Artigo Anaja Eduardo Azeredo

 

Ainda no início da ditadura militar, um romance foi publicado em uma pequena editora na cidade de São Paulo. O ano era 1966, a autora chamava-se Anajá Caetano e o livro recebeu por título Negra Efigênia, paixão do senhor branco.[nota 1] Uma obra rara no sentido duplo da palavra: por estar ainda restrita a uma única edição, por ser preciosa pelo seu conteúdo. Eis mais um episódio do apagamento sistêmico que perpassa a autoria negra no Brasil.

Sua biografia nos escapa. Não encontramos índices referenciais em nenhum aporte exterior ao romance. Embora invisibilizada, a obra resiste como único acesso à autora. Como suporte de vida, ela guarda em seus paratextos (apresentação, orelha e prefácio) o destaque para sua autorreferencialidade negra. Anajá Caetano nasceu em São Sebastião do Paraíso, região cafeeira no sul de Minas Gerais. Fotografias e outras informações, como data de nascimento, são incógnitas. Ainda pelos paratextos, sabemos que investiu na publicação de seu romance, enviando originais para apreciação de diversos conselhos editoriais.

O prefácio é assinado pelo poeta Eduardo de Oliveira, que também escreveu a apresentação de Pedaços da fome, de Carolina Maria de Jesus. Oliveira descreve a obra de Caetano como “uma genial e bem-sucedida tentativa de reconstituição histórica” (p. 11). Ainda nos paratextos, outra nota é digna de destaque: trata-se de uma “homenagem especial” em que a autora refere a visita imprevista que recebera de duas autoridades africanas, o embaixador e o conselheiro da República de Gana: “Desejavam ambos conhecer a romancista negra – ‘esse pedaço d’África pendurado na noite do meu povo’ – como diria o poeta Eduardo de Oliveira. Ambos queriam identificar a autora que, no Brasil, quase um século após a libertação dos escravos escrevia um romance de costumes, reportando com fidelidade hábitos multíseculares (sic) de tribus (sic) africanas” (p. 15). Para responder ao interesse dessa interlocução africana, segue-se então a principal fonte de informações autorais que possuímos sobre Anajá Caetano: “A autora esclareceu a origem daquelas reminiscências. Descendente de angoleses da tribu (sic) dos ‘Quiôcos’, conservara de memória todas aquelas narrativas de seus antepassados, na sua maioria feitas ao pé do fogo, junto ao borralho da velha e solarenga residência de seu pai de criação, o dr. José de Souza Soares. Ficou assim justificada a preponderância das inclinações artísticas da autora, porquanto, como é sabido e notório os ‘Quiôcos’ foram, na África, os precursores de uma série de apreciáveis criações artísticas cuja influência seria impossível negar” (p. 15).

Nota-se que a voz autoral se sustenta no vínculo com a história de seus ancestrais africanos, povos artistas, e se posiciona no lugar da memória. Apoiada nisso, a escritora reivindica o lugar de romancista negra, através do pertencimento assumido a uma etnia e a uma memória africanas.[nota 2] Anajá é a primeira romancista a enunciar sua identidade negra de forma declarada no discurso, isto é, com um sujeito que se autoafirma negro em primeira pessoa, como fez Luiz Gama – o primeiro. Além de assumir a autoria negra como lugar de fala autoral no romance, Caetano pauta sua identidade (artística, inclusive) ao pertencimento a um povo africano específico. Ela sabe de onde veio, condição rara na experiência negra da diáspora. Esse pertencimento comparece no romance.

Revisitar esse livro hoje traz à reflexão contemporânea os traços de permanência que mantêm o presente ecoando processos continuados de colonialidade. Anajá olhou para trás buscando rever a experiência histórica do negro no Brasil, ato que estava em consonância com exercícios estético-políticos de pensadores e artistas negros em todo o mundo nos turbulentos anos 1960. O enredo de Negra Efigênia se choca contra a imagem de uma sociedade plurirracial sem conflitos, que teria vivido uma forma mais amena da escravidão graças à sorte de ter um colonizador “mais sensível”. Eram essas ideias que o Brasil sustentava no exterior e internamente, condensadas na imagem de que aqui vingara uma “democracia racial”.

O ROMANCE

Negra Efigênia, paixão do senhor branco é um romance que procura (suas próprias) rotas de fuga – um espaço imaginado para pensar a escravidão fora dos emparedamentos do discurso nacional de narrativa do passado. Para isso, a romancista articula um recurso de inversão, buscando uma contraversão narrativa – chave hermenêutica que tenta redimensionar o mundo colonial, investindo no câmbio de concepções racistas historicamente estáveis. A ficção desloca signos da representação, fomentando a reflexão sobre o lugar emparedado da mulher escravizada. A autora narrou o mundo escravo empenhando imagens avessas às estereotipias já clássicas, possibilitando espaços para imaginarmos outras configurações para a história da colonização e da escravidão.

Como disse Edward Said, a luta no mundo colonial é complexa e extrapola o campo das armas e exércitos, envolvendo também “ideias, formas, imagens e representações”.[nota 3] Negra Efigênia age nessa trincheira. Seu empenho é imaginar vias de representação para o período colonial, criando outros retratos do escravizado e do escravizador, da/o negra/o e da/o branca/o. O texto tenta desarticular significados herdados do embate colonial, principalmente em torno do gênero, da sexualidade, do trabalho e da religião.

O foco do enredo está na protagonista Efigênia e nas relações que vive com homens brancos, para os quais ela é objeto amoroso e não objeto sexual.

– Mas, o senhor me quer como amante cativa e sujeita a todos os seus caprichos?
– Não, meu amor. Eu não a quero assim. Desejo-a muito, mas não quero violências, nem contrariedades. Antes de mandar raptá-la tomei uma série de providências. Mandei reformar esta casa. Comprei moveis novos. (...) Tudo isso eu fiz pensando em tê-la para mim. Como minha companheira a quem desejo dedicar o resto de meus dias.
– Então, o senhor gosta de mim e me quer como amásia?
– Não, meu amor. Eu não a quero como amásia. Quero-a como mulher. Se for possível e Deus quiser, eu a terei como esposa. (p. 190)

Enquadrado pelo discurso amoroso, o campo de agência de Efigênia, sendo escravizada, é quase nulo: depois de mandar sequestrá-la e fazer a proposta, o coronel a deixa “decidir” entre ficar com ele ou voltar para a fazenda do Tronco – onde sua vida era muito pior. Ou seja, ela não tem uma escolha de fato.

A raiz do nome “Efigênia” (ou “Ifigênia”) contempla uma história de sacrifício da mulher. Na mitologia grega, Ifigênia é filha de Agamêmnon. Segundo Eurípedes, antes de partir para Troia, o pai desperta a ira da deusa Ártemis ao caçar um cervo em uma floresta sagrada, gabando-se de ser o melhor caçador. Como punição, Ifigênia deveria sacrificada. Agamêmnon manda uma carta à sua esposa pedindo que traga a filha com a promessa de que ela se casaria com Aquiles. Mas a promessa de casamento é falsa e camufla o sacrifício, que nessa versão não acontece graças à deusa. Na versão bíblica, Efigênia é uma princesa núbia, responsável por difundir o cristianismo na Etiópia, a primeira mulher africana a se tornar santa. Foi convertida pelo apóstolo Mateus. Depois da morte de seus pais, seu tio ascende ao trono e pede ao apóstolo que convença Efigênia a casar-se com ele. Diante da recusa (ela deveria manter-se virgem após a conversão), o tio mata o apóstolo e incendeia a casa da princesa.

O sacrifício de Efigênia se conecta à dimensão do casamento: na primeira história, enquanto promessa; na segunda, como punição. Parece que Caetano bebeu das duas fontes para criar sua protagonista. O ponto de vista da narrativa recai sob a experiência da mulher negra, alçando a escravizada a ponto central em um enredo que retrata seu corpo e escolhas emparedadas na condição colonial, que a subalterniza pela raça e pelo gênero.

O título condensa em três polos – Negra Efigênia / paixão / do senhor branco – o núcleo do enredo sob o qual a escravidão será narrada. Embora Efigênia seja a personagem nomeada, em oposição ao sujeito (in)definido “senhor branco”, os termos na frase-título enunciam quem é o sujeito (agente), o seu predicativo (“paixão”) e o seu objeto (mulher negra), discursivamente organizados de acordo com o funcionamento do regime colonial: estruturado no predomínio do homem branco e no consumo do corpo negro feminino. [nota 4]

O romance deixa evidente o gerenciamento do corpo da mulher negra pela intervenção de atores sociais diferentes, mostrando a escravizada como moeda de troca em negociações entre brancos: “pelo incômodo dado ao seu vigário (...), Manuel Diogo mandou sua negra Florinda levar, discretamente, um garrafão de vinho (...) – atenda seu vigário em tudo que necessitar e entre pelas portas do fundo – disse ele para a escrava com um certo ar cínico” (p. 230-231). O texto mostra sem sutilezas o corpo da mulher negra tratado como superfície onde se escreviam os acordos de paz entre homens brancos – representantes da Igreja, do Estado, da classe letrada.

A narrativa compõe o cotidiano do tempo sempre do ponto de vista de quem sofria os abusos do poder. Ao final, a protagonista se casa com o senhor no dia da Abolição, desembocando em uma cena distópica e altamente lúcida – porque cética quanto às mudanças reais que o 13 de maio traria. As celebrações da data histórica se (con)fundem com a sacralização da relação, dando sentidos políticos para o matrimônio – e sentidos fálicos para o término da escravidão. Nada indica que será garantida à comunidade negra a ascensão à cidadania e igualdade. Na obra de Anajá Caetano a mais potente contraversão da narrativa está em mostrar que a Abolição modificou o quadro nacional em favor do branco, atualizando seus privilégios. Para a população negra, o cativeiro foi atualizado em outras configurações na correlação de forças do mundo social, mantendo o negro marginalizado mesmo quando livre.

– Meu filho – disse o coronel, se acercando dele – como me sinto reconfortado com a volta de mãe Benedita e Efigênia. Creio que estamos perdoados por todas as nossas faltas, por todos os nossos erros. Agora, eu creio que a fazenda do Tronco sobre a qual pesavam tantas e tantas maldições será para sempre a fazenda de Santa Isabel. Daremos liberdade plena a nossos escravos e sobre as nossas terras o trabalho será livre.
Ao término de cada jornada de trabalho, depois do amanho da terra avara de seus tesouros, os nossos negros não mais terão como recompensa apenas, o bolo de fubá e o catre, ou a solitária onde purgavam suas faltas....
Paulinho olhou-o com admiração, estarrecido. Ele jamais falara assim.
Súbito, como se tivesse sido possuído por forças espirituais irresistíveis, o coronel Galdino num assomo de nervos como se houvesse enlouquecido, começou a gritar:
– Para fora daqui! Sois livre! Puxa! Puxa Estais livres! Eu os libertei!
Ao falar assim, afrontava a todos com gestos imperiosos, como se repelisse a negrada, procurando enxotá-la do terreiro. (p. 306)

NOTAS

[nota 1]. Caetano, Anajá. Negra Efigênia, paixão do senhor branco. São Paulo: Edicel, 1966.

[nota 2]. Os Côkwe são uma etnia bantu que residem no nordeste de Angola, estendendo-se ao sul do país e ao extremo sudoeste da República Democrática do Congo e ao extremo noroeste de Zâmbia. O nome Tchokwe apresenta variantes (Tchokwe, Chokwe, Batshioko, Cokwe). “Côkwe” é a forma vernácula utilizada oficialmente em Angola, mas nos tempos coloniais adotaram-se variantes aportuguesadas como Quiôcos – forma usada por Anajá Caetano. Os Tchokwe/Chokwe desfrutam de uma admirável tradição de esculpir máscaras, esculturas e outras figuras. Sua arte inventiva e dinâmica representa as várias facetas da sua vida comunitária, dos seus contos míticos e dos seus preceitos filosóficos.

[nota 3]
. Said, Edward. Orientalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. Página 38.

[nota 4]
. Ver Silva, Denise F. “À brasileira: racialidade e a escrita de um desejo destrutivo”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 14, n. 1, p. 61-83, jan. 2006.

 

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