Guimaraes.Rosa fev.2019 divulgacao

 

Em jagunço com jagunço, o poder seco da pessoa é que vale... (...) Olhe: jagunço se rege por um modo encoberto, muito custoso de eu poder explicar ao senhor. (...) Jagunço é o sertão.

1. Desde a primeira página de Grande sertão: veredas, o leitor enfrenta dificuldades que, páginas adiante, se explicam em frase com poder de síntese: quem mói no aspr’o não fantaseia. Em sua escrita inédita e selvagem, Guimarães Rosa não fantasia. Todas as palavras do texto e cada uma são moídas no áspero da vida vivida num enclave civilizacional, à beira do Rio São Francisco. Enclave este que, nos anos 1950, se representa e se apresenta em paralelo com a nova capital, Brasília, sua vizinha no então abandonado planalto central.

Literária, a escrita ganha o concreto do Brasil rústico pela moagem das mil e uma palavras da língua portuguesa e afins. Em invenções inesperadas e de modo perturbador e persuasivo, as sílabas e os grãos passam a se agrupar em frases e parágrafos, compondo um manuscrito de valor incomparável. Saltemos algumas e muitas páginas do romance e destaquemos outra frase-síntese: “A mó de moinho, que, nela não caindo o que moer, mói assim mesmo, si mesma, mói, mói”. Sem novos grãos, as mós do moinho trituram a elas. Pedra contra pedra. O texto já escrito passa por revisões radicais, mói assim mesmo, si mesma, mói, mói. A máquina de moer da escrita rosiana, mesmo se desprovida de grãos, tritura o manuscrito em busca da perfeição absoluta, alcançada no romance publicado em 1956.

2. A autenticidade da escrita e a perfeição estilística se entrosam e, em fios de frases, se esparramam pelas páginas como o Rio São Francisco. Compõem o longo texto que, desde a epígrafe, se entreabre para a figura dominante do Diabo. O diabo na rua, no meio do redemunho. Em grãos de poeira, o Arrenegado brota da terra que o vento em espiral levanta. Graças à reflexão do narrador sobre os grãos diabólicos de poeira alvoroçada pelo redemoinho, os jagunços – protagonistas e personagens de Grande sertão: veredas – se revelam como são no encoberto do seu saber.

Riobaldo se enamora desde a infância do futuro jagunço e companheiro, Diadorim. Numa canoa a navegar ao meio do rio turbulento, o sexo e o amor entre meninos. (No meio da rua, o Diabo.) Riobaldo e Diadorim descobrem cedo sexo e amor e os recalcam. Riobaldo se apaixona por Nhorinhá e se casa com Otacília. As relações humanas, os sentimentos e o mundo: “Como é que se pode gostar do verdadeiro no falso? Amizade com ilusão de desilusão”. Na terceira margem do rio, isto é, numa canoa, os dois meninos se encontram no perigo da aventura para irem afetuosamente se distanciando um do outro para o resto das suas vidas, como as duas margens paralelas e amorosas do rio São Francisco. Elas só se abraçarão no mar, na morte. “Diadorim, Diadorim – será que a mereci só por metade?” – exclama Riobaldo diante do cadáver do amado.

3. Guerra diverte – o demo acha. Os grãos moídos nos raivosos e violentos redemoinhos do mando, se ajuntados e amassados, servem para modelar os bandos indisciplinados de jagunços que guerreiam uns contra os outros em busca da liderança e do poder em enclave semisselvagem, tomado pela irascibilidade. Joca Ramiro, Zé Bebelo, Titão Passos, Hermógenes, Ricardão – “Muitos, ali, haviam de querer morrer por ser chefes – mas não tinham conseguido nem tempo de se firmar quente nas ideias.”

O interlúdio amoroso, que se reforça filosoficamente com a imagem do Diabo, se complementa com a épica da guerra entre os chefes-jagunços inimigos que, abandonados à própria sorte e risco, roubam do animal onça o coração para se encher de coragens terríveis. Não há direção precisa na organização social do mundo sertanejo – “Jagunço não se escabreia com perda nem derrota – quase que tudo para ele é o igual.” A indecisão é o modo como a anarquia domina e toma conta dos grupos de jagunços em formação guerreira. É ela que desenha também o mapa ignorado daquela região feroz do Alto São Francisco. Quanto mais a narrativa de Grande sertão: veredas se volta para o passado, mais e mais ela se afirma no nosso presente sob a forma de inevitável e atual apocalipse.

 

>> Silviano Santiago é crítico literário, ensaísta, romancista e poeta. Publicou, entre outros, Genealogia da ferocidade

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