Prévias
Manoel Carlos Karam (1947 – 2017) foi um escritor brasileiro nascido em Rio do Sul, Santa Catarina, que passou a maior parte de sua vida adulta em Curitiba. Alhures do Sul é um duplo curitibano de invenção do autor. Seus três romances mais conhecidos – Fontes murmurantes, O impostor no baile de máscaras e Cebola – compõem o que veio a se chamar Trilogia de Alhures do Sul.
Hilda Machado (1952 – 2007) foi uma cineasta, pesquisadora, professora e poeta brasileira. Praticamente inédita em vida, seus poemas foram recolhidos no volume póstumo Nuvens, há pouco editado pela 34.
Num Ano Sem Aniversários
Manoel só com muita paciência
- Manoel Carlos Karam, em Pescoço Ladeado Por Parafusos
Remexo esse ano à procura de algum aniversário. Viro de borco, caem seus conteúdos sobre a mesa. Dias e meses estridindo de encontro à superfície. Abotoaduras, palitos, moedas de cruzado-novo. Não acho nada.
Mas foi por um triz.
Em 2017, ano em que teria completado 70 anos de idade, o escritor Manoel Carlos Karam fez dez anos de falecido. Era solenizar, e a imprensa – pelo menos a de Alhures do Sul – mostrou-se à altura da ocasião. Estamparam-se entrevistas, memoriais. Até mesmo inéditos. E depois?
Fechou-se novamente a minúscula fenda através da qual o Karam e tantos, tantos outros por vezes comunicam conosco.
Existem autores que “assomam” apenas de onde em onde. Precisam de bobagens desse tipo, decenários, centenários. É nessas ocasiões que tomam fôlego. O suficiente para enfrentar o próximo estirão de esquecimento.
Lamentamos, então, e em coro afinadíssimo, que não sejam mais lidos e que não tenham recebido em vida o reconhecimento que mereciam. Agora, dizemos, quem sabe agora o grande público não estará preparado para estes excêntricos, sabotadores, milagreiros de província?
Com efeito, quem sabe? Uma coisa se pode dizer com justeza sobre nosso literariado – somos todos uns otimistas incorrigíveis.
Em que o autor comete a deselegância de comparar
Manoel Carlos Karam a uma maria-mole
Manoel Carlos Karam integra um vasto rol de escritores que não pegam. Cada volume póstumo, cada reedição de obra fora de catálogo, cada adaptação para teatro, cinema ou situação performativa é um lance, tentativa tanto de fixação quanto de circulação. Mas são autores que desbotam por qualquer coisa. Marias-moles caindo da “parede da memória”. Não há prêmio ou honraria que os torne canônicos, e muito literato pode passar a vida inteira sem sequer roçar sua produção.
Este vasto rol de escapados, ele não para de crescer. Desconfio que isto não mudará tão cedo. Nosso mercado editorial não difere tanto assim do star system vigente na Hollywood dos tempos “áureos” – preocupa-se mais em inventar fenômenos do que promover o trabalho de bons escritores. Alguns fenômenos calham de ser bons escritores, isto não está em questão. O que se quer ressaltar aqui é o fato de que muitos escritores igualmente bons – quiçá melhores – são condenados ao esquecimento por serem, por assim dizer, invendáveis.
Juntos, estes autores vão construindo um sumiço. Um entorno negativo, um subterrâneo, uma vizinhança de fama ingrata. São os ilustres desconhecidos por definição. E se quase não deixam vestígio na cultura em larga escala, vão pondo queimaduras abomináveis num punhado de incautos. Colidir com eles de fato nos deforma, inverte os termos do jogo em definitivo. Passamos a pensar: quantos outros autores excepcionais o cânone não absorveu? Que outras literaturas não foram propriamente digeridas pelo tempo, pelo gosto, pela circunstância?
E aqui me lembro que o grupo teatral com que Karam esteve envolvido pela maior parte da década de 1970 chamava-se, justamente, Margem.
Teimam na borda. São autores, o mais dos casos, que praticam uma literatura de desacordo. Uma literatura capaz de – como disse o escritor Nelson de Oliveira a propósito de Karam – “enlouquecer e erotizar tudo o que toca”. Estão o tempo inteiro traquinando com nossas expectativas quanto ao que a literatura deve ser. Em suas mãos, a linguagem excede seu caráter instrumental e veicular, tornando-se também ela espaço expositivo, palco para o descontínuo, o baralhado. São literaturas que não explicam, não iluminam, não confirmam o mundo, estabelecendo com ele outras relações. Nosso aparato crítico mostra-se sempre insuficiente quando buscamos falar deles. Pode-se mesmo dizer que suas obras contribuem ativamente para que as coisas permaneçam na desrazão.
Neste sentido, são mais realistas que os realistas.
Nota sobre o Realismo, a verossimilhança e outros males que assolam as nações
“São conhecidos esses enredos lineares do cinema dito ‘enlatado’, onde não nos poupam nenhum elo na sucessão dos acontecimentos os mais previsíveis (...). Na verdade, nosso pensamento caminha mais depressa – ou ocasionalmente, mais devagar. Seus passos são mais variados, mais ricos e menos tranquilizadores: pula trechos, registra com precisão elementos ‘sem importância’, repete-se, recua. E é esse tempo interior que nos interessa, com suas estranhezas, suas interrupções, suas obsessões, suas regiões obscuras, uma vez que ele é o tempo de nossas paixões, de nossa vida”.
(Alain Robbe-Grillet em sua introdução ao roteiro de O Ano Passado em Marienbad, tradução da poeta Elisabeth Veiga).
Carta de uma desconhecida
Karam,
Sempre que me cai um texto seu nas mãos (há muitos ainda por ler), costumo ter a impressão de estar diante de um autor que ama – quase cristãmente – as ficções; um autor que ama, nos outros, justamente sua capacidade de extrapolar. Posso estar enganado. Não seria a primeira vez. Posso até aventar onde o erro começou – na altura em que emprego o verbo “amar”, de “um autor que ama” em diante. Encontro, todavia, reforço para essa impressão numa crônica sua de nome “Lenda”, que começa assim:
Lenda.
Taí uma coisa que me agrada.
Não é história que alguém viveu, é história que alguém inventou.
Subsídio para essa impressão encontro também na formidável confraria que habita seu O impostor no baile de máscaras. Os personagens se exercitam constantemente na fabulação, no escambo de ficções extravagantes. Não tivessem nomes, arriscavam se fundir todos numa mesma entidade ficcional, numa mesma voz. Não se constata corpo para além do estritamente necessário. Corpos para sentar e falar invenções.
Estas ficções circuladas por suas criaturas, elas não parecem estar a serviço de nada; apenas comprovam, circularmente, nossa capacidade de fazer ficções. Dão à boca dos nomes como bolhas, saem voando, resistem improvavelmente à garoa de Alhures do Sul. Por resistirem, chegam mesmo a adquirir certa beleza moral, penso que diretamente proporcional à sua falta de serventia.
Penso que contar histórias – contá-las, interceptá-las, persegui-las, dá igual – é coisa corriqueira em seu universo ficcional. De seguida, penso que se trata de um universo ficcional onde o corriqueiro tem lugar, mas a realidade não.
Deve começar com o tom: voz mansa, quase neutra, certamente inimiga do ornato e do difícil. As palavras de que você se vale para delirar são as mesmas que uso para pedir pão na padaria. Que utilidade veria o senhor num “estridir”, num “traquinar”? Talvez gostasse, no entanto, da ideia de “um ano sem aniversários”.
Você não parece reconhecer o sentido como uma urgência.
Penhorado, agradeço.
Missão
Visitar a praça de alimentação do Mercado Municipal de Curitiba – o setor que leva seu nome – que leva seu nome errado – “Karan” em vez de Karam – fitar longamente a ausência da perninha do “m” na tabuleta.
“Pervertidos”
Why must I have him for a friend?
- Donald Barthelme, em The Phantom of the Opera’s friend
Uma lenda, agora. Era uma vez uma mulher chamada Hilda Machado. Hilda foi minha professora durante minha meteórica passagem pela Escola de Cinema Darcy Ribeiro.
Foram três ou quatro as ocasiões em que Hilda me convidou até sua casa para ajudá-la a organizar suas estantes. Durante esses encontros, ao longo dos quais muito pouco trabalho era de fato realizado, Hilda ia discorrendo com verve característica sobre autores que a interessavam, não raro agrupando-os sob a alcunha de pervertidos.
Chamam-se Hilda também: Maura Lopes Cançado, Samuel Rawet, Victor Giudice, Campos de Carvalho, Antônio Fraga, Zulmira Ribeiro Tavares, Cornélio Pena, Murilo Rubião, Valêncio Xavier, Rosário Fusco etc.
Todos uns pervertidos.
Hilda era uma incansável circuladora de autores – e cineastas, artistas visuais etc – não-canônicos. Ela trazia estes nomes para a conversa cotidiana, para a curva, minando nosso panteão. Mesmo quando se debruçava sobre um autor canônico, buscava excentricizá-lo, não se demorava nos aspectos conhecidos de todos. Esguelhava. Tudo a perder com o óbvio. Se o assunto era Bilac, era falar de seu erotismo. Se Machado vinha à mesa, falava de seu teatro.
Foi Hilda quem tornou triunfante, a meu ver, o trabalho do pesquisador. Do fuçador. Quanto mais caótico, em desacordo com as instituições vigentes, melhor. Por conta de nosso breve convívio, passei a ver esse ato (esse etos) de plantar bombinhas de cheiro pelas galerias de nossos grêmios literários como coisa heroica. Ela era a memória trabalhando onde a memória falhara.
Claro, o obscuro tem sua sedução fácil, serve ainda como insígnia para algo. Mas penso que o pendor de Hilda para o obscuro nada tinha a ver com isso. Tinha a ver com justiça.
(Por um momento, cogito renomear esta subseção – chamá-la “Missão” também).
Relaciono aquelas tardes em casa de Hilda à maneira como venho organizando minhas leituras de uns anos para cá: norteado pela impressão de que há literaturas que precisam de mim e outras tantas que passam bem sem minha ajuda.
As literaturas que passam bem sem minha ajuda não são, bem entendido, más literaturas. São apenas as que ocupam mais espaço. Arquiteturas, sem sombra de dúvida, grandiosas, fascinantes.
Mas obstruem algo.
Dois exemplos concretos: 1) No jornal paranaense Nicolau (ano IV - número 30), uma resenha assinada por Raimundo Caruso do romance de estreia de Karam, Fontes murmurantes, na qual o crítico, antes de compartilhar suas impressões, faz um extenso preâmbulo sobre como o livro não lembra o trabalho de Leminski.
2) Uma entrevista concedida por Karam ao jornalista Sérgio Brandão em seu programa Persona (UFPR TV), emissão de aproximadamente 30 minutos, muitos inexplicavelmente dedicados a perguntas sobre Dalton Trevisan.
Gran Finale edificante
Parece quase impossível continuar falando de certos escritores. Pode-se apenas começar. Muitos se incumbiram já de iniciar a conversa-Karam. Devemos aos escritores Joca Reiners Terron, Marçal Aquino e Nelson de Oliveira algumas observações definitivas sobre seu trabalho. Devemos à Kafka e à Arte&Letra, casas editoriais de Curitiba, a reedição de muitos livros seus que passaram anos fora de catálogo. Devemos aos idealizadores do projeto Mesmas Coisas a realização de uma série de eventos celebrando os textos de Karam ao longo de 2017. Que fazer, no entanto, para que a conversa continue? Para que deixe de começar, para que continue?
Jamais ergueremos esses autores em palácios, em inevitabilidades culturais ou históricas, mesmo porque a literatura que produzem não tem com o mundo relação polida e convencional. Podemos, no entanto, e cada qual à sua maneira, seguir o exemplo de Hilda e continuar fazendo frente a seu desaparecimento, convocá-los à conversa geral com mais frequência, mais energicamente. Não perder nenhuma oportunidade de pôr estas literaturas no rumo de alguém e, com isto, dar mostras concretas a todo o tempo de que “nossa” literatura é de fato vária, plural, irredutível a uns poucos santos padroeiros.
Quem sabe agora o grande público não estará preparado para estes excêntricos, sabotadores, milagreiros de província?
Com efeito, quem sabe?
>> Ismar Tirelli Neto é poeta, escritor, roteirista e autor de Os postais catastróficos