Botao Vermelho 1 Flavio Pessoa junho.21

Você lê aqui o décimo conto da série Botão Vermelho, uma parceria do Pernambuco com o Instituto Serrapilheira que une literatura e ciência para pensar novos mundos. Este conto é o segundo da nova temporada da série. Clique aqui e acesse o editorial da série, escrito pela curadora e editora Carol Almeida, e os nove textos publicados antes.

No conto abaixo, assinado pela escritora Natalia Borges Polesso, palavras em vermelho indicam informações científicas. Clique em cima delas para conhecer mais dados.

 
*** 

 

Quando Heloísa resolveu se mudar para o meio do nada, teve certeza de que a ideia era boa e era sua. O site dizia um paraíso natural inigualável e o endereço da Casa Colorida. Imagens paradisíacas de trilhas, cachoeiras e jardins em cores ultra impossíveis e alta definição, tudo isso no meio de uma cidade tranquila e hospitaleira, no meio do Brasil, perto de onde ela tinha passado naquele mesmo ano, um pouco antes. Tudo se encaixou. Não foi tão difícil. Pensou que não era possível que tivesse tanta sorte e quando comunicou aos filhos que se mudaria para uma comunidade de velhes. Encadeou os adjetivos naturais como argumento. Vai, conte a eles, Heloísa. E ela contou.

— Mas mãe, tem certeza? Sorriso? Mato Grosso? – disse o mais velho.

— Comunidade de velhos? – disse o mais novo.

— De velhes – ela corrigiu.

— Que seja. Lá não é a capital brasileira do agronegócio? Só tem campo de soja, gado e bolsonarista praqueles lados, se bem que não tem muita diferença.

— É. Vai fazer o que lá, mãe?

— Não sejam ignorantes e preconceituosos, que eu não criei vocês assim, por favor, onde já se viu esse tipo de generalização? Respeitem a minha jornada materna, me deem essa alegria, meus filhos.

Heloísa não era exatamente uma pessoa excêntrica, mas seus filhos não a consideravam muito comum, percebi. Sabiam que não adiantaria dizer algo contra sua vontade. Caso fosse impedida, digamos, trancafiada em casa, se alguma medida desesperada fosse necessária, ela se revelaria uma exímia escapista. De modo que naquele ponto, não haveria mais a possibilidade de retorno ou quaisquer discussões.

— Sabe como é difícil encontrar uma comunidade de velhes, meu filho? Um asilo pra bichas e entendidas? Pois é muito difícil. Não vou perder essa oportunidade, semana que vem, parto para Sorriso.

— Ah é? Sorriso? É assim que vai ser? E quem a senhora espera que fique cuidando dessa casa aqui?

— Eu vendi a casa. Vocês acham que esses lugares são baratos?

— Como vendeu a casa?

— Vendi, ora. É minha. Vocês têm dinheiro. Eu não imagino que vocês estejam esperando alguma herança, não é? Daqui não levo nada, então eu vou gastar até o último centavo no meu próprio bem-estar.

— Não, mãe, não é isso.

Os dois filhos se encaravam e olhavam para o chão repetidamente.

— Pois ótimo. Eu vendi a casa com tudo dentro. Se tiver algo que vocês estimem muito, sugiro levar hoje.

Naturalmente, não era de uma hora para a outra que Heloísa havia tomado aquela decisão. Já confabulava com Lúcia, sua advogada e amante há algum tempo, sobre a mudança. Desde que voltaram de uma viagem a Alto Paraíso. Foi lá que nos conhecemos, aliás — se é que posso dizer isso. Às vezes precisamos nos mover para conquistar nossos objetivos. Desde então, Heloísa e Lúcia conversaram e Lúcia preparou todos os papeis. Preparou também um inventário, o contrato com a comunidade e conseguiu executar com perfeição uma série nova de posições de ashtanga, porque Lúcia levava a saúde do corpo e da mente muito a sério, dizia. Eu persuadi Heloísa a se resguardar um pouco, de seu corpo cuido eu. De todo modo, Heloísa se sentia pronta e, neste meio tempo, enquanto assinava autenticações, ponderava sobre as possibilidades de sua nova vida. Não digo que não a influenciei, eu tenho meus meios, mas ela tinha vontades próprias. Por exemplo, a tal comunidade tinha um grupo de teatro e ali ela viu a possibilidade de realizar um sonho antigo: atuar.

— A senhora não vai querer levar nada?

— Eu não sou apegada, né?, Mário César. Minhas malas estão prontas, o que eu quero está dentro delas, e eu te digo que me sinto ótima, me sinto leve, me sinto pronta para morrer até.

Não tive nada a ver com esse desejo. Na verdade, eu não gostei muito quando ela disse aquilo.

— Ai, mãe, não fala assim.

–– Carlos Henrique, você sempre foi mais sensível, querido. Mas sabe muito bem que eu sou assim — Heloísa passou a mão no rosto quente de Carlos Henrique e eu quase cedi —. Não se preocupe, querido. Está tudo perfeito. A comunidade é ótima. É queer! E quando vocês quiserem, é só ir me visitar, pronto.

— Bem, que horas é teu voo? Vou cancelar a agenda e te acompanhamos, César. Vamos acompanhar a mãe.

— Sim, é claro. Podemos ir até lá com a senhora também, não acha, Carlos?

— Não não não. Nem pensar. Bem capaz. E outra, eu vou de carro.

— De carro? Ah, mas não vai mesmo.

Heloísa arqueou a boca e abriu bem os olhos, jogando a cabeça para trás. Depois deu uma risada grossa e falsa.

— Ah, mas eu vou! Aliás, vamos! A Lúcia e eu. Comprei um carro novo, grande, espaçoso, e vamos. Eu dirijo, ela dirige, somos independentes. E sabe o quê?

Existe uma coisa chamada celular. Nós já programamos as paradas, os hotéis, alugamos as casas no ér-bi-en-bi, tudo direitinho. Eu mando uma cópia do itinerário no e-mail de vocês pra ninguém morrer de preocupação — disse “morrer de preocupação” com uma voz de pilhéria. — Não que eu precise, é uma gentileza que faço a vocês. Vai ser ótimo.

Muito bem, Heloísa. Eles suspiraram e aceitaram. Já sabiam que era inútil retorquir. Esse é um movimento natural e saudável de Heloísa: deixar a prole para cumprir um propósito mais adequado em sua vida, mas enfim, depois volto a isso. Em seis dias, partiram e em três dias chegaram. Sem problemas nem percalços nem grandes emoções. Foi uma viagem cansativa, admito. Mas tudo se compensou na chegada, quando a equipe da comunidade já as esperava. Tinham alguma dor nas costas, mas não era nada que um bom relaxante muscular engolido com uma taça de vinho, como faziam, não resolvesse. E foi exatamente assim depois de se instalarem. Eu confesso que não acho ruim a combinação, é algo que até facilita as coisas. Esticaram as pernas no confortável sofá de seu apartamento muitíssimo funcional, que estava pronto e tinha absolutamente tudo o que marcaram no questionário do site. Lençóis de 1000 fios sem estampas; travesseiros ortopédicos e decoração clean. Heloísa lembrou de trocar o endereço dos clubes de livros de que participava e um pacote já a esperava lá. Tudo estava perfeito e nem Heloísa nem Lúcia tinham tempo sobrando para ficar desconfiando da vida. O plano era viver o que restava da melhor maneira possível, estando bem assistidas.

— Lúcia, tu viu esse folheto dessa terapia de oxigenação? Não estava no site, deve ser nova ou exclusiva. Isso aqui deve ser ótimo, hein? Que calor!

— Calorão! Deixa eu ver – baixou os óculos e olhou por cima das lentes – tã tã oxigenoterapia é uma modalidade terapêutica na qual o paciente respira oxigênio puro 100%, tã tã tã uh-hum o oxigênio produzirá uma série de efeitos de interesse terapêutico, tais como: combate infecções bacterianas e por fungos, tã tã tã deficiência de oxigênio decorrente de entupimentos de vasos sanguíneos normalizando a cicatrização de feridas crônicas e agudas; neutraliza substâncias tóxicas e toxinas, tã tã tã que maravilha.

— Dá aqui – Heloísa toma o papel das mãos de Lúcia – o oxigênio é administrado através de máscaras apropriadas para esta finalidade tá, legal, deixa ver infecções graves com destruição muscular, de pele, ou gordura subcutânea, infecção crônica dos ossos, olha, Lúcia, procedimentos de cirurgia plástica reparadora!

— Parece excelente.

Não, não é excelente, Heloísa. Não vamos fazer essa terapia, certo? Mas pode deixar que disso eu me encarrego.

— Sabe o que eu tô achando ótimo? É tudo inteligente. Apartamento inteligente, cozinha inteligente, ducha inteligente. Só as pessoas que são meio burras.

Elas riram. Não falavam de ninguém especificamente, Heloísa só não quis perder a piada. Só que eu concordo, em partes. De fato, em geral, as pessoas não são muito inteligentes. Mas ficar assombrada com conexões sintéticas para aquecer ou resfriar o ambiente, para ver se algo falta na geladeira, por favor, isso chega a ser um insulto. Inteligência é isso aqui. Esse novo domínio, essa parceria.

 

Botao Vermelho 2 Flavio Pessoa junho.21

 

— Vamos pra piscina? Tá tão quente. Taí! Achei um defeito. É muito quente isso aqui.

Isso, vamos para a piscina, porque o tempo será perfeito durante as primeiras semanas na nova morada, quente e úmido, e precisamos descansar. Nos preparar. Aproveitar bem.

E assim o fizemos. Nossa adaptação caminhava em perfeita sincronia de cogestão. As caminhadas matinais com o grupo as deixavam energizadas e de bom humor; os almoços eram simples, porém muito gostosos, e nas quartas e sextas a turma gourmet, da qual Lúcia já fazia parte, apresentava um menu de entrada, prato principal e sobremesa que a chef local vinha ensinar. A felicidade de Lúcia implicava diretamente no bem-estar de Heloísa, notei, por isso, era importante que mantivesse o bom humor. As serestas à noite também eram divertidíssimas e a serotonina fervilhava dentro Heloísa, regulando seu apetite, sono, energia, humor, ritmo cardíaco, temperatura corporal, funções cognitivas e relaxamento. Eu a sentia cada vez mais pronta, cada vez mais entregue à nova vida. Talvez eu tenha me aberto um pouco demasiadamente aqui e acabou que permiti que Heloísa fizesse até um amigo bem intrometido.

— Me conta, Helô, há quanto tempo vocês se suportam?

— O que quer dizer?

— Você e Lúcia, eu digo?

— Estamos juntas há 6 anos. Ela era casada ainda, mais burocrático do que real.

— Ah! Então se suportam há pouquíssimo tempo, por isso o brilho da paixão aceso nos olhos. Eu e o Vital nos suportamos até sua morte, por 45 anos. Meu amor – gritou para o chão – está ouvindo, querido, nunca te traí, logo nos encontraremos! Ai, Helô, eu vim aqui para morrer tranquilo.

— Ai, Claudinei, eu vim para viver tranquila.

Heloísa gargalhou e na volta do riso, seus olhos pararam com uma interrogação no que ela acreditou ser um broche que Claudinei usava meio deslocado na camisa. Se perguntou como não havia notado aquela joia antes. Teve a impressão de que se perdeu um pouco do que ele dizia ao se sentir completamente hipnotizada com a cor azul esverdeada brilhante e sua forma para ela incomum. Mas isso foi um pouco culpa minha.

— Aie, o que é mulher, tá tendo um derrame?

Heloísa teve o reflexo de passar as duas mãos pelo rosto como se fosse mesmo capaz de limpar qualquer resíduo ou imagem. Mas logo garanti que tudo voltasse ao normal.

— Eu não tinha notado seu broche.

— Que broche?

Claudinei olhou para o ponto de seu peito onde Heloísa tinha o olhar fixo, já antecipando o susto. Ao enxergar o ser, que o olhou de volta com tamanha empatia, Claudinei deu tapas sobre seu tórax, esmagando a pequena criatura sobre o tecido alvíssimo de sua camisa.

— Que chilique, homem. Nem eu faço isso e eu detesto bicho.

— Ah, olha essa merda gosmenta na minha camisa nova. Que porcaria. Você não devia ter se mudado pra cá se não gosta de bicho. Esses nojentos estão por tudo. O pior é que são mesmo lindos, parecem joias exoticíssimas, não a culpo pela lambança que eu fiz, mas podia ter me avisado com delicadeza.

— Me desculpe. Mas só tu mesmo para estar de camisa neste calorão, hein?

— É linho! Meu deus – ele parou estarrecido com a reprimenda – tudo bem, você não tem obrigação de saber sobre tecidos. Vai ficar manchado, será?

— Também não tenho obrigação de saber de manchas e lambanças.

Claudinei estalou a língua. Eu demorei um pouco para me restaurar do choque, e quando entendi os sinais, uma tranquilidade me tomou.

— Vem cá, falando em lambança, você está sabendo da Cândida?

— Não sei quem é.

— A Cândida, mulher! A que faz parte do grupo, cantou belissimamente na seresta.

— Ah sim.

— Teve um piripaque, encontraram toda defecada.

— Coitada. Ela vai continuar fazendo a parte da música? Senão eu posso fazer.

— Nossa, Heloísa, quanta empatia – Claudinei a olhou de cima a baixo.

— O que você quer que eu diga? “Coitada. Que horror! Mas o que ela teve? Não espera, ela teve, um piripaque de velha.”

— É assim que vai ser quando eu tiver um troço, então?

— Eu não sou apegada, querido, mas isso não significa que não goste de ti.

— Certamente.

— Vamos indo para o jantar?

Seguindo, notaram mais alguns bichos pelo caminho. Heloísa ficou um pouco apreensiva e tratei de tranquilizá-la. Nada de mau aconteceria a ela. Estresse não era uma coisa boa. Deve ter passado pela cabeça de Heloísa a imagem de uma nuvem do que ela chamaria de praga, invadindo o ar, porque ela se arrepiou forte no caminho. Foi até o restaurante calada, compondo os mais pitorescos cenários, enquanto Claudinei falava e falava sem parar e sem perceber que ela não estava ali, e isso não era culpa minha. Heloísa tinha uma espécie de resposta automática, que consistia numa variedade de sons. Não era difícil. Aprendera aqueles truques quando engravidou. Era colossal a quantidade de energia necessária para manter dois parasitas, que nasceram enormes e que continuaram se alimentando dela por anos, mesmo depois de separados. Ela teve que se virar sozinha cuidando dos gêmeos pequenos quando seu marido morreu. Chorava, bebia e nunca deixava de fingir que estava absolutamente presente. O corpo é uma máquina sábia e esses registros ajudam muito, especialmente quando são de tão fácil acesso. É preciso saber gerir, a humanidade é quase um desperdício, mas não quero soar radical. Lúcia puxou uma cadeira e se sentou com os dois.

— Souberam da Cândida?

— Você a conhecia? — Heloísa perguntou surpresa.

— Sim, do apartamentinho no fim do corredor.

— Sim, estávamos falando disso. Helô parece ser boa fisionomista.

— Que horror, né? Toda cagada. Tá irreconhecível. Diz que parece um zumbi, só se alimenta e dorme, não fala nem nada. E o mais estranho… ai, fico toda arrepiada. Descobriram que estava juntando mato e lixo no quarto.

— Como assim?

— Assim! Galhos e folhas e restos de frutas. Parece que encontraram ela coberta de mato e tinha mais embaixo da cama e dentro dos armários.

— Ai que nojo. Por isso que tá tendo esses bichos, decerto, a sujeirada chamou. — É possível. Não vão dedetizar será?

— Vão sim, já até avisaram que amanhã vão passar aquela fumacinha. Aí temos que ficar fora das imediações até à noite. Tá no quadro de avisos, mas claro, programaram atividades pra gente. Cachoeira, caminhada. Ah, e um cinema também, ao ar livre, num parque.

Heloísa se sentiu bem-cuidada e segura. Temos mesmo que ficar longe dessa tal fumacinha. Isso não é nada bom.

— Por isso que eu adoro isso aqui. Não temos que nos preocupar com nada. Imagina uma infestação em casa! Era catar dedetização, pedir referência, ligar, conseguir horário, marcar, pensar num lugar pra ir quando tivesse que sair, reservar hotel até. Aqui não tem nada disso. Tudo inteligente.

— Vamos na cachoeira? — Lúcia estava animada.

— Vamos sim, acho que vai ser joia.

— Eu prefiro filmes, mesmo que seja no parque. Tenho pavor de cachoeira e essas ripongagens que fazem a gente suar — Claudinei parou por alguns segundos

—, mas eu queria ficar com vocês.

— Então separa uma roupinha de aventura.

— Pra suar.

— Nos encontramos nas vans amanhã?

Todos assentiram.

Se interessa saber, passaram uma excelente jornada, mesmo Claudinei. E posso estar me enganando, mas eu acho, pelo brilho no olhar, que Claudinei é um dos nossos agora. Só o tempo dirá. Lúcia não é. Ela exala incapacidade. Não é nada pessoal. Ela só não é boa. É magra demais. É dura demais. Quando na volta para casa Claudinei ficou hipnotizado com os imensos campos de soja, Lúcia não se impressionou. Ao contrário, achou bizarro, como disse.

— Pois eu também acho bonito, tudo igual por léguas e léguas — Heloísa contemplou.

— Léguas?

— Achei mais poético. E depois é tão imenso — ela estende a mão para a paisagem, como se a amparasse —. Légua me parece mais adequado para medir.

— Como pode um lugar tão bonito, como esse em que a gente esteve a tarde toda, ser cercado desse tipo de campo. E deve ser puro veneno. É muito impressionante que seja tão vasto.

Foi a primeira vez que eu concordei com Lúcia. Ela continuava discursando sobre a monocultura e seus malefícios, sobre pesticidas versus agricultura orgânica. Pes-ti-ci-das. Heloísa tremeu toda vez que Lúcia pronunciou a palavra. Não pude me conter. Era por isso mesmo que tudo precisava ser feito no tempo certo, entre uma aplicação e outra, rapidamente. Seja lá quem esteve com Cândida, se adiantou, e veja o que aconteceu. Pequenas vidas perdidas. Cada uma tem o seu propósito. Umas servem à preparação, outras a sacrifícios mais complexos. A pressa é inimiga da inteligência. O melhor momento viria em breve, com Heloísa descansada, o lugar dedetizado de outras espécies, a pujança dos campos visível. Eu me sinto pronta. Eu também pulso. Pulsamos juntas. Heloísa começou a dormitar e fomos invadidas por um remanso delicioso. Pena ter durado pouco. Fomos acordadas por Claudinei, que ao notar um canteiro de obras, onde máquinas gigantescas trabalhavam, nos sacudiu para comentar:

— O que será que vai sair aqui?

— Ouvi dizer que é uma cidade planejada.

— Nossa! Uma cidade privada?

— É, como a nossa comunidade, só que bem maior. Tipo uma Alphaville, esses condomínios fechados gigantes, micro cidades planejadas.

— Não parece micro. Uma, duas, seis, oito, me perdi. Mas tem pra mais de dez retroescavadeiras ali.

— Isso só confirma o que eu penso — Heloísa baixou os óculos de sol —. Isso aqui vai estourar! Viemos na época certa. Quando encher de gente, estaremos mortos. Num lugar melhor, se deus quiser.

E riu. Seus olhos brilharam, e isso foi por minha causa. Ela ficou imaginando o que tudo aquilo geraria. E eu fiquei sentindo meu futuro através dos tempos, a facilidade que seria não precisar fazer todo esse esforço de atração, todo esse esforço de adaptação. Uma colônia toda ali, na curva do futuro. Bem perto.

Quando acordamos no dia seguinte, revigoradas, o pessoal já organizava aparelhos e cilindros, os quais Lúcia bem reparou que na noite anterior já estavam por ali pelos corredores. Bateram à porta do apartamento. Heloísa abriu a porta com um copo d’água na mão.

— Bom dia, flores do dia, — a enfermeira disse, tomando o copo da mão de Heloísa. — vocês assinaram para a oxigenoterapia, não?

— Assinamos.

— Então não pode comer nem beber! Jejum de 8 horas, vocês fizeram, certinho?

— Sim sim, força do hábito! Beber água pela manhã.

Lúcia saiu do banheiro com seu robe atoalhado.

— Podemos fazer vestidas assim?

— Estão perfeitas! Quanto mais confortável, melhor.

Heloísa vestia o mesmo robe. Meu trabalho foi que algumas horas mais cedo, enquanto Lúcia dormia, Heloísa e eu tínhamos feito uma excelente refeição de frutas e líquidos. Estávamos prontas sim. Nos deitamos.

— Bem, vamos lá, eu ajeito vocês. Fiquem tranquilas, vocês vão sentir uma tonturinha no início e depois vão dormir, depois do meio-dia, eu mesma venho ver vocês. Quando acordarem, estarão se sentindo maravilhosas, jovens de novo!

— Você já fez isso? — Lúcia perguntou.

— Eu não! Isso é para os inquilinos, a gente trabalha, vocês aproveitam a vida — disse a enfermeira sorrindo.

Deixei Heloísa cair no sono logo que recebemos o oxigênio. Aquilo me inebriou um pouco, mas não me tirou os sentidos. Eu precisava ficar atenta às vibrações, aos avisos externos, às movimentações das pessoas. E não demorou muito. O pouco pessoal que tinha ficado para arrumar tudo se foi. Os inquilinos e as inquilinas dormiam profundamente, quando a dedetização interna foi acionada remotamente. Liberei a quantidade certa de substância em Heloísa, a quantidade que me permitia controlar a mobilidade de seu corpo. Ela não apresentou resistência, mas pensou forte em seus filhos, o que me fez ter mais certeza da minha boa escolha. Retirou a máscara e seguiu andando até o portão. O ninho não estava longe e pelos sinais que eu recebia, não seríamos as únicas a migrar. Dali iríamos para um lugar tranquilo, que as operárias já haviam preparado para nós. O sucesso completo da nossa fusão, era que Heloísa era Heloísa e eu era eu e nós éramos uma. Essa inteligência temos desenvolvido há milhares e milhares de anos. Não é só uma técnica de sobrevivência; é uma tecnologia de adaptação. Aprendemos com o tempo e com as condições. Vocês humanos ajudam muito. O plantio extensivo nos indica abundância e nos faz querer prosperar, nos multiplica. A vida urge. Os pesticidas que vocês colocam nas nossas plantas nos enviam um confuso sinal de que nossa presença não é querida e assim, nos tornamos mais fortes e mais numerosos. Para prosperar. E, por vezes, nos tornamos ofensivos, ostensivos, reativos. Para prosperar. É a lógica da vida. Ela dá um jeito. Mas não quero chatear ninguém com essa conversa. Quando Heloísa se deitou junto de Claudinei, Cândida, Vera e Nelson, no meio do mato, naquele ninho perfeito e aconchegante, úmido e quente, pensou que a ideia era sua e que era boa. Eles se olharam cúmplices. Botei todos os ovos que havia em mim e senti que minhas companheiras botaram todos os ovos que havia nelas e era uma novíssima geração que se preparava. Nós que aqui estamos, doamos nossa existência para o futuro. Nós somos veículos, eles agora serviriam de alimento e acolhimento para a nova população que assim seguiria, até que nossos domínios se expandissem. A cidade que ali começava, quem sabe daqui alguns anos não seria completamente contagiada, completamente afetada em prol da nossa existência. E quando dominarmos a Terra toda, quando existirmos apenas nós, poderemos estabelecer uma nova ordem.

 

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Natalia Borges Polesso é escritora, pesquisadora e tradutora brasileira, autora de livros como Amora (vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Contos) e do romance Controle.


A pesquisa científica que inspirou essa história é coordenada por Cecilia Siliansky de Andreazzi, mestre pela UFRJ e doutora pela USP. Seu trabalho, que recebeu apoio do Instituto Serrapilheira, consiste em entender as relações entre o surgimento de pandemias no chamado Antropoceno e a interferência humana no meio ambiente. O projeto faz associações entre ecologia, evolução e epidemiologia com ferramentas de inteligência artificial e teoria de redes complexas aplicadas a dados reais para conseguir modelar e prever a dinâmica destas interações, identificando os cenários que favorecem o salto de parasitas para novos hospedeiros, incluindo humanos.