PersonagensTrans Diadorim dez.18 KarinaFreitas

 

A oscilação que se percebe até hoje na crítica entre tratar Diadorim, personagem central de Grande sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa, ora no masculino, ora no feminino é reflexo da magnitude dessa que, com certeza, é a maior realização da literatura LGBT brasileira, oscilação que só encontraria contraponto à altura, considerando-se mesmo a produção não LGBT, na dúvida em relação à culpa ou inocência de Capitu. Quatrocentas e cinquenta páginas de Riobaldo expondo a forma angustiosa com que se foi dando conta de que gostava “dum jeito condenado” de Diadorim, jagunço de seu bando, para apenas nas menos de 10 páginas finais revelar, diante da morte deste, que as roupas do companheiro escondiam na verdade “o corpo de uma mulher, moça perfeita”.

Seria Riobaldo bissexual, como 99,9% da narrativa em primeira pessoa nos leva a crer, ou teria ele intuído o corpo que Diadorim possuiria, ainda assim preferindo revelar essa percepção “somente no átimo em que (ele) também só soube”? Casos como esse não seriam únicos em nossa literatura, ocorrendo algo parecido por exemplo em As mulheres de mantilha (1870), de Joaquim Manuel de Macedo: nesse romance, Isidoro disfarça-se como mulher, para fugir ao recrutamento, e nesse disfarce acaba conquistando os amores da jovem Inês, que sofre por esse ser um amor “entre pessoas que não se podem casar”.

O suspense em torno da identidade da pessoa amada é idêntico nos dois casos, mas a forma como se resolve é bastante distinta. Na obra romântica, vemos a revelação ocorrer quando Isidoro salva Inês de uma tentativa de sequestro (demonstração de bravura e força que, por sinal, se fazia necessária para tirar qualquer dúvida em relação ao caráter viril do personagem), a partir dali a verdade sobre quem ele seria se fazendo indiscutível e a relação amorosa podendo desenrolar-se sem inconvenientes. Em Guimarães Rosa, no entanto, o corpo de Diadorim só se deixa descobrir após morto, nem leitor nem personagens tendo qualquer acesso à forma como ele pensava a si próprio, à forma como entendia seu gesto: disfarce ainda uma vez ou agora, quem sabe, reivindicação de uma identidade masculina, sua?

Antes de Diadorim, a literatura brasileira já conhecia Luzia-Homem, do romance homônimo (1903) de Domingos Olímpio, figura apresentada como “um desses erros da natureza”, “mulher que tinha buço de rapaz, pernas e braços forrados de pelúcia crespa e entonos de força, com ares varonis, uma virago, avessa a homens” e a quem Teresinha, outra personagem, precisou ver nua para acreditar que ela seria mesmo mulher (“e que mulherão!”), passando a defendê-la de ataques a partir dali. A despeito de sua aparência, no entanto, Luzia cativou os amores de Alexandre e Crapiúna sem que nenhum dos dois revelasse qualquer embaraço por nutrir ou externar tal sentimento.

No caso da narrativa de Rosa a questão é bem outra, pois Diadorim não apenas tinha uma aparência masculina, mas, sim, existia como homem para as pessoas do seu convívio. Não havia dúvidas, suspeitas a seu respeito, e mesmo Riobaldo conhecendo de antemão o desfecho da história, ainda assim preferiu contá-la da forma como a viveu, sem esconder a sensação de que gostou “de Diadorim mais do que, a claro, de um amigo se pertence gostar”. Seria forçado considerá-lo homem trans? Seria forçoso?

Trans, sim, mas não numa concepção subjetivista, visto que desconhecemos a maneira como ele pensava a própria condição: trans de uma perspectiva política, pela constatação de que, tendo sido criado para ser mulher (por conta do genital com que nasceu), construiu para si uma identidade masculina e foi, inclusive, assim reconhecido. O que é ser homem senão existir enquanto tal, sobretudo quando respaldado pelo reconhecimento coletivo? Dessa perspectiva política, pouco importa o que ele pensava de si, como se sentia, o que buscava com isso, questões que no fundo dizem mais das motivações que lhe fizeram encetar o processo, do que da sua existência como homem e das transformações que essa existência impôs.

Diadorim, personagem trans, mas não seria o único e muito menos o primeiro de nossas Letras. Pode-se pensar, por exemplo, na figura de Cândido em O Ateneu (1888), de Raul Pompeia, interno do colégio que assinava suas cartas de amor como Cândida. Nas palavras do diretor Aristarco: “está em meu poder um papel, monstruoso corpo de delito! assinado por um nome de mulher! Há mulheres no Ateneu, meus senhores!”, explorando em seguida o conteúdo da carta, “esta mulher, esta cortesã, fala-nos da segurança do lugar, do sossego do bosque, da solidão a dois... um poema de pouca vergonha!”

Poder-se-ia pensar em, a princípio, orientação sexual mais do que identidade de gênero, mas perceba-se o mal-estar causado pela mera troca da desinência nominal. Brincadeira ou pra valer? Não se sabe, sabe-se dos significados que o gesto assumiu. Caso similar ocorre em Capitães da areia (1937), de Jorge Amado, quando a narrativa nos fala “de um pederasta que tinha sido preso e se dizia chamar ‘Mariazinha’”, único nome que aparecerá entre aspas todas as vezes que for mencionado, o que é curioso num livro em que os personagens, sem aspas, se chamam Pirulito, Sem-Pernas, Querido-de-Deus e por aí vai.

É suficiente a mudança de nome para estarmos diante de uma experiência trans? A associação imediata que fazemos entre pessoas trans e intervenções cirúrgico-medicamentosas talvez nos impeça de ver a potente contestação que esse simples gesto implica, sobretudo num momento em que nem se podia sonhar com intervenções que tais.

Por vezes, aliás, a mudança de nome não se faz nem necessária, o que se verifica em outro clássico do Realismo/Naturalismo, O cortiço (1890), de Aluísio Azevedo. O romance traz a figura do lavadeiro Albino, “sujeito afeminado” que “vivia sempre entre as mulheres, com quem já estava tão familiarizado, que elas o tratavam como a uma pessoa do mesmo sexo”. O que significaria isso senão um efetivo reconhecimento? A questão ganha contornos ainda mais interessantes por vir logo depois de Dona Isabel afirmar que Pombinha, sua filha, não vai se casar “antes de ‘ser mulher’, como ela dizia”, ou seja, menstruar.

Personagens discretos, secundários nessas primeiras aparições, eles começam a conquistar protagonismo com A grande atração, conto publicado em 1936 por R. Magalhães Júnior e depois reunido, por Gasparino Damata, em Histórias do amor maldito (1967). Nele, vemos Luigi Bianchi, artista travesti do Circo Politeama, de quem se diz: “Nascera homem, certamente por engano da natureza. Tudo nele era feminino”. A perspectiva empática que essa descrição parecia insinuar dá lugar, contudo, a uma narrativa que não faz senão tratar a personagem como fraca, velha, risível e, ao mesmo tempo, capaz de atrocidades.

A ênfase no aspecto bisonho vê-se também na retratação de Timóteo em Crônica da casa assassinada (1959), de Lúcio Cardoso, mas a essa ênfase é contraposta a lucidez da personagem. Tendo-se apoderado do extravagante guarda-roupa da mãe tão logo ela morrera, Timóteo fecha-se em seu quarto e passa a vestir-se apenas com essas roupas, tornando-se a vergonha da importante família Meneses. Ela tem consciência do que representa, no entanto, e quer justo que a sua condição (“ataviado e livre, mas [...] dentro de uma jaula”) se torne alegoria da única liberdade que se pode possuir integralmente: “a de sermos monstros para nós mesmos”.

Necessário mencionar ainda Eusebiozinho e Alipinho, protagonistas respectivamente das crônicas Delicado e Noiva da morte de Nelson Rodrigues, publicadas pela primeira vez na década de 1950 e antologiadas em várias edições de A vida como ela é. Ambas tratam do suicídio do que se supõe ser uma pessoa trans que não conseguiu se assumir, mas o fazem pela via do humor, um humor que ainda hoje se recusa a ver nossas dores como dores de fato, nossas identidades como reais.

O conto Taís, de Walmir Ayala, dado a conhecer na mesma antologia organizada por Gasparino Damata, oferecerá por sua vez uma percepção bastante sensível ao relatar, em terceira pessoa, os conflitos e descobertas que vivencia, ainda no armário, a protagonista (“apelidado de Taís” por seu grupo de amigos, nos diz a narrativa). Pouco antes, contudo, Cassandra Rios já publicara dois romances intrigantes com protagonistas travestis, partindo de uma perspectiva bastante empática: Georgette (1956) e Uma mulher diferente (1965).

Nem se estranhe o tratamento masculino dado a mulheres trans, presente em praticamente todas essas narrativas do século XX: só algumas autobiografias já das duas décadas finais escaparam a essa flutuação, flutuação por sinal reveladora do abalo que essas identidades causam e de o quão complexo é o percurso que, só lentamente, vai desgenitalizando as compreensões de gênero (inclusive as nossas próprias).

Considere-se, por exemplo, o “’Stella, mexa-se, menina’, disse para si mesmo” da luminosa Stella Manhattan (1985), de Silviano Santiago, obra protagonizada por uma figura lindamente dúbia que oscila entre ser Eduardo Costa e Silva e Stella Manhattan. Agora compare-se a isso o “Sonhei que tinha mudado de sexo e era noiva de Pinto Calçudo” de Serafim Ponte Grande (1933, Oswald de Andrade) ou, então, o Mr. Bloom no episódio Circe do Ulysses (1922, James Joyce) trocando de sexo com Bella Cohen e virando “she”/ ela (e Bella, “he”/ ele): é como se, no caso de personagens assumidamente trans, fosse preciso retratá-las sempre pondo em questão a forma como se entendem, e isso mesmo na ficção.

Estamos, ainda hoje, assistindo à elaboração desse direito de podermos nos entender por outro gênero que não o que, ao nascer, nos impuseram e o de termos esse gênero legitimado, entendido como a verdade sobre o que somos, mas, enquanto esse processo engatinha, as narrativas que se debruçam sobre nossas identidades mostram-se, em geral, desconcertadas frente à nossa existência. E não foram poucas: mais de 20 obras com personagens trans só entre 1960 e o final do século, a maioria publicada durante a ditadura. Duas delas, em especial, interessam ao presente ensaio por trazerem esse desconcerto para o primeiro plano.

A primeira delas, o conto Sargento Garcia, publicado em Morangos mofados (1982), de Caio Fernando Abreu, especificamente a passagem final, quando entra em cena a travesti Isadora. A descrição da personagem é feita em função da percepção do narrador em primeira pessoa, que o tempo todo se mostra em dúvida quanto à forma como deve tratá-la, entendê-la: “ela perguntava, e quase imediatamente corrigi, dentro da minha própria cabeça, olhando melhor e mais atento, ele, (...) piscou íntimo, íntima, para o sargento e para mim”. A confusão, em determinados momentos, ameaça a própria compreensão do texto, pois faz com que não se saiba ao certo de quem o narrador fala, indício da perplexidade em que ele próprio (e, junto com ele, a sociedade) se encontra.

Por fim, um texto interessantíssimo, pouco conhecido, de Clarice Lispector: Praça Mauá, do livro A via crúcis do corpo (1974). Aqui a mulheridade de duas trabalhadoras sexuais será confrontada, a de Luísa, casada, sem filhos, tendo por “nome de guerra” Carla, e a de Celsinho, “homem que não era homem”, “um travesti de sucesso” cujo “nome de guerra” era Moleirão, “verdadeira mãe” da menina de quatro anos que adotara. Amigas, confidentes, opostas em quase tudo, mas é importante pontuar a maneira destoante com que, não sem alguma ironia, seus corpos são retratados: o “quase não tinha seios” que, por exemplo, é dito em relação a Carla torna-se, em referência a Celsinho, “de tanto tomar hormônio, adquirira um fac-símile de seios”.

A narrativa brinca de chamar as personagens a cada momento por um de seus dois nomes, como que insinuando que há mais de uma personalidade nas duas e que, a depender do momento, uma está mais ativa. Ao final do conto, enciumada por conta do homem que tirou Carla para dançar, Celsinho diz na cara da amiga que ela não é “mulher de verdade”, “nem ao menos sabe estalar um ovo”, enquanto que ela, sim, sabe. Em decorrência do ataque, “Carla virou Luísa (...) atingida na sua feminilidade mais íntima”. Ela, em seguida, abandona a festa e se deixa estar na praça a olhar os postes, estrelas, reconhecendo a verdade daquelas palavras (“Celsinho era mais mulher que ela”). Não fica claro no entanto, e essa é a beleza da narrativa, se esse reconhecimento é motivo de dor ou de libertação.

 

>> Amara Moira é ativista do transfeminismo, crítica literária, escritora e professora. É autora de E se eu fosse puta?

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