a obra adiante é o espírito que dita, e, portanto, “dizer que ele é o autor é parte de uma relação de respeito, uma relação meio sagrada”. Já Carlos Pereira é taxativo no seu papel: “Eu sou apenas o intermediário”. O psicógrafo considera que, nos trabalhos ditados por espíritos, tanto a linguagem como as ideias contidas na psicografia não lhe pertencem. “Eu tenho outro estilo de escrita, mais solto, mais leve. Se forem procurar exatamente o jeito como Dom Hélder escrevia, não vão encontrar. Até porque nesse ponto influencia a bagagem que o médium tem”, avisa. Segundo Carlos, um ponto importante no processo de mediunidade é estabelecer pequenas regras para o contato. “Nós temos horários definidos para a psicografia, e os espíritos sabem disso”, conta Carlos, que, paralelamente às suas atividades espíritas, trabalha como administrador público. Em uma entrevista com Dom Hélder, psicografada pelo médium, o próprio padre teria revelado a dificuldade inicial para o contato, que foi superada com a escolha de horários e com as pesquisas de Carlos sobre a vida do ex-arcebispo. Combinado o momento, escolhido um bom local, parte-se para sessão propriamente dita. Os dois autores descrevem da mesma forma a sensação no momento da psicografia: agradável. “É um estado alterado de consciência, algo parecido com uma incorporação”, descreve Frederico, acrescentando: “É como se minha percepção fosse dilatada”. Em geral, o médium não tem experiências muito ruins com almas mais perturbadas: “No caso de espíritos sofredores, pode-se sentir um pouco o clima desagradável. Mas, mesmo nessas situações, ficamos felizes em ajudar as almas angustiadas”. olhar acadêmico O professor da pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco, Alfredo Cordiviola, explica que o próprio Kardec comparava o trabalho de um médium mecânico – um tipo raro, caso de Chico Xavier, que dizia não se lembrar de nada que acontecia em uma sessão – ao de uma máquina de escrever. Em outros tipos, quando há consciência durante a psicografia, como acontece com Frederico e Carlos, o médium seria uma espécie de “tradutor simultâneo”. Estudioso da relação entre literatura e possessão, Cordiviola, no entanto, prefere ter cuidado ao relacionar o termo à prática dos médiuns. Segundo o professor, Kardec preferiu evitar o uso do termo por entender, primeiro, que não existem espíritos completamente maus, como se pode dar a entender, e, segundo, porque ele seria um sinônimo de subjugação, o que não acontece no espiritismo. No caso, ele vê que o conceito se encaixa na religião a partir de um sentido diferente, significando “estar ocupado por”, como as descrições de Frederico apontam. Assim, sob esse ponto de vista, é possível ver na escrita psicográfica traços de possessão literária. “Escrever sob possessão supõe ampliar as fronteiras do verossímil, e até as fronteiras da própria noção de literatura e dos modos de ler a literatura”, define o pesquisador. Para ele, parte da literatura ocidental seguiu esse caminho – principalmente por meio de drogas que alteram o estado de consciência –, e cita nomes como Aldous Huxley e Allen Ginsberg. Cordiviola crê, no entanto, que a academia não tem atentado para a relação entre a possessão literária e a psicografia espírita. Para ele, a comparação entre a escrita de um autor em vida e a psicografia por meio de um médium “poderia ser pensada a partir dos mitos românticos da inspiração, da voz interior”, por exemplo. Apesar disso, admite que a escrita religiosa é quase indissociável da ideia de uma escrita sob efeito de transe ou possessão: “Todas as religiões apontam a legitimação de suas revelações e verdades a partir de um certo grau de iluminação concedida por instâncias elevadas”. “Isso seria o que torna sagrados determinados livros ou ensinamentos, a presença de uma voz superior que se manifesta direta ou indiretamente na letra e no sentido”, sugere.