A amizade é o campo da relação com o outro, que se dá, em Enrique Vila-Matas, a partir do texto. Eu deixo o outro viver em meu texto para que ele se transforme, efetivamente, em uma parte de mim, sem que perca, com isso, suas feições. Na amizade, o indivíduo se faz outro. Dissemina a própria subjetividade em uma trama na qual cada ponto de passagem responde pelo todo. O amigo é o mesmo e também o outro. Ler o amigo é ler, de forma privilegiada, a si. A amizade, trazida como uma categoria do pensamento, nos dá uma nova estratégia de leitura: o que é abstrato no campo da filiação literária (a intertextualidade da tradição e a forma como um autor é unido a outro) torna-se direto e pessoal em Vila-Matas, por conta da máquina de nomeação que ele coloca em funcionamento dentro de seus livros. Aparecem as casas, os homens, as mulheres e os contextos: Claudio Magris, Rodrigo Fresán, Paula de Parma, Fleur Jaeggy, Valparaíso, Sevilha e Buenos Aires. Essa parte das conversações procura mapear parte desses nomes e observar o funcionamento específico de cada um deles na poética do autor.

Tenho a impressão de que dois livros seus dependem bastante dos laços de amizade – Paris não acaba nunca e Bartleby e companhia –, mas em registros distintos: o primeiro remeteria a amizades de seus anos de formação, um contexto de experiência e vivência que só mais tarde seria transformado em texto; Bartleby e companhia, contudo, parece arregimentar um contingente de companheiros de leitura que contribuíam com dados, autores ou indicações bibliográficas, colaborando diretamente com o texto. O senhor poderia comentar essa relação?
- É essa a situação de Bartleby e companhia: é um livro que nunca parou de ser escrito. Recebo sugestões e novos casos de abandono da literatura, amigos me ligam e perguntam se eu não penso em lançar um segundo volume. As notas feitas sob um texto invisível são agora complementadas pelas leituras de muitas outras pessoas. Valery Larbaud conta que, por quase 20 anos, os amigos lhe apresentaram dados e indicações de livros, dizendo a ele: “Isso vai ajudá-lo com seu São Jerônimo”. Larbaud estava trabalhando em seu estudo sobre a tradução, que talvez tenha demorado tanto justamente por conta dessa participação silenciosa das pessoas ao redor. Havia sempre uma ideia a mais a acrescentar e um livro que deveria ser lido. Sempre há um livro que deve ser lido.

Não é por acaso que Valery Larbaud tem papel tão importante em Bartleby e companhia, junto de outros escritores também muito importantes para a concepção do livro, como Paul Valéry, Kafka ou Robert Walser – todos cultores de uma postura de servidão produtiva para com a literatura, cada um à sua maneira. Subalternos, como o senhor os chama.

- Há também Emmanuel Bove, que morou no mesmo prédio que André Gide, na rua Vaneau, em Paris. Bove no térreo e Gide mais acima. Quando jogavam xadrez, era sempre Gide quem ganhava, não por ser melhor jogador, mas porque Bove era um melhor perdedor. Bove, como Walser, segue em frente sempre perdendo coisas pelo caminho. Não era um colecionador como Gide, por exemplo. Bove parecia trabalhar sempre a partir do dispêndio. A breve convivência que tiveram é muito representativa da postura que cada um cultivava diante da literatura. Gide era escutado, seguido e observado. Bove era o melhor entre os escritores desconhecidos, dizia Beckett. Algo na linha do que pode ser encontrado entre Borges e Arlt.

Em uma de suas crônicas, o senhor diz que Roberto Arlt lhe ofereceu um dos livros mais úteis que já leu em sua vida – um livro que lhe trouxe um conceito claro não da existência e, sim, da sobrevivência do escritor. Que conceito é esse?
- Penso que se trata da consciência de que a escritura é uma estrutura vazia e que o escritor é um Narciso que se lança sempre no vazio. Escrever leva sempre a um túnel sem final, porque jamais se chega à satisfação plena, nunca se chega a escrever a obra excepcional que sempre confiamos que faríamos algum dia, e isso produz a maior das angústias. Antes se aprende a morrer do que a escrever. Arlt falava da necessidade imediata de se viver um dia após o outro, de conseguir o sustento a partir da literatura. Mas Ricardo Piglia já nos mostrou que sua sobrevivência vai muito mais longe. O cadáver de Arlt está sobre a cidade, o caixão suspenso por cabos e retirado pela janela, dado seu tamanho. É uma presença que não se pode neutralizar. Sua obra é uma profecia, uma cifra de um mundo que ainda se anuncia. Arlt morreu aos 42 anos e sempre será jovem.

Muitos já disseram que esse relato do cadáver de Arlt sobre Buenos Aires, contado por Piglia a partir das fotos do velório, é apócrifo. Esse procedimento de escapar tanto da verdade quanto da mentira, insistindo em um falseamento que potencializa a ficção, está também em sua novela Impostura, está na História abreviada da literatura portátil, em Doutor Pasavento. Muitos são os autores contemporâneos que seguem a trilha: Aira, Tabucchi, Martín Caparrós no livro sobre o roubo da Gioconda, Ricardo Cano Gaviria em seu livro sobre as últimas horas de Walter Benjamin. Como o senhor vê esse agrupamento arbitrário?
- Não é a primeira vez, e certamente não será a última, que fico lado a lado com Antonio Tabucchi. Ele é responsável por uma guerra total contra a literatura que não confia em si mesma, e é um dos maiores artífices e falseadores de nosso tempo. Seus livros têm a capacidade de transformar retrospectivamente seus precursores. Só pude ler Moby Dick, de fato, depois de ter passado por A mulher de Porto Pim, seu livro sobre os Açores. Alguns anos atrás, combinamos de nos encontrar. Eu passaria por Roma para uma conferência e Tabucchi também estaria lá. Comprei um presente para meu amigo, evidentemente. Quando, finalmente, nos colocamos frente a frente, com os pedidos no bar já feitos, resolvo anunciar a lembrança singela que havia preparado para a ocasião. Antonio faz o mesmo, e, pelas dimensões, vejo que é também um livro. Surpresos, constatamos que os livros são iguais: os escritos do Barão de Teive, o semi-heterônimo piromaníaco de Pessoa, que acabavam de ser editados.


Kelvin Falcão Klein é autor de Conversas apócrifas com Enrique Vila-Matas


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