Viva.o.povo.brasileiro fev.19 Karina.Freitas 3

 

Em 2011, quando João Ubaldo aceitou o convite para participar da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), a organização do evento pediu-lhe que se preparasse para ler um trecho de algum de seus livros. Até aí, tudo bem, tudo normal. O anormal foi ele me procurar – eu faria a mediação na sessão do evento estrelado por ele – e perguntar a mim o que deveria ler!

“Bem, João, hã...”, eu gaguejei, “quando leio um trecho de sua obra em público, escolho sempre a cena do acasalamento das baleias no Viva o povo brasileiro.”

“É... boa ideia”, ele respondeu. “São as únicas páginas da minha obra que, quando releio, não tenho vontade de reescrever.”

Por aí já fica evidente que, como todo estilista de primeira grandeza, João Ubaldo era um perfeccionista da frase. Pelo menos três de seus livros anteriores a Viva o povo já demonstravam isso: Sargento Getúlio (1971), Vila Real (1979) e Livro de histórias (1981). Mas qualquer pessoa que já teve contato com sua literatura certamente percebeu estar diante de um estilista em cujas mãos a língua, embora usada ao máximo de seus recursos, nunca pesa, nunca é rígida e elitista, nunca aprisiona os personagens e o enredo. Seu perfeccionismo de estilo permitia-lhe fazer requintadas cenas descritivas, como essa do acasalamento das baleias; cenas de humor fino ou, nem tanto; exposições científicas, com vocabulário especializado; e em outros momentos recriar a fala mais popular, como por exemplo, o sotaque sergipano de um sargento abrutalhado ou a fala dialetal das mães de santo.

Isso acontecia porque João Ubaldo era daqueles escritores que não usavam a erudição para se diferenciar do homem/mulher comum, e, sim, para se aproximar de todos os homens/mulheres, temperando essa erudição ora com humor, ora com autoironia. Ele a usava para fazer contato com vozes de todos os meios sociais, qualquer que fosse o grau de familiaridade com a norma culta da língua, pois seu amor pelo idioma português, e o conhecimento que tinha dele, era irrestrito e democrático. Seu apetite linguístico não foi em direção apenas da chamada “alta cultura”. O próprio João dizia, com a modéstia usual, que tinha um “bom ouvido.” Aliada ao alargamento incrível de seu poder de fabulação, da capacidade de imaginar histórias, essa extrema virtude (não só) técnica foi fundamental para que escrevesse a maior obra- prima da literatura brasileira no período, e uma das maiores de todos os tempos.

Atravessando séculos da nossa história, o romance faz um inventário das matrizes literárias praticadas no Brasil até aquele momento. Do Barroco até o estilo de corte realista que prevaleceu na literatura contemporânea, passando pelo modernismo de segunda geração, e seu interesse nas falas populares, Viva o povo reúne todas as formas brasileiras de expressão.

Em relação aos gêneros e temas de seus outros romances, Viva o povo é como uma nave-mãe que paira sobre “naves-filhotes”, acompanhando-as à distância enquanto ziguezagueiam pelo espaço, para depois recolhê-las e reabastecê-las de tudo. Nele, o que o escritor havia feito antes reaparece, e o que faria depois tem seu anúncio.

O Caboco Capiroba, canibal gourmet, amante da boa carne holandesa, poderia muito bem ser um personagem do humorístico Livro de histórias. Dadinha, a mãe-de-santo mencionada acima, é uma mulher de raízes profundas na cultura popular brasileira, tema e universo de vários de seus romances anteriores e posteriores. A investigação sobre o Mal, encarnado aqui pelo barão de Pirapuama, ganharia mais tarde o primeiro plano em O sorriso do lagarto (1989) e, sobretudo, no Diário do Farol (2002). O erotismo, por sua vez, iria para o centro da obra apenas em A casa dos budas ditosos (1999).

Mas o ambicioso projeto literário teve uma gênese bastante prosaica que o escritor admitiu inúmeras vezes: “Eu queria escrever um livro grande”.

Foi difícil dar a largada, contudo. Viva o povo teve três inícios. O primeiro, ainda em Portugal, onde o escritor residiu em 1981. Já de volta ao Brasil, morando no Rio, o trabalho anterior foi descartado e ele começou novamente. Por fim, transferindo-se para a casa que fora de seu avô, em Itaparica, mais uma vez, ele partiu do zero. Então, a coisa deslanchou.

Após, aproximadamente, três anos de trabalho, João Ubaldo recebeu em Itaparica a visita de outro dos seus editores, Sebastião Lacerda, meu pai, que foi até lá com a missão explícita de arrancar dos seus cuidados híperperfeccionistas os originais de Viva o povo brasileiro. Antes, porém, em clima de festa, o calhamaço foi levado a uma venda e devidamente pesado, atingindo a marca de seis quilos e 200g. Uma vez formatado, o livro alcançaria 673 páginas, no mínimo três vezes o tamanho de cada um de seus predecessores.

Quando Viva o povo brasileiro foi lançado, no Natal de 1984, eu tinha 15 anos e me encontrava flutuando na marofa da adolescência, sem muita capacidade de contato nem com os estudos obrigatórios, que dirá com outras leituras facultativas. Após a chegada dos meus primeiros resultados escolares de 1985, todos catastróficos, ou eu inventava um intercâmbio fora do Brasil, embaralhando dois sistemas educacionais e me safando da confusão, ou já podia me considerar um repetente.

Fui parar em Michigan (EUA), dos lugares mais frios em que eu já coloquei os meus pés. Não posso dizer, portanto, que as causas do meu autoexílio fossem nobres – perseguição política, religiosa, fuga da guerra, da fome ou de catástrofes naturais. Mas, a saudade do Brasil e do jeito brasileiro de ser, pelo menos, era grande como a de todo mundo que é expulso de seu país natal. A solidão, imensa também. Meu “pai” americano era engenheiro de motores da Ford, e eu sempre odiei falar de mecânica; meu “irmão” era metaleiro, eu, um recém-convertido ao punk rock; e minha “mãe”, a figura mais legal da família era, no entanto, muito “certinha”, pelo menos para os meus padrões. Na escola que frequentei, eu achava tudo e quase todos muitos chatos, com excecão de dois ou três locais e um equatoriano gordinho, muito gente fina, com quem eu me sentava na hora do lanche.

Recebi Viva o povo brasileiro pelo correio, junto com um exemplar de Concerto carioca, de Antonio Callado, lançado em 1985. Meu pai, editor, escolhera a dedo os livros que iria mandar para o filho exilado pela ditadura da química, física e matemática.

O fato de sua editora, a Nova Fronteira, ter comprado o passe do João Ubaldo alguns anos antes, tornara o nome do escritor familiar lá em casa. Mais do que isso, a mudança de João Ubaldo para o Rio, em 1981, segundo me lembro, tornou-o imediatamente uma atração aos olhos da intelectualidade carioca; e suas crônicas no jornal O Globo, por outro lado, encarregavam-se de cimentar sua popularidade junto ao grande público. Ele tinha fama, merecida, de engraçado e culto ao mesmo tempo.

Quando saiu a nova edição de Sargento Getúlio e a primeira de Livro de histórias, eu havia começado a ter contato com a sua literatura. Mas não foi paixão à primeira vista. Sargento Getúlio me pareceu incompreensível, assim como alguns dos contos novos. As frases iam se enroscando até que você se perdia e eu, acostumado aos Três Mosqueteiros e à Ilha do tesouro, ou mesmo a um Eça de Queiroz, nunca lera nada assim. Um ou dois contos, porém, confirmavam o que eu ouvia falar do escritor. Eram mesmo divertidos e, no uso da língua, riquíssimos.

Já nos EUA, no segundo semestre de 1985, quando finalmente engatei na leitura de Viva o povo, entendi a extensão da sua genialidade e, pela primeira vez, sonhei com a profissão de escritor. Via-se que, além de produzir alta literatura, ele estava se divertindo ao escrever. Era a suma felicidade. Minha admiração foi tanta, que, ao voltar para o Brasil e encontrá-lo algumas vezes, sempre através do meu pai, claro, eu era tomado pelo mutismo besta dos fãs adolescentes diante do ídolo, ou, como os bajuladores mais reles, caía na gargalhada diante de qualquer coisa que ele dizia. Nem preciso dizer que, quando por distração eu abria a boca, imediatamente achava o que eu havia dito a maior estupidez do século.

Mais do que talentoso, culto e divertido, João Ubaldo foi, para mim, um modelo de intelectual. Ele era extremamente simples no falar, no trato com as pessoas, nos seus hábitos. Não gostava de discutir literatura e muito menos de elucubrar hermeticamente sobre livros. Demonstrava, como seus livros, uma espécie de prevenção essencial contra o pedantismo, sem que isso significasse falta de conteúdo. E jamais pretenderia impor suas opiniões e preferências literárias aos outros. Tinha, no entanto, plena consciência do seu valor.

Em 1995, quando eu estava morando em São Paulo, escrevi meu primeiro livro, O mistério do leão rampante. Era uma brincadeira ubaldiana que tinha Shakespeare como personagem. Acertada a publicação, meu editor, Plínio Martins, perguntou quem eu gostaria que assinasse um prefácio. Respondi o óbvio, mesmo sabendo que o João Ubaldo odiava fazer esse tipo de coisa e, semanas depois, quase chorei de emoção ao ver o pequeno texto chegando pelo fax, com o timbre da Academia Brasileira de Letras, da qual ele já fazia parte àquela altura. Um amigo professor da Universidade de São Paulo (USP) ainda tentou fazer pouco, dizendo que o texto não continha uma análise da obra e era muito curtinho, mas isso não diminuiu em nada o valor daqueles três ou quatro parágrafos para mim.

Certamente que a amizade com meu pai ajudou a fazê-lo aceitar o convite. Mas talvez João Ubaldo tenha gostado do Mistério porque, seguindo a sua receita, eu me esbaldei nos barroquismos e no tratamento humorístico de uma linguagem, em geral, veiculada com rigidez e austeridade pernósticas. Ele havia aberto um caminho, e eu não era o único a segui-lo, como O Chalaça, de José Roberto Toureiro, lançado um ano antes do meu, ajuda a provar. Por fim, vale dizer que João Ubaldo também tinha uma predileção por Shakespeare, como provam a recriação que fez do monólogo hamletiano, “Ser ou não ser”, na boca do sargento Getúlio, ou os áudios em que recitava trechos das peças, enviados por e-mail aos amigos (tenho um em que ele declama, com perfeito sotaque britânico, o famoso monólogo de abertura da peça Ricardo III).

Se, até hoje continuo escrevendo, certamente devo isso ao impacto que Viva o povo brasileiro teve sobre aquele adolescente que eu era quando o li. Seus heróis e anti-heróis, que nascem tanto nas classes dominantes quanto no meio popular – e um ponto alto do romance é o encontro desses dois mundos: a história de amor entre Patrício Macário, um homem de posição convertido à causa do povo, e a rebelde Maria da Fé, líder da revolucionária Irmandade Brasileira –, sofrem, amam e morrem, e o leitor, talvez pelo reinício emocional constante a que é submetido, sente a força do conjunto, aparentemente disperso, de trajetórias individuais. O percurso da “alminha”, campeã em reencarnações abaixo do Equador, é uma costura divertida para tal multiplicação épica de personagens e enredos. E nós a experimentamos de qualquer modo, seja acreditando no progresso contínuo do Brasil e seus habitantes ao longo dos séculos, ou na tragédia repetida de ascensão e queda do homem brasileiro, com suas paixões, ideias e formas de organização social e política.

 

>> Rodrigo Lacerda é escritor, editor e historiador. É autor de Reserva natural

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