Artigo Judiciario 1 Luisa Vasconcelos outubro.20

 

Como chegamos até aqui? Essa parece ser a pergunta feita incessantemente por todos aqueles que olham assustados para o Brasil. Diante dessa indagação, uma imagem sempre me toma: um Papai Noel andarilho de bermudas, chapéu, mochila e bengala que me apareceu em um dia abafado. Errante, de imediato me lembrou aqueles personagens dos filmes de David Lynch a indicar uma fenda entre o sonho e a realidade. Encetava um rompimento que é da ordem da ética, do conteúdo, mas também da estética, do que é próprio da imagem e da percepção do real. A data era 17 de abril de 2016, votação do impeachment de Dilma Rousseff (PT) na Câmara dos Deputados.

Eu saía para acompanhar a votação junto a um acampamento de apoio à operação Lava Jato apelidado de Moro lover’s, fincado em uma praça em frente à sede da Justiça Federal, no bairro do Ahú, na capital do Paraná, que se convencionou chamar “República de Curitiba”. Uma espécie de unidade particular da organização social e política brasileira. Lá, em uma manhã cinzenta que foi se tornando quente no correr da tarde, eu seguia para o acampamento munida com meu bloco de anotações, celular, gravador… tudo que pudesse ampliar meus sentidos e registrar algo até então inédito para mim, que estudo o Sistema de Justiça há anos: uma manifestação repleta de sentidos, adereços e badulaques para apoiar uma ação de investigação, encarnada em um juiz cuja imagem era possível ver estampada em um boneco inflável, com o rosto colado à indumentária do Superman, em um traje de variantes azul, verde e amarelo.

O super-herói de plástico cheio de ar tinha as feições de Sergio Moro, então titular da 13ª Vara Criminal Federal, em Curitiba. Ao seu lado, os representantes do Ministério Público na força-tarefa da Lava Jato também tinham souvenirs à venda no acampamento. Sem bonecos específicos, seus rostos eram reproduzidos em camisetas que lembravam um antigo desenho animado dos anos 1980, o G.I. Joe. Nelas, Moro, o juiz, aparecia ao lado de Deltan Dallagnol e de Carlos Fernando dos Santos Lima, procuradores da República. Embaixo, servindo de legenda, a definição: “Liga da Justiça”. Em quase todos os itens expostos, a expressão “República de Curitiba” também era reproduzida.

Noutra ponta, havia os pixulecos com a imagem de Dilma Rousseff, presidenta do Brasil, cujo mandato seria interrompido no processo que começou formalmente naquele dia. Além dela, o uniforme usado por presidiários também estava estampado no boneco inflável do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). De um lado estavam os heróis da Justiça e de outro os bandidos da política. A análise que a Ciência Política esboçou posteriormente estava fincada em todos os cantos daquele acampamento. A novidade é que ela extrapolava as construções teóricas, mostrava-se desnuda em todo tipo de elemento visual. Fosse em antagonismo à política, fosse pela celebração de si mesma, a Justiça lavajatista demandava sua própria iconografia.

UMA JUSTIÇA E SEUS ÍCONES

Em março, na Páscoa daquele 2016, pouco antes do impeachment, a Chocolates Schimmelpfeng, em Curitiba, lançou o “moroango”, ovo verde e amarelo recheado com bombons em homenagem a Sergio Moro e à Lava Jato. Pouco tempo depois, foi a vez de a inspiração chegar à produtora Brasileirinhas, que lançou em maio o filme pornô Operação Leva Jato, dirigido por Gil Bendazon e tendo em seu elenco a presença das estrelas do métier Isabella Martins, Britney Bitch, Pamela Pantera, Big Macky e Falcon. Em 2017, foi a vez da referência chegar ao Distrito Federal. Com a missão de repaginar as suítes do Motel Altana, em Sobradinho (DF), a arquiteta brasiliense Cristina Bertozzi declarou à imprensa que, após fazer uma pesquisa sobre os fetiches dos brasileiros, descobriu que os “motivos policiais” despertavam curiosidade e prazer. Com isso, a Lava Jato inspirou a decoração de um quarto específico com grades de ferro e recortes de jornais e revistas em referência às investigações. Imagens de Deltan, Lula, Dilma e de outros nomes envolvidos na operação estavam expostas como adorno.

Em paralelo aos prazeres da gula e da carne, o repertório lavajatista de imagens seguia outro caminho: o da identificação das ruas. Todo herói que se preze precisa delas e, pouco depois da minha estada em Curitiba, pude ver os bonecos infláveis do Super-Moro e os que representavam Lula e Dilma como presidiários pelas esquinas de São Paulo. No movimentado cruzamento da Henrique Schaumann com a Rebouças, no bairro de Pinheiros, os pixulecos viraram objeto corriqueiro do comércio de ambulantes entre os carros parados na hora do rush.

Os elementos se acentuariam ao longo do tempo e, especialmente nas manifestações pró-Lava Jato na Avenida Paulista, explodiriam não só nas cores verde e amarelo, mas também na representação do rosto de Moro, sempre em riste, sério, olhando para cima como que mirando um alvo de forma heroica. Diante de uma imprensa embevecida com a Lava Jato, a jornalista Eliane Brum, em artigo para o jornal britânico The Guardian, ainda em março de 2016, chamava a atenção: “Em vez de reinvenção, a crise da representação política deu origem à sua figura mais perniciosa: a de um salvador da nação. O juiz poderia ter se recusado a aceitar o papel de herói. Em vez disso, ele está à altura da ocasião. Ignorando seu papel oficial, ele expressou sua gratidão pela ‘bondade do povo brasileiro’ e declarou: ‘[é] importante que as autoridades eleitas e os partidos políticos ouçam a voz nas ruas.’”[nota 1]

As ruas estavam inundadas e, pela primeira vez na história do país, junto a toda sorte de temas e personagens políticos, a Justiça ganhava protagonismo. A partir de um dado momento, as aglomerações na Avenida Paulista passaram a contar com um carro de som no qual a imagem de Moro era estampada na lateral, servindo de painel para que seus apoiadores tirassem selfies. Constantemente, eles miravam o céu, mimetizando o ícone. Em 4 de dezembro de 2016, com o processo de impeachment já concluído e Michel Temer (PMDB) tendo assumido a presidência da República, ocorreu uma das mais significativas manifestações pró-Lava Jato em São Paulo. Resgatei do meu caderno de anotações a observação: “O apoio da manifestação não é à Justiça como um todo, mas em específico à Lava Jato. O Supremo está fora disso. Aliás, essa sensação já tive quando entrevistei algumas pessoas em Curitiba durante o impeachment e agora só confirmo: sim, as pessoas conhecem o Supremo e o vêm como um tribunal político. A Lava Jato passa ao largo dessa ideia de política. Se eu fosse o Supremo ficaria atento, não seria estranho daqui a pouco ver cartazes pedindo a cabeça de alguns ministros”.

Era a Justiça antagonizando a si própria. Parecia que o Papai Noel lynchiano ressurgia em minha frente tal como o Mestre do Magos, do desenho Caverna do dragão, novamente apontando a fenda entre o delírio e o real. Quatro anos depois, em maio de 2020, em plena pandemia mundial, um grupo de bolsonaristas autodenominado “300 do Brasil” fazia um protesto contra o Supremo Tribunal Federal (STF) com tochas e máscaras brancas encobrindo o rosto. Entoavam um grito de guerra: “Viemos cobrar, o STF não vai nos calar!”. O episódio era o ápice de uma série de tensões que, em paralelo à Lava Jato, havia colocado o Supremo em uma situação de desgaste ímpar.

Desde 2016, em cidades diferentes, pude coletar uma série de fotos, cartazes, imagens e frases sobre o STF. Referências que estavam em muros, paradas de ônibus, praças etc. A maioria com a expressão “Com o Supremo, com tudo”, frase dita pelo então senador e ministro do Planejamento, Romero Jucá (PMDB), no auge do processo de impeachment. Antes mais criticado à esquerda, o STF chegou em 2020 atingido pela extrema direita.

REVIRAVOLTA POLÍTICA

O contexto em torno da frase de Jucá e das tochas contra o STF parecem unir duas pontas da distopia. Se voltarmos no tempo e revisitarmos o Moro lover’s naquele abril de 2016 é possível ver uma frase contra o “comunismo no Brasil” estampada no chão do acampamento. Diversas pessoas com roupas camufladas e indumentárias com menção às Forças Armadas frequentavam o local. Ao combate contra o comunismo e à defesa do militarismo se somavam essa miríade de elementos em verde e amarelo, além de ícones um tanto quanto infantis de Justiça e força. Ao fundo, uma trilha sonora seguia tocando canções de apelo emotivo como Bye bye tristeza, clássico dos anos 1980 cantado por Sandra de Sá. Em muitos aspectos, era a semente de um espírito “festivo” que se podia ver nos trios elétricos e nas manifestações de direita e extrema direita que se espalhariam Brasil afora.

Na diversidade de grupos presentes em Curitiba, muitos se diziam apartidários. Ah, é claro: havia também a pauta da corrupção. Quando indagado sobre o tema, o estudante Patrick Ignaszevski, que disse estar em manifestações desde 2013, me respondeu: “Eu acredito que a nossa luta aqui em frente à Justiça Federal não é somente contra a Dilma Rousseff, é contra a corrupção. Nós não temos apadrinhados políticos. A Dilma caindo, a gente vai lutar contra o Renan Calheiros, contra o [ex-deputado federal Eduardo] Cunha, a gente está lutando contra o Lula. Então, eu acredito que a nossa indignação não é seletiva, ela é contra a corrupção como um todo”.

Ao fim de toda a descrição e das aspas, faço um corte e destaco: percebam, naquele momento, que em nenhuma das falas capturadas ou notas tomadas Bolsonaro aparece como uma figura presente no horizonte público. Ainda que ele já habitasse o obscuro universo dos grupos de WhatsApp no início de 2016 e ao longo daquele ano, nos diversos eventos em apoio à Lava Jato todo o caldo cultural girava em torno de Moro e da operação. De lá para cá, por algum caminho, esses elementos foram deslocados e engolfados pelo bolsonarismo. A pergunta é não só como isso aconteceu, mas quais as consequências disso para um Judiciário que se tornou plebiscitário das ruas.

Se no início de 2016 os integrantes da Lava Jato estavam todos juntos nas estampas de camiseta, neste outubro em que estamos Moro não é mais juiz, Deltan pediu afastamento da Lava Jato e Carlos Fernando dos Santos Lima está aposentado do Ministério Público Federal. Neste lapso temporal, por conta de sua condenação, Lula não pôde concorrer nas eleições presidenciais de 2018 e Moro se tornou o ministro da Justiça do vencedor da disputa, Jair Bolsonaro. Um ano e quatro meses depois de assumir o cargo, pediu demissão alegando interferência do presidente no trabalho da Política Federal. Essa história todos sabemos.

No imponderável ano da graça de 2020, tendo como base a atual composição do Supremo, a tendência é que as teses da Lava Jato sigam sendo desmontadas no Tribunal. Parece que, diante dos custos institucionais, alguns integrantes do Supremo descobriram o quão perigoso é ter “superpoderes”. Contudo, nunca é demais lembrar que o primeiro magistrado a ser representado com trajes heroicos foi Joaquim Barbosa, ministro do STF (2003-2014) e relator da Ação Penal 470, o chamado “mensalão”. A toga de Barbosa transformada em capa do Batman inaugurou essa era do avatar de si para o Judiciário.

 

Artigo Judiciario 2 Luisa Vasconcelos outubro.20

 

QUE SOLTEM BARRABÁS!

Tudo isso é curioso porque essa ideia heroica de Justiça compõe um quadro atípico em comparação com as nossas referências históricas. Em uma das cenas mais célebres da literatura e do teatro brasileiros, o julgamento de O auto da Compadecida — texto escrito por Ariano Suassuna (1927-2014) em 1955 —, temos um Jesus “preto retinto, com uma bondade simples e digna nos gestos e nos modos”. Em seu posto de magistrado, tanto provoca os réus como se condói daquele pequeno bando de pecadores à sua volta na hora de proferir a sentença. Seu diálogo sincero e ladino com João Grilo é que dá o mote da cena. Aliás, é o Grilo, astuto, dono dessa esperteza que é a coragem do pobre, que exige ser escutado antes de ser condenado. Quando o diabo, encarnando o promotor, lhe apresenta a perspectiva de danação por conta de sérias acusações, Grilo apela e roga a defesa da maior advogada do panteão católico: Nossa Senhora, a Compadecida. Está feita a cena na qual o ato de julgar se desenrola.

No julgamento, há uma menção explícita à oração da Ave Maria e às súplicas dos homens diante da morte. De pronto, a situação remete à Salve Rainha, oração imortalizada nas catequeses: “A vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas. Eia pois advogada nossa, esses vossos olhos misericordiosos a nós volvei”. Lá estão o Sertão, a tradição ibérica e não só a misericórdia enquanto meio para a salvação, mas todos os elementos que dão corpo a um julgamento: a acusação, a culpa, o dolo, a defesa, a sentença, a apelação, a condenação, a indulgência… a lista dos substantivos que podem ser ditos é imensa, mas todos eles estão em um patamar distinto da rua. São representações que se colocam em um momento solene no qual, de uma forma ou de outra, um tribunal é composto, apartado das vontades corriqueiras.

Mais um passo atrás e as raízes judaico-cristãs me remetem à cena de outro julgamento, prova velmente o mais célebre de todos: o do Cristo no pretório. É lá que Jesus defronta-se com o hesitante Pôncio Pilatos. Há zombaria e expurgo nas acusações, mas os sacerdotes também buscam testemunhas, inquerem com escárnio o acusado. A condenação é certa. Eis, então, que Pilatos lava as mãos. Se a Justiça, no que se entende por equilíbrio, deixa a cena, pelo menos em sua composição preserva-se alguma liturgia, figurativa que seja. Curiosamente, quando se despe essa cenografia o que surge no primeiro plano é ânimo, o que há é a expressão da vontade que corrompe o equilíbrio entre acusação, defesa e sentença. “Que soltem Barrabás!”, o povo grita. É a voz das ruas.

E o que essas imagens dizem sobre nós? Como elas nos tocam? O que tomamos por justo e como somos tomados pela Justiça? O historiador e cientista político José Murilo de Carvalho é quem, durante entrevista ao programa Roda Viva (TV Cultura) em 2014, talvez ofereça uma das respostas mais certeiras a essas indagações. Ao ser perguntado sobre o papel da Literatura na História, ele fala sobre a imaginação. Em certo ponto, exemplifica falando sobre como ler Guimarães Rosa mudou sua ideia de cidadania na hora de compor um trabalho: “Tinha um episódio no Grande sertão: Veredas, no julgamento de Zé Bebelo, quando, de repente, ele está sendo julgado e alguém levanta e diz: não! Mas isso aqui está errado. Eu participei de um júri em tal lugar e não se faz assim. Aquilo me deu um estalo na cabeça. A gente está tratando de cidadania no século XIX só pensando em voto. Ora, você ser jurado é participar mais diretamente do poder do que votar”.

O arremate de José Murilo faz eco em minha cabeça em 2020. Parece que as dimensões da cidadania no século XIX me bateram às portas agora, enquanto escrevo esse texto. É o Papai Noel me piscando os olhos. Em um pulo, volto às manifestações em Curitiba, em São Paulo, nos diversos locais onde o tribunal e a Justiça desceram às ruas de forma pop, heroica e infantil. Ora, você ser jurado é participar mais diretamente do poder do que votar, pontuo mais uma vez, e tenho vontade de fazer uma hashtag: #josémurilotemrazão.

O JUIZ HERÓI

Digressões feitas, respiro, me assento na cadeira e pego o bloco de anotações. Revejo o material. O que o próprio Guimarães Rosa me diria neste distópico início de século XXI? Quais as referências que encontrei em campo? O que fazer uma tese tem em comum com fazer uma reportagem?[nota 2] O que estar em tantos lugares me disse? O que vi, escutei e senti?

Lembro do som das vuvuzelas. Em todas as manifestações que fui essa espécie de corneta ensurdecedora estava presente. O som irrompe ao fundo nas gravações. As cores verde, amarelo e azul mais uma vez se repetem, somadas ao preto. Outro elemento se repetia: a presença dos super-heróis. Havia sempre alguém fantasiado de Homem-Aranha, Capitão América, dentre outros. Parecia que o idílio do Superman era agora compartilhado pela gente comum que cruzava a rua nos domingos em que o Brasil ia em festa se manifestar contra a corrupção.

Faço uma espécie de inventário. Na Avenida Paulista, muitas tribos. Um bloco pró-Lava Jato quase sempre do Parque Trianon até a Estação Brigadeiro. Na outra ponta, entre o Trianon e a Rua da Consolação, os que eram críticos à Lava Jato. Nas margens, toda a sorte de ambulantes, artistas, curiosos e alguns poucos desavisados. No meio, cortando a avenida e acompanhando a ciclofaixa ficavam alguns grupos monarquistas abraçados à bandeira com o brasão do Império. Muitas pessoas com cartazes contra o Congresso e o STF.

Em frente à Bomboniere Paulista, também perto da Estação Brigadeiro, um toldo com um equipamento de som tocava clássicos dos anos 1970 e 1980. Nos dias de manifestação, entre os habitués se viam senhoras de collants também nas cores nacionais, no passo de Billie Jean is not my lover/ She’s just a girl who claims that/ I am the one/ But the kid is not my son. Michael Jackson era sempre uma sensação. Parecia reviver algo comum e esquecido entre todos.

Vi isso se reproduzir em especial no ano de 2016, durante o processo de impeachment, mas não somente. Tempos depois, as ruas continuavam a ter seu carnaval. É um mar e, embora eu saiba que a Avenida Paulista tem comportamento próprio, penso sempre na metáfora dos indivíduos dispersos na multidão e isso me lembra exatamente a expressão da vontade popular, a Justiça enquanto manifestação do desejo. Longe do rito dos julgamentos, talvez não surja apenas a ideia do juiz-herói, mas haja também um deslocamento da manifestação de poder para o indivíduo que, diante da crise do Estado, se vê na posição de responder, ele mesmo, às questões que são impostas a ele pelo contexto histórico e social.

Foi meu eterno orientador e amigo Ricardo Jorge de Lucena Lucas (UFC), aficionado por HQs, quem me esclareceu sobre a questão. Para um artigo em conjunto, lá estava o Ricardo a me falar sobre como a noção de “super-herói” que temos hoje está calcada nos anos 1930. Até então, o máximo de heroísmo que circulava pelas comic strips dos jornais estava nas peles de personagens de ficção científica que habitavam outros tempos e espaços, terras longínquas, ou eram inspirados pela literatura pulp. Tarzan (publicado em HQ pela primeira vez em 1912), Dick Tracy (1931), Flash Gordon (1934), Mandrake (1934) ou Fantasma (1936), por exemplo, são todos personagens que, apesar das habilidades, ainda não tinham cruzado a fronteira do que não é humano.

Foi o Superman, a partir de 1938, o primeiro herói com superpoderes. Aos poucos aquele indivíduo nascido em Krypton, que luta contra as injustiças, passa a ser também a representação daquele que possui poderes inexplicáveis, o que pode ser pensado a partir do clima de desalento do período entreguerras. Aqui vale lembrar que o universo dos super-heróis norte-americanos foi construído por imigrantes (em especial, judeus) que, ainda crianças, foram com suas famílias para “fazer a América”. Em muitos aspectos, as vielas sujas e violentas dos guetos da Polônia, Romênia, Lituânia e Rússia se refletiam na vida de dura de Nova Iorque.

Fato é que editores, desenhistas e distribuidores que construíram os primeiros super-heróis nos Estados Unidos compuseram uma geração formada na rua, ganhando a vida no troco, com trabalho pesado ou em gangues. As tintas das primeiras revistas em quadrinhos nasceram junto da impressão de publicações pornográficas e na ressaca da Lei Seca (1920-1933). Curiosamente, seus heróis emulam boa parte desse fetiche do indivíduo que cruza a fronteira da lei para realizar uma vontade. Uma geração que não teve adolescência pulou da infância para a vida adulta e emulou a promoção pessoal do sujeito sobre o Estado. Aqui é o Batman, personagem criado em 1939, que nos acompanha. Se nele não há superpoderes, decerto existe o indivíduo que pode mais do que as estruturas burocráticas. Não à toa é o comissário Gordon quem aciona um imenso sinal no céu de Gotham City quando precisa de ajuda.

Essa ideia do heroísmo talvez seja a que explique uma Justiça pop, individual e voluntariosa. Make yourself! Make America great again! É um trajeto que mostra como fomos nos afastando da advogada, a Compadecida, e de seu auto. Saímos de uma representação que, mesmo com falhas e estratagemas próprios, nos levava a um certo ideal de equilíbrio e justeza, para algo que — repito — é mais relativo à gula e à carne (do “moroango” à produtora Brasileirinhas), ao fetiche e à libido. Para pensar o herói infantil brasileiro de hoje a dica parece ser o lema do Superman: Justiça e liberdade, acima de tudo. Aí está a simplicidade do bem contra o mal, a polarização.

Escrevo, fecho os olhos, vejo o Papai Noel lynchiano e escuto Sandra de Sá cantando: Eu não tô aqui pra sofrer (bye, bye tristeza)/ Vou sentir saudade pra que? (bye, bye tristeza)/ Quero ser feliz/ Bye, bye tristeza não precisa voltar. É a realização do desejo.

 

NOTAS

[nota 1] Tradução livre feita pelo Pernambuco. No original: “Instead of reinvention, the crisis of political representation has given rise to its most pernicious figure: that of a saviour of the nation. The judge could have refused to accept the role of hero. Instead, he has risen to the occasion. Side-stepping his official role, he expressed his gratitude for the ‘kindness of the Brazilian people’ and declared it: ‘important that the elected authorities and political parties listen to the voice on the streets’”. O texto de Eliane Brum está disponível em: theguardian.com/commentisfree/2016/mar/18/brazil-judiciary-democracy-sergio-moro-impeach-dilma-rousseff

[nota 2] Muito das informações coletadas e das experiências vividas presentes nesse texto ocorreram durante o desenvolvimento da tese Justiça e política: Um estudo sobre a comunicação do STF (1988-2004), defendida em março de 2019 na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

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